Caderno Temático
AS RELAÇÕES ENTRE O FEMININO E O MAGISTÉRIO NO BRASIL
THE RELATIONS BETWEEN THE FEMININE AND THE TEACHING IN BRAZIL
LAS RELACIONES ENTRE EL FEMENINO Y EL MAGISTERIO EN BRASIL
AS RELAÇÕES ENTRE O FEMININO E O MAGISTÉRIO NO BRASIL
Olhar de Professor, vol. 20, núm. 1, 2017
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepção: 03 Março 2017
Aprovação: 03 Junho 2017
Resumo: O texto traz parte das reflexões elaboradas ao longo de uma pesquisa realizada com quatro formadoras de professores(as) de uma instituição pública, cujo objetivo central foi buscar os elementos constituidores de suas identidades e subjetividades. Neste recorte é apresentada uma resumida reconstituição histórica do modo como as representações sobre o gênero feminino foram sendo tecidas, numa tentativa de mapear as concepções sobre a mulher formuladas no interior de uma sociedade fundada no modelo europeu que disseminou entre nós o pensamento androcêntrico do universal masculino. Tal retomada foi feita com o objetivo de construir um caminho possível para resgatar o trajeto da inserção do gênero feminino na carreira docente em nosso país. Reconhecer as imagens, fixadas pelo imaginário social, sobre a mulher ajudaram na tarefa de compreender a composição da profissionalidade das professoras no Brasil. O período sobre o qual o levantamento se circunscreve abarca o espaço de tempo situado entre os séculos XVIII e XX, no plano mais geral e no Brasil. A historiografia que trata da mulher, do magistério e da feminização da profissão é o suporte para a compreensão do processo de constituição das identidades e da profissionalidade da mulher-professora. O estudo indicou que, mesmo submetida a forte resistência, a presença feminina no escopo da vida pública e profissional sempre foi uma realidade. Demonstrando que a consciência sobre o papel de sujeito histórico e da história é fundamental - seja para mulheres, seja para homens -, para a compreensão e efetiva participação dos/nos processos históricos.
Palavras-chave: Professora, Profissionalidade, Identidade.
Abstract: The text brings part of the reflections developed during a research carried out with four teacher trainers of a public institution, whose central objective was to look for the constituent elements of their identities and subjectivities. This clipping presents a brief historical reconstruction of the way representations about the feminine gender were woven in an attempt to map the conceptions on women formulated within a society based on the European model that disseminated among us the androcentric thought of the masculine universe. This retake was made with the objective of building a possible path to recover the way of female gender insertion in the teaching career in our country. Recognizing the images, fixed by the social imaginary on women helped in the task of understanding the composition of the professionalism of teachers in Brazil. The period over which the survey is limited covers the period of time between the 18th and 20th centuries, on a more general sense, and in Brazil. The historiography that deals with the woman, the teaching and the feminization of the profession is the support for the understanding of the constitution process of the identities and the professionalism of the woman-teacher. The study indicated that, even subjected to strong resistance, the female presence in the scope of public and professional life has always been a reality, demonstrating that consciousness about the role of historical subject and history is fundamental - be it for women or for men - for the understanding and the effective participation in historical processes.
Keywords: Teacher, Professionalism, Identity.
Resumen: El texto aborda parte de las reflexiones elaboradas a lo largo de una investigación realizada con cuatro formadoras de profesores de una institución pública, cuyo objetivo central fue buscar los elementos constituyentes de sus identidades y subjetividades. En este recorte se presenta una resumida reconstitución histórica del modo como las representaciones sobre el género femenino se tejieron en un intento de mapear las concepciones sobre la mujer formuladas en el interior de una sociedad fundada en el modelo europeo que diseminó entre nosotros el pensamiento androcéntrico del universal masculino. Esta retomada fue hecha con el objetivo de construir un camino posible para rescatar el trayecto de la inserción del género femenino en la carrera docente en nuestro país. Reconocer las imágenes, fijadas por el imaginario social, sobre la mujer ayudaron en la tarea de comprender la composición de la profesionalidad de las profesoras en Brasil. El período sobre el cual el levantamiento se circunscribe abarca el espacio de tiempo situado entre los siglos XVIII y XX, en el plano más general y en Brasil. La historiografía que trata de la mujer, del magisterio y de la feminización de la profesión es el soporte para la comprensión del proceso de constitución de las identidades y de la profesionalidad de la mujer-profesora. El estudio indicó que, aun sometida a fuerte resistencia, la presencia femenina en el ámbito de la vida pública y profesional siempre ha sido una realidad. Demostrando que la conciencia sobre el papel de sujeto histórico y de la historia es fundamental -sea para mujeres, sea para hombres-, para la comprensión y efectiva participación de los procesos históricos.
Palabras clave: Profesora, Profesionalismo, Identidad.
Introdução
O texto se propõe a fazer um desenho das representações sobre o sexo feminino em nosso país, demonstrando a condição de menoridade social e política que compõe tais representações e que alcança a constituição da profissionalidade da mulher-professora, afetando o modo como constitui suas identidades e subjetividade.
A retomada histórica dessas representações é realizada na primeira parte do texto numa tentativa de mapear as concepções sobre a mulher formuladas no interior de uma sociedade com importante matriz europeia que privilegia o homem branco e suas necessidades, reproduzindo entre nós o pensamento androcêntrico do universal masculino.
Na sequência a discussão é ampliada para o âmbito do magistério e de suas relações com o feminino como força de trabalho massiva, a partir da República - e de seu ideário positivista de desenvolvimento por meio da ordem -, que utilizou a mulher e características próprias do seu gênero como modelo de profissional adequado(a) à docência.
Ao final são tecidas considerações que analisam como esse repertório, de representações históricas sobre o gênero feminino e o magistério, interfere no processo de construção da profissionalidade e das identidades das mulheres-professoras.
O estudo, desta etapa da pesquisa, foi bibliográfico e recorreu à historiografia para se efetivar, apresentando resultados parciais que refletem os limites presentes em todo e qualquer levantamento desta natureza, exatamente por implicar na aproximação de um objeto tão complexo e mutante quanto o humano.
Feminino e Masculino: recusa e sedução
O imaginário sobre o sexo feminino oscila, ao longo da história, entre a lascívia e a santidade esbarrando em todas as gradações existentes no intervalo entre essas extremidades. Com o Renascimento dos séculos XV e XVI, a, anteriormente, demoníaca figura da mulher sedutora e feiticeira começou a ganhar novos contornos até assumir o cariz oposto de pureza e recato. A primeira imagem - aquela que nos remete à ideia do feminino como sexo ardiloso -, certamente tem origem no comportamento misógino que nos acompanha desde os primórdios da humanidade. Numa referência ao trabalho de Jean Delumeau sobre a história da misoginia, Mary Del Priore (1993) anota que:
Segundo ele, a veneração à mulher e o medo masculino contrabalançaram-se ao longo das transformações sofridas pelas diversas sociedades humanas. Neste quadro, a maternidade teria sempre significado um mistério profundo. O medo que a mulher inspiraria ao outro sexo viria deste mistério, fonte de terrores, tabus e mitos, e que fazia do corpo feminino o ‘santuário do estranho’ e do singular. A mulher parecia-se com a ponta de um continente submerso do qual nada se sabia. Ao mesmo tempo capaz de atrair e seduzir os homens, ela os repelia através de seu ciclo menstrual, seus cheiros, secreções e sucos, as expulsões do parto. Semelhantes impurezas cercavam a mulher de interdições e ritos purificatórios. Juíza da sexualidade masculina, a mulher era ainda estigmatizada com a pecha da insaciabilidade. Seu sexo assemelhava-se a uma voragem, um rodamoinho a sugar desejos e fraquezas masculinas. Unindo, portanto, o horrendo e o fascinante, a atitude ameaçadora da mulher obrigava o homem a adestrá-la. Seria impossível conviver impunemente com tanto perigo, com tal demônio em forma de gente. (DEL PRIORE, 1993, p. 35).
Talvez esse medo dos “mistérios” femininos possa ajudar a entender a invisibilidade que o homem, nas mais diferentes sociedades e épocas, se esforçou para imprimir às mulheres seja escravizando-as, seja confinando-as à casa. A tarefa de silenciar-lhes foi tornada frutífera não apenas para aquietar os temores masculinos de sucumbir a uma suposta insídia astuciosa própria da mulher. Objetivos mais pragmáticos se impuseram e, de forma bastante sutil, o feminino foi ganhando uma configuração de fragilidade até encarnar-se de subalternidade e dependência frente ao masculino porque essa era a representação requerida e estratégica para o sucesso de três projetos de peso: a nova ordem capitalista; a colonização dos territórios invadidos; e a modernidade. Afinal esses três projetos dividiram o ideal de uma sociedade baseada na família nuclear guiada pelo pai, organizada e cuidada pela mãe e respeitada pelos filhos.
Assim, após ser burilada por longo tempo, por volta dos finais do século XIX e princípios do XX, a imagem prevalente da mulher era a da santa abnegada que “[...] prestava-se admiravelmente bem para referendar o mito da inferioridade biológica que vinha impregnando também o discurso dos evolucionistas.” (ALMEIDA, 1998, p. 18). O ser débil abrigado pelo corpo feminino deveria ser preservado dos transtornos e do burburinho da vida pública dedicando-se especialmente aos cuidados maternais e familiares. Tal era o postulado disseminado pelo pensamento republicano e positivista daquele período.
Princípio cordatamente aceito e confirmado por uma sociedade tributária do arcaísmo cultural português que nos impregnou com seus costumes patriarcais, sua submissão aos cânones católicos e a rigidez no tratamento com o sexo feminino considerado menor e, portanto, passível da tutela masculina primeiro sob a figura do pai e, a seguir, sob a do marido.
Chancelada por este modelo de pensamento a sociedade brasileira, construída a partir dos referenciais da Modernidade, o reproduziu muito bem de modo que o feminino inscreveu-se em nossa cultura como sexo frágil e merecedor de proteção. Explicitando, porém uma ambiguidade resultante da matriz portuguesa da nossa formação cultural. De um lado, dogmatismos e vieses medievais. De outro, os ideais Modernos de “[...] ordem, verdade, razão, objetividade, emancipação universal, [...] fundamentos definitivos de explicação, [...] claras distinções entre público e privado, etc.” (NICOLACI-DACOSTA, 2004, p. 83).
Ambiguidade que pode ter contribuído para a difusão da ideia de que a mulher pode e deve ser subjugada, menosprezada, diminuída social e profissionalmente, destoando completamente do idílio de proteção ao feminino que envernizava os discursos masculinos e introduzindo um desequilíbrio entre o abrigo e o desamparo que gera instabilidade nas representações que recaem sobre o gênero feminino as quais, muito provavelmente, o afetam em vários campos da existência.
Mulheres, capitalismo, patriarcalismo e disciplinas.
Os livros de história tratam de grandes mestres como Sócrates, Platão, Quintiliano, Aristóteles e tantos outros representantes do sexo masculino. Mas, onde estavam as mulheres? Nas cozinhas, nos quartos, “[...] confinada[s] aos gineceus, fosse[m] ela[s] mãe[s], aia[s] ou ama[s] de leite, liberta[s] ou escrava[s], o objeto de seus ensinamentos não passou para a história.” (GALVÃO; LOPES, 2010, p. 59-60). Quando sabemos que elas:
[...] sempre ensinaram a vida e a morte. Elas ensinam a andar, a falar (a língua não é materna?), a vestir, a comer. Encomendam e pranteiam os mortos da família e da cidade. Tudo isso as mulheres faziam antes que a escola fosse um espaço ocupado quase integralmente por elas. (GALVÃO; LOPES, 2010, p. 59).
Esse binarismo que contamina o pensamento ocidental opondo homem/mulher, pobre/rico, público/privado, razão/emoção, dentre outros tantos é extremamente nocivo, sobretudo, sobre a necessária aceitação do diferente, do diverso, do outro como elemento da realidade da qual, bem sabemos, não podemos nos esquivar. Contudo, as raízes patriarcais e androcêntricas plantadas pelo colonizador europeu ainda hoje alimentam a sobrevivência do pensamento binário, excludente e machista que insiste em subjugar o desigual. Situação agravada pela questão de classe social, carimbo nefasto das sociedades capitalistas.
Tomando a Inglaterra, berço da Revolução Industrial, como cenário de análise pode-se verificar que o casamento entre o pudico pensamento vitoriano e o voraz ideário capitalista promoveu, no século XIX, o agravamento da crise vivida por aquela sociedade que enfrentava as novidades de uma ordem social e econômica em consolidação e, em tudo, diferente da sua antecessora. Mudanças que trouxeram à tona a discussão sobre o papel da mulher na vida pública.
Tida como baluarte da moral e da família a mulher moldava-se à perfeição para o papel de moralizadora da nação atendendo à seguinte lógica: “[...] se as mulheres podiam exercer uma importante influência na esfera privada, [...] poderiam exercer um importante papel, também, na esfera pública da sociedade, trabalhando em prol de reformas morais e sociais.” (CHAMON, 2005, p. 56). A tarefa era das mulheres em geral, mas deveria ocorrer de formas diferentes no interior das classes sociais às quais pertenciam.
A parcela burguesa das mulheres assumiu um “trabalho” de caráter moralizador e ideológico, pois “[...] o prestígio de um homem era, pelo menos em parte, medido pela capacidade ociosa de sua esposa [...]”, de modo que esse segmento da população feminina recebeu a tarefa “[...] de administrar o interior de suas belas casas, a numerosa família e a criadagem, construindo uma moral doméstica reforçadora da ideologia patriarcal.” (CHAMON, 2005, p. 60).
Estava, naquele momento, sendo tramado um engenhoso enredo para sustentar a lógica do poderio econômico centrado na figura masculina. De um lado, o pensamento vitoriano conclamando a parcela elitizada do sexo feminino a atuar em favor da moralização e da difusão de valores patrióticos na esfera pública, especialmente por meio do trabalho filantrópico, com destaque para o ensino que se prestava tanto ao papel de “[...] propagação do ideal doméstico de feminilidade [...]”, docilidade e submissão, quanto ao de “[...] regulador da distância entre as mulheres das diferentes classes sociais [...]” (CHAMON, 2005, p. 56), numa manobra para manter sob controle, não apenas as operárias, mas toda a classe trabalhadora.
De outro lado a ideologia capitalista, ao arregimentar largamente junto às camadas pobres a força de trabalho feminina - e também a infantil-, como forma de ampliar a mais-valia, explicitou seu apelo preferencial pelos interesses econômicos em detrimento daqueles ligados à ideologia patriarcal. A força deste apelo atingiu a população feminina que também se dividiu tomando como referência a classe social. Nas palavras de Del Priore (1993, p. 25) “[...] ao estudar a condição feminina, não se pode ter a ingenuidade de crer numa solidariedade de gênero [...]” que supere todas as outras diferenças que distanciam as mulheres como etnia, credo, estrato econômico e etc.
Ademais, tais manobras além de avalizarem a distinção do trabalho feminino nas diferentes classes sociais, acirraram também as disputas entre trabalho feminino e masculino alvejando “[...] a ordem tradicional das relações de gênero, sustentada pela ideologia patriarcal, em que o marido dirigia e coordenava o trabalho de sua família [...]” (CHAMON, 2005, p. 59).
Convocou-se a camada elitizada do sexo feminino para atuar, por meio do trabalho filantrópico, em parceria com o sistema produtivo auxiliando-o a manter o estrato popular de suas representantes sob controle e aprofundou-se a vulnerabilidade das relações de gênero no interior das famílias de cepa patriarcal justificando, inicialmente, os salários menores pagos às mulheres e, posteriormente, incentivando-as a deixarem seus postos de trabalho e a exercerem sua “natural” aptidão para se dedicar a “pôr a casa em ordem” e a moralizar a conduta e o comportamento de familiares e pessoas próximas. “Aparentemente contraditórias, estas duas ações – uma no plano ideológico e moral, a outra no plano econômico e social – eram, na verdade, convergentes.” (CHAMON, 2005, p. 65). Ou seja, tanto as mulheres burguesas, quanto as operárias foram usadas para atender aos interesses capitalistas e, ao mesmo tempo, para subsidiar a ação do Estado que investia em políticas públicas reprodutoras da ideologia patriarcal.
Aí se evidencia que, para além da questão econômica, existe a problemática ligada ao gênero, ou seja, o modo como aquela sociedade representava as diferenças entre os sexos de alguma forma facilitou ou naturalizou a utilização da mulher de diferentes segmentos econômicos como massa de manobra do sistema produtivo. Afinal, “[...] a luta no terreno cultural mostrava-se (e se mostra), fundamentalmente, como uma luta em torno da atribuição de significados – significados produzidos em meio a relações de poder.” (LOURO, 2008, p. 21).
Esta é uma análise complexa porque envolve duas questões de peso na construção da história: sistema produtivo e relações entre os sexos. O primeiro, de cunho capitalista, unicamente interessado em lucrar e despossuído de qualquer pudor para alcançar esse objetivo. Já as relações entre os sexos, historicamente conflagradas, foram intensamente agravadas pelo acirramento das disputas alimentadas pelo modo de produção capitalista levando à criação de “[...] movimentos de resistência feminina [...] em uma tentativa de luta pela equalização das relações de gênero, tais como: união das mulheres trabalhadoras, reivindicação por salários iguais, socialização do trabalho doméstico etc.” (CHAMON, 2005, p. 61).
Movimentos que, mais adiante, se mostraram infrutíferos diante da supremacia do modo de produção que contrapôs mulheres e homens. Os últimos, em defesa de seus postos de trabalho “[...] passaram a assumir, no final do século XIX, uma postura separatista e discriminatória para com as mulheres que procurassem ingressar em uma profissão.” (CHAMON, 2005, p. 61). Perdida a batalha pela igualdade de direitos e salários “[...] muitas mulheres se uniram aos seus maridos na luta por um salário único do homem provedor.” (CHAMON, 2005, p. 61).
Não há dúvida de que tanto o patriarcalismo, quanto o capitalismo não pouparam esforços para difundir e consolidar mais e mais as prerrogativas de suas ideologias, contudo é importante mencionar a atuação ardilosa do “poder disciplinar” como instrumento reforçador dos ímpetos dominadores de tais ideologias. Com origens detectadas, por Foucault, entre os séculos XVII e XVIII, “as disciplinas” compõem o:
[...] momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma ‘anatomia política’, que é também igualmente uma ‘mecânica do poder’, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. (FOUCAULT, 1991, p. 127).
É óbvio que Foucault não está se referindo a um sexo específico, mas aos humanos como espécie. O poder disciplinar que incide sobre os corpos humanos é uma estratégia muito mais sofisticada e sutil do que aquela utilizada pela mais-valia que, limitando-se a explorar a força de trabalho tendo em vista o lucro, conduz os corpos à exaustão e ao esgotamento físico, necessitando de substitutos em algum momento da jornada. É também muito mais perspicaz do que as formas de controle do patriarcado e do masculino universal que propagam o medo e vociferam a inferioridade do sexo oposto.
Esta “anatomia política” da qual fala Foucault (1991, p. 127) “[que] fabrica corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’, [que] aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”, é uma construção minuciosa engendrada detalhe a detalhe, pois “[...] para o homem disciplinado, como para o verdadeiro crente, nenhum detalhe é indiferente, mas menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer apanhá-lo.” (FOUCAULT, 1991, p. 129).
A questão de fundo que se esconde no patriarcado, no capitalismo e nas disciplinas é a que diz respeito ao lugar do sujeito nas relações entre o saber e o poder. Relações que atravessam a história conduzindo os processos de sujeição dos escravos, das crianças, dos loucos, dos fisicamente fracos, e, sem dúvida, a sujeição das mulheres.
O poder sobre o corpo, sobre as vontades. O exercício do poder. Não é a demonstração do poder, ou a imposição do poder ou, ainda, a outorgação do poder. É o poder atuando por meio de uma anatomia que conforma, esculpe, ajusta os corpos, mas não para deles se apossar no sentido literal. A posse é figurada, porque o poder exercido pela disciplina “[...] dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado ‘aptidão’, uma ‘capacidade’ que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita.” (FOUCAULT, 1991, p. 127). Neste cenário, à mulher cabe procriar, cuidar do corpo para esse fim. À mulher são bem-vindas as profissões “maternais”. À mulher, o espaço doméstico. À mulher, o recato e o silêncio.
Embora, como já dito, inúmeras barreiras tenham sido transpostas pelo sexo feminino ainda não conseguimos chegar ao ponto em que a História seja palco para representações e relações de gênero equilibradas, justas, equânimes.
Para exemplificar essa morosidade histórica eis a contundência de Swain (2009), ao se reportar a vários casos de violência contra mulheres ao redor do mundo. Casos repercutidos nas mídias e que, desafortunadamente, retratam:
Meninas e jovens vítimas do tráfico internacional de mulheres destinadas à prostituição – seres humanos convertidos em orifícios a serem penetrados e usados, essas vidas não importam. Elas servem a um sistema fundado no e pelo patriarcado e pelo dispositivo da sexualidade, que destila, nos discursos fundadores do humano, na biologia, no sexo e nas práticas da sexualidade, a sagração da vida. Instaura-se aqui, de fato, não a vida, celebrada em termos de liberdade, escolha, plenitudes, mas o existir, apenas. (SWAIN, 2009, p. 389-390).
Poder, classe social, sexismo: questões dolorosas que implicam nas posições ocupadas pelos sujeitos e que, apesar dos vigorosos esforços de libertários(as), progressistas e feministas, persistem na pauta da História recente.
As Mulheres e o Trabalho: o magistério como uma das portas de entrada para o mundo público
A inserção da mulher nos espaços público e profissional ao longo da história no Brasil foi, desde o início, um processo delicado, sobretudo pelo legado europeu do masculino universal agravado pelos pressupostos republicanos de liberdade de participação política, de igualdade perante as leis e de frugalidade em nome do bem maior da coletividade. Com isto estou dizendo que a liberdade, a igualdade e a frugalidade anunciadas pela República consideravam como seu potencial portador o sexo masculino já que à mulher se havia consagrado o espaço privado da casa, fato que por si justificava sua exclusão da dimensão pública da vida em sociedade, exceção feita às atividades profissionais ligadas ao cuidado e à formação como a enfermagem e o magistério.
O raciocínio positivista que fundamentou os primórdios da República no Brasil esforçou-se por delegar ao sexo feminino a incumbência de difundir valores morais e familiares adequados aos seus princípios, ajustando-se perfeitamente às referidas profissões e à concepção de que a instrução da mulher só teria sentido se trouxesse algum benefício ao universo familiar e privado e, é óbvio, se irradiasse seus ímpetos moralizadores para a esfera pública. E, dificilmente, será identificado lugar mais propício à disseminação de ideias e à intervenção estatal na ordem social do que a escola de forma que “[...] o magistério de crianças configurou-se bastante adequado ao papel da mulher como regeneradora da sociedade e salvadora da pátria [...]” (ALMEIDA, 1998, p. 33).
Tornadas veículos de disseminação de uma moralidade masculina e republicana a mulher-professora e a escola compuseram o cenário educativo do Brasil do século XIX, que:
[...] poderia-se afirmar, constitui-se no século da ‘invenção’ da forma escolar moderna, modelo de intervenção na ordem social que, no limite, pode ser descrito como um dispositivo que separa crianças, jovens e adultos de seus núcleos sociais primários para recolhê-los, em espaço fechado, por um determinado número de horas e dias do ano, segundo uma rotina programada para cada dia [...]. (GONDRA, 2008, p. 148).
No entanto, outro dado precisa ser destacado no que diz respeito especificamente à entrada da mulher no magistério. Pode-se dizer que foi um processo desencadeado por uma radical alteração no perfil das famílias provocada pela industrialização que gerou necessidades econômicas novas no interior dos lares e, também, promoveu o desprestígio do magistério como profissão transformando-o “[...] de uma ação eminentemente masculina para uma atividade feminina.”, configurando a feminização da profissão como um “produto da modernidade capitalista.” (GONÇALVES, 2005 apud CHAMON, 2005, p. 11). Ou seja, o processo foi menos um esforço das mulheres para se colocarem na profissão e no mundo do trabalho do que um “ajustamento” do sistema produtivo comandado pelo universo masculino dominante na modernidade.
Ter o direito de frequentar a escola já foi consideravelmente difícil para as mulheres tanto que, ao saírem em defesa deste direito, as pioneiras feministas adotaram um discurso que “[...] caracterizou-se dentro dos princípios e dos conceitos da ideologia masculina” (ALMEIDA, 1998, p. 34), pois confrontar o establishment não teria sido inteligente. De modo que optaram sagazmente por utilizar brechas nas regras machistas e criaram atalhos para que pudessem se inscrever de modo legítimo na vida social. Assim,
[...] o movimento, liderado por mulheres pertencentes a uma elite intelectual e econômica, revelou um raro sentido de argúcia e sensatez ao buscar a cooptação e o consentimento, como aconteceu, por exemplo, no Brasil e em Portugal, em vez da revolta declarada, como na Inglaterra e nos Estados Unidos. (ALMEIDA, 1998, p. 34).
A estratégia das ativistas de reproduzirem o discurso machista, republicano e positivista foi vitoriosa e assim conseguiram abrir as portas para a escolarização das mulheres das camadas não pertencentes à elite. Claro está que a educação à qual tiveram acesso era organizada e estruturada por homens: “Portanto, apesar de conceder-se às mulheres algumas parcelas do saber, tanto este como o poder não se distribuíram equitativamente, nem sequer significaram a liberação das mulheres.” (ALMEIDA, 1998, p. 35). Mesmo porque o currículo para elas era voltado aos cuidados específicos com a casa e a família. Podemos dizer que receberam permissão para estender o olhar para além das janelas, mas não para cruzá-las. Tal foi e é o jogo do poder que se estabelece nas relações: cede-se um pouco, recua-se outro tanto e os avanços vão lenta e tensamente sendo produzidos até que em algum momento hábitos e crenças são rompidos e novo modo de pensar e organizar as relações se instaura.
Identidade e Profissionalidade sob as Luzes das Representações do Gênero Feminino
Com uma herança cultural pouco favorável ao reconhecimento da mulher como sujeito de direitos, tanto quanto os seus pares do sexo oposto, podemos imaginar de antemão que construir uma identidade profissional docente não tem sido um processo exatamente livre de intercorrências para as professoras.
Além do legado androcêntrico e patriarcal concorre, para a insalubridade da constituição da profissionalidade e das identidades da mulher-professora, a organização capitalista das relações de produção que, baseadas na exploração salarial e na fragmentação do trabalho pela via da expropriação do saber, atingem especialmente as mulheres cuja predominância como força de trabalho na educação pode ser atribuída à retirada dos homens na busca por salários mais vantajosos em profissões de maior reconhecimento, deixando ao sexo feminino a “pouco nobre” - e economicamente desvalorizada -, atividade de ensinar às crianças.
Outro fator que merece destaque nesse processo de elaboração de identidades e profissionalidade pertence à ordem das representações e diz respeito ao amplo acolhimento social da ideia de uma “[...] ética do amor e da virtude como uma característica inerente ao fazer pedagógico [...]” (CHAMON, 2005, p. 17), reforçando a simbolização do ensino como atividade talhada à perfeição para ser desempenhada por mulheres.
O fato de estar culturalmente subalternizada em relação ao homem supostamente “autoriza” a responsabilização da mulher pela desqualificação da profissão. Carvalho (1996, p. 80), afirma que “[...] é particularmente relevante para a compreensão do trabalho docente o conceito de qualificação, repensado a partir da noção de divisão sexual do trabalho.” Reportando-se a um estudo de Souza-Lobo (1991) sobre operárias paulistas, a autora destaca: “[...] o que parece ocorrer é que, uma vez feminilizada, a tarefa passa a ser classificada como ‘menos complexa’. [...] o sexo daqueles(as) que realizam as tarefas, mais do que o conteúdo da tarefa, concorre para identificar tarefas qualificadas e não qualificadas.” (SOUZA-LOBO, 1991, p. 150-151 apud CARVALHO, 1996, p. 80).
Observação que ajuda a explicar a resistência do sexo masculino à massiva feminização da profissão de professor(a). O que não deixa de ser curioso, pois os homens buscavam profissões mais “qualificadas” para si e, ao mesmo tempo, tentavam “proteger” o magistério da iminente “desqualificação” que a entrada das mulheres prometia.
Embora pareça algo extremamente natural nos dias de hoje, a feminização do magistério foi alvo de fortes resistências tanto por parte de associações profissionais de professores – majoritariamente representadas e representando professores homens -, que a entendiam como prejudicial à profissionalização, quanto por parte de setores conservadores que atribuíam à mulher somente o espaço privado do doméstico. (HYPOLITO, 1999, p. 88).
Comportamento que reforça a tese de Souza-Lobo a respeito da relação entre o gênero e a atribuição do significado de qualificação/desqualificação das profissões; e, explicita a força do movimento de resistência à entrada maciça da mulher no magistério, posto que os professores julgavam ser um entrave para a profissionalização e as políticas de valorização salarial e de melhoria das condições de trabalho da categoria, num indicativo claro da menoridade e inferioridade cultural e intelectual com as quais as mulheres se defrontaram ao longo do tempo.
Contudo, Hypolito afirma que seria “[...] inadequado dizer que as professoras simplesmente reforçaram as políticas de controle e de dominação sobre o magistério [...]” (1999, p. 89), ao contrário “[...] muitas vezes silenciosas, introduziram formas específicas de resistência.” (HYPOLITO, 1999, p.89), já que o silêncio como elemento fundamental da comunicação, comporta uma “política do silêncio” que determina quem tem o poder sobre o falar e o calar, conduzindo ao silenciamento que “[...] pode ser considerado tanto parte da retórica da dominação (a da opressão) como de sua contrapartida, a retórica do oprimido (a da resistência).” (ORLANDI, 2010, p. 29). De forma que a mulher construiu ao longo do tempo uma forma de resistir que, por sua delicadeza e quietude, muitas vezes sequer foi percebida pelo objeto da resistência. Frente ao silenciamento, a ela imposto, ergueu uma linha de silêncio estratégico em torno do qual as mudanças a favor do feminino foram sendo edificadas e consolidadas, atuando como uma espécie de esboço de uma identidade e de uma subjetividade propriamente femininas.
Atualmente as mulheres utilizam cada vez menos o “silêncio” e/ou a “delicadeza” diante dos dispositivos de sujeição. Ao contrário, suas vozes e posicionamentos têm reverberado por todas as esferas da sociedade, questionando esses dispositivos de sujeição, destacadamente, a sexualidade. Creio que isso se deva à assunção de novas posições como “sujeito” do discurso que têm colocado para o sexo feminino questionamentos a respeito dos efeitos do poder e do saber sobre a constituição do ser mulher.
São questões da ordem da ontologia que interrogam o como, não o porquê: Como nos tornamos objetos e sujeitos do conhecimento? Como nos tornamos objetos e sujeitos do poder? Como nos representamos para nós e para o outro? Como usamos o saber frente ao poder? Quem podemos nos tornar?
O raciocínio construído com a ajuda da historiografia permite afirmar que a força das representações subalternizadas do gênero feminino ao longo do tempo não foi suficiente para mantê-lo na obscuridade do anonimato. Ao contrário, tais representações parecem ter funcionado como o móbil para que as mulheres, a partir das condições concretas da sua existência, assumissem o papel de protagonistas, ao lado do sexo masculino, da História e das suas histórias. Saber-se “sujeito” tem conferido à mulher a sabedoria de, não apenas questionar-se, mas posicionar-se enquanto tal, posto que desta consciência emanam os elementos que constituem suas identidades: de mulher e de professora.
Referências
ALMEIDA, J. S. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo: UNESP, 1998.
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Notas