Caderno Temático
CHARLOT E DURKHEIM: APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO DO HOMEM COM O SABER
CHARLOT AND DURKHEIM: NOTES ON THE RELATIONSHIP OF MAN WITH KNOWLEDGE
CHARLOT Y DURKHEIM: APUNTAMIENTOS SOBRE LA RELACIÓN DEL HOMBRE CON EL SABER
CHARLOT E DURKHEIM: APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO DO HOMEM COM O SABER
Olhar de Professor, vol. 21, núm. 1, 2018
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepção: 03 Março 2018
Aprovação: 03 Junho 2018
Resumo: Este artigo apresenta reflexões sobre a relação do homem com o saber nas perspectivas de Émile Durkheim (1963, 1978, 2011) e Bernard Charlot (2000, 2001, 2005). O objetivo é refletir e discutir a respeito das teorias epistemológicas destes autores sobre a construção do saber e sua relação nos diversos contextos: educacional, familiar e social. Esta discussão tem caráter multidisciplinar e tem a intenção de provocar reflexões em estudiosos que se interessem pela construção do conhecimento em diferentes contextos. A abordagem metodológica, do ponto de vista dos procedimentos técnicos, parte-se de um enfoque argumentativo de caráter bibliográfico. Nossos resultados apontam que as teorias aqui apresentadas, configuram-se, como obras inspiradoras, de leituras muito relevantes para o pensar contemporâneo da educação, bem como para o processo de ensino e aprendizagem. Dentre as principais contribuições da teoria durkheimiana, destacamos, ainda que dentro de uma perspectiva funcionalista, o enaltecimento da educação no âmbito humano e social. As contribuições de Charlot destacam-se com mais força, por tratar-se de um teórico contemporâneo que analisa o campo da educação sob múltiplos enfoques. Os aspectos mais relevantes de sua teoria residem em uma sociologia do sujeito ao pensar os alunos como seres sociais, humanos e singulares, que aprendem além dos muros da escola.
Palavras-chave: Relação do homem com o saber, Conhecimento, Epistemologia.
Abstract: This article presents reflections on the relation between man and knowledge in the perspectives of Emile Durkheim (1978, 2006, 2011) and Bernard Charlot (2000, 2001, 2005). The objective is to reflect and discuss about the epistemological theories of these authors on the construction of knowledge and its relation in different contexts: educational, family and social. This discussion has a multidisciplinary character and is intended to provoke reflections in scholars who are interested in the construction of knowledge in different contexts. The methodological approach, from the point of view of technical procedures, is based on an argumentative approach of bibliographical character. Our results point out that the theories presented here are configured as inspiring works of readings that are very relevant to the contemporary thinking of education, as well as to the teaching and learning process. Among the main contributions of the Durkheimian theory, we highlight, albeit from a functionalist perspective, the enhancement of education in the human and social spheres. Charlot's contributions stand out more strongly because he is a contemporary theorist who analyzes the field of education from multiple perspectives. The most relevant aspects of his theory lie in a sociology of the subject by thinking of students as social, human, and singular beings who learn beyond the walls of the school.
Keywords: Relationship of man with knowledge, Knowledge, Epistemology.
Resumen: Este artículo presenta reflexiones sobre la relación del hombre con el saber en las perspectivas de Émile Durkheim (1978, 2006, 2011) y Bernard Charlot (2000, 2001, 2005). El objetivo es reflexionar y discutir acerca de las teorías epistemológicas de estos autores sobre la construcción del saber y su relación en los diversos contextos: educacional, familiar y social. Esta discusión tiene carácter multidisciplinario y tiene la intención de provocar reflexiones en estudiosos que se interesen por la construcción del conocimiento en diferentes contextos. El enfoque metodológico, desde el punto de vista de los procedimientos técnicos, se parte de un enfoque argumentativo de carácter bibliográfico. Nuestros resultados apuntan que las teorías aquí presentadas, se configuran, como obras inspiradoras, de lecturas muy relevantes para el pensamiento contemporáneo de la educación, así como para el proceso de enseñanza y aprendizaje. Entre las principales contribuciones de la teoría durkheimiana, destacamos, aunque dentro de una perspectiva funcionalista, el enaltecimiento de la educación en el ámbito humano y social. Las contribuciones de Charlot se destacan con más fuerza, por tratarse de un teórico contemporáneo que analiza el campo de la educación bajo múltiples enfoques. Los aspectos más relevantes de su teoría residen en una sociología del sujeto al pensar a los alumnos como seres sociales, humanos y singulares, que aprenden más allá de los muros de la escuela.
Palabras clave: Relación del hombre con el saber, Conocimiento, Epistemología.
Introdução
A relação do homem com o saber é estudo recorrente para muitos estudiosos, pois há o intento de melhor compreensão do homem no que se refere à natureza da realidade do sujeito e sua relação/construção como conhecimento. Esta tônica atravessou os tempos com Aristóteles (384 - 322 a.c) afirmando que o que está na mente, passa antes pelos sentidos; com Sócrates (469-399 a.c) e sua célebre frase: "Conhece-te a ti mesmo"; com René Descartes (1596-1650) e a elaboração da incerteza metódica; com Hegel (1770-1831) e sua afirmação de que antigos conhecimentos são o alicerce para construção de novos; com Marx (1818 - 1883) afirmando que quanto mais o homem pensa (faz trabalho), mais se afasta das barreiras naturais; com Weber (1864 - 1920) e as ações sociais como objeto de estudo.
Ainda, nas décadas de 1960 e 1970 o termo "relação com o saber" e outras expressões são encontradas nos estudos de sociólogos e psicanalistas. Em 1970, Pierre Bourdieu (1930-2002) usou o termo "relação com a linguagem".
Para Durkheim (1858 -1917) a identidade e a subjetividade do sujeito na construção do conhecimento não são importantes e para Bernard Charlot (1944) a construção do saber se dá a partir da relação do sujeito com ele mesmo, com os outros e com o mundo, sendo a identidade e a subjetividade consideradas e de vital importância.
Constatadas as discussões de alguns autores a respeito deste tema ao longo dos tempos até os dias atuais, há o interesse em apresentar as teorias de Durkheim e Charlot de maneira mais profunda e posteriormente, estabelecer um diálogo entre elas, uma vez que ambos teóricos são de épocas distintas, mas tiveram formações parecidas e se debruçaram para entender a relação do homem na construção do conhecimento. Estes estudiosos mencionados, em destaque, Durkheim e Charlot, contribuíram e contribuem de forma valorosa para o pensar contemporâneo da educação e a construção do conhecimento científico.
Diante disso, o presente artigo dissertará em seções distintas sobre as principais concepções do sujeito na construção do saber de acordo com Durkheim e Charlot, em outra seção, será feito um diálogo entre tais concepções, bem como, um ressalte da importância destas teorias para os dias atuais, bem como para o processo de ensino de aprendizagem.
Da relação do homem com o saber: ótica de Durkheim
David Émile Durkheim nasceu em Épinal, França em 1858. Estudou no Colégio d’Epinal e no Liceu em Paris e na Escola Normal Superior. Após, lecionou em vários liceus franceses, Universidade de Bordeaux e Sorbonne nas áreas de Educação, Sociologia e Pedagogia. Escreveu diversas obras: As Regras do Método Sociológico (1895); A Educação e a Sociologia (1922 - obra póstuma); A Educação Moral, (1925 - obra póstuma), entre outras, deixando um vasto patrimônio teórico em diversas áreas do conhecimentocomo Educação e Ciências Sociais.
Émile Durkheim foi filósofo, sociólogo, cientista político e antropólogo. Frequentemente é citado como o principal criador da Ciência Social Moderna e pai da Sociologia.
O conhecimento é estudado por Durkheim em sua totalidade, estando relacionado ao contexto cultural e histórico. Assim o conhecimento é visto como uma representação social, pois está associado a uma organização de causalidade que o constitui e o explica.
Durkheim viveu em uma época de mudanças significativas nos âmbitos cultural, econômico e social vigentes na Europa do fim do século XIX, as quais caminhavam para uma nova constituição social. A transição de uma sociedade fundiária e agrária medieval para uma sociedade urbanista e capitalista dirigida pelo pensamento da burguesia marcaram a época.
Esta transição social chegou também ao âmbito educacional, pois havia a necessidade de formação qualificada para atender às novas demandas instauradas pelo capitalismo no sentido de formar o cidadão dentro de um modelo idealizado para atuar na nova sociedade que se delineava. Assim, o progresso social estaria de acordo com a evolução educacional dosujeito. Diante disso, o pensamento do ideal educacional de Durkheim tem caráter pragmático e funcional, consonante com sua percepção do ideal social condizentes com a época em que viveu.
Durkheim é reconhecido por sua perspectiva funcionalista, pois a racionalidade pautava os métodos científicos na apuração e determinação dos fatos sociais. Para ele, a sociedade deveria ser mantida de maneira organizada, assim, estudava-a de acordo com critérios precisos e objetivos característicos das Ciências Naturais, a fim de constatação pura, compreensão, explicação e antecipação dos fenômenos sociais.
A educação é entendida como fenômeno social, e, na teoria durkheimiana, o ambiente escolar deve propiciar um ensino que objetiva a disseminação de conceitos, princípios e normas como meio de controle para a vida social passados de geração a geração.
A concepção de educação de Émile Durkheim, caracteriza-se como vital ferramenta para propagação de conhecimentos e construção histórica da humanidade, como componente de coesão social e ordem.
De acordo com o pensamento durkheimiano:
[...] a educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objetivo suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamadas pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destina. (DURKHEIM, 1978, p. 41).
Sendo assim, a ação de educar desde a infância, ademais de transmissão de conhecimentos e desenvolvimento físico e moral, leva à socialização dos sujeitos dentro de uma perspectiva idealizada, constituindo-se como uma moldagem desujeitos para a vida em sociedade. Educar, para ele, é sinônimo de preparar o sujeito para viver em uma comunidade.
Para Durkheim (1978, p. 66) “[...] o homem que a educação deve realizar, em cada um de nós, não é o homem que a natureza fez, mas o homem que a sociedade quer que ele seja; e ela o quer conforme o reclame a sua economia interna.” Sob este enfoque o fazer educativo reduz-se a adequar os estudantes a padrões culturais estabelecidos pela sociedade vigente, a fim de formar para o trabalho, vivência em sociedade, e, principalmente formar com vistas a prevenir ações e comportamentos ditos inadequados.
Convém destacar que na teoria durkheimiana, a identidade e a subjetividade dos aprendizes são desconsideradas, pois a prioridade não é formar sujeitos críticos, que realizem uma leitura e interpretação da sociedade em que vivem, mas sim, formar para cumprir as convenções sociais substanciais estabelecidas. Deste modo:
[...] a educação tem por objetivo superpor, ao ser que somos ao nascer, individual e associal – um ser inteiramente novo. Ela deve conduzir-nos a ultrapassar a natureza individual: só sob esta condição, a criança tornar-se-á um homem. Ora, não podemos elevar-nos acima de nós mesmos, senão por esforço mais ou menos penoso. (DURKHEIM, 1978, p. 42).
Na concepção de Durkheim, o professor tem um papel social, pois é visto como possuidor do conhecimento que organiza momentos de ensino para transmissão de normas de conduta, princípios morais e éticos que se esperam do sujeito para a vida em sociedade. Assim, para Durkheim (1963 apud TURA, 2006, p. 55) o professor é o “[...] intérprete das grandes ideias morais de seu tempo e de seu país.”
O professor precisaria ser uma figura respeitável, cautelosa e sensata de modo a encarar esta transmissão de conhecimentos, normas, condutas, valores e princípios como uma missão para moldar a coletividade de acordo com a época e sociedade vigentes, possuindo plena autoridade sob o aluno.
O aluno seria um sujeito passivo de pouca experiência, vulnerável e influenciável, inclinado a reproduzir o que o professor transmite, sendo um repositório de informações e doutrinado a assimilar o que é passado para reproduzir socialmente.
Na perspectiva de Durkheim (1978, p. 36) “[...] a ação exercida pela sociedade especialmente através da educação, não tem por objetivo ou efeito, comprimir o indivíduo, [...] desnaturá-lo, mas ao contrário, engrandecê-lo e torná-lo criatura verdadeiramente humana.” Na visão do autor, o sujeito que frequenta a escola se humaniza, pois para ele, a humanização não é possível sem a educação. Porém, esta humanização se refere à assimilação de conceitos, normas e valores para a vida em sociedade, desconsiderando características identitárias e subjetivas do sujeito, bem como suas experiências e conhecimentos prévios.
Deste modo, a relação com o saber para Durkheim tem uma essência puramente social, pois trata-se de uma ferramenta de perpetuação do patrimônio cultural e social da humanidade, sendo um conjunto de conceitos, crenças, culturas e normas de uma determinada ordem social. Assim, o produto da prática educativa, seria o afinado andamento da sociedade.
Da relação do homem com o saber: ótica de Charlot
Bernard Charlot é um estudioso contemporâneo que nasceu na França em 1944. Graduou-se em Filosofia e realizou Doutorado em 1985 na Universidade de Paris – Université Paris X – Nanterre, em Ciências da Educação. Atou como professor em diversas universidades em Paris, na Tunísia, em Portugal e na Grécia. Na atualidade, é professor na Universidade Federal de Sergipe – BR. Escreveu e organizou mais de 20 livros, traduzidos em 18 países, com destaque para as seguintes obras: A mistificação pedagógica (1979); Da relação com o saber: elementos para uma teoria (2000); Os jovens e o saber (2001); Relação com o saber, formação dos professores e globalização (2005); Educação e artes cênicas: interfaces contemporâneas (2013).
Atualmente, o principal tema de pesquisa e estudos de Bernard Charlot (2000, 2001, 2005) é a relação dos alunos com o saber e a escola. A teoria da relação com o saber foi elaborada no intento de compreender o insucesso escolar sob uma ótica distinta das teorias até então estudadas, mais precisamente nas décadas de 1960 e 1970, que atribuem o fracasso escolar à insuficiência cultural dos alunos ou à reprodução social. Charlot decide olhar para a relação do saber nas camadas populares da sociedade, enxergando estes sujeitos não como meros objetos de pesquisa, ou como marginalizados pela sociedade, mas como sujeitos com sua identidade e conhecimentos próprios, desejosos por aprender e ir em busca de um novo modo de vida.
Para Charlot (2000), a relação do homem com o saber se inicia na infância e segue por toda a vida do sujeito, pois ao nascer o indivíduo se depara com uma sociedade constituída, na qual, aprenderá com as relações estabelecidas e com as experiências vividas, contribuindo para uma criação coletiva da humanidade, na qual também se constrói, se constitui como homem, estabelece vínculos, conexões, compartilha e recebe conhecimento, tomando seu lugar no mundo. Assim, a relação com o saber é entendida como a “relação singular de um sujeito com o mundo, consigo mesmo e com os outros.” (CHARLOT, 2000, p. 78).
Esta relação do homem com o saber e consigo mesmo, segundo Charlot refere-se a: “[...] o ‘sentido’ e o ‘valor’ do que é aprendido está indissociavelmente ligado ao sentido e ao valor que o sujeito atribui a ele mesmo enquanto aprende (ou fracassa em sua tentativa de aprender).” (CHARLOT et al., 2001, p. 27). O sujeito só aprende o conhecimento que lhe interessa, ligado à sua identidade e subjetividade. Aquele conhecimento que o sujeito atribui uma relação com seus conhecimentos prévios, ou questões de interesse próprio são mantidos, são atribuídos sentido e valor.
A relação com o saber é também relação com o outro quando o sujeito desde a infância até a vida adulta, estabelece relações em seu convívio familiar, escolar e social e nestas esferas, compartilha conhecimento, reflete, indaga, reformula e finalmente, aprende o que deseja, o que lhe é interessante, o que lhe faz sentido. O sujeito aprende “[...] o que para ele são mais importantes, [...] correspondem melhor aquilo que ele é e pode ser – e que, portanto, valem mais a pena ser aprendidos.” (CHARLOT, 2001, p. 28).
Deste modo, a relação do homem com o saber é uma relação de identidade e subjetividade, pois “[...] o conceito de relação com o saber implica o de desejo: não há relação com o saber senão a de um sujeito; e só há sujeito ‘desejante’.” (CHARLOT, 2000, p. 81, aspas do autor). Assim, o homem faz suas escolhas com base em suas aspirações intimamente relacionadas à sua identidade que correspondem “[...] às suas expectativas, às suas referências, à sua concepção da vida, às suas relações com os outros, à imagem que tem de si e a que quer dar de si aos outros.” (CHARLOT, 2000, p. 72).
O saber como objeto de desejo proposto por Charlot (2000) traz a ideia de que o sujeito que deseja aprender vai em busca do conhecimento de forma autônoma, pois o desejo do saber está relacionado ao prazer em aprender.
Na teoria de Charlot há destaque para os múltiplos saberes existentes, cabendo ao sujeito, o importante papel de escolha destes, pois, para o autor há muitos saberes a serem aprendidos, muitas tarefas a serem realizadas, muitos vieses a serem considerados. Tal escolha, será uma reprodução do desejo deste sujeito, sendo o desejo fruto da identidade e subjetividade, das características pessoais e experiências de cada um, ou seja, as escolhas serão realizadas, quando houver um sentido para este sujeito. Deste modo:
O desejo do mundo, do outro e de si mesmo é que se torna desejo de aprender e saber; e, não, o ‘desejo’ que encontra um objeto novo, ‘o saber’ [...] Desse ponto de vista, dizer que um objeto, ou uma atividade, um lugar, uma situação, etc., ligados ao saber têm um sentido, não é dizer simplesmente, que têm uma ‘significação’ [...]; é dizer, também, que ele pode provocar um desejo, mobilizar, pôr em movimento um sujeito que lhe confere um valor. O desejo é a mola da mobilização e, portanto, da atividade; não o desejo nu, mas sim o desejo de um sujeito ‘engajado’ no mundo, em relação com os outros e com ele mesmo. (CHARLOT, 2001, p. 81-82, aspas do autor).
Charlot ainda destaca que há diferenças na relação do homem com o saber e com o aprender: “[...] no sentido estrito, dever-se-ia, portanto, distinguir a ‘relação com o aprender’ (a forma mais geral) da ‘relação com o saber’ (forma específica da ‘relação com o aprender’).” (CHARLOT, 2005, p. 74). A teoria de Charlot considera que o saber está relacionado com conhecer conceitos e teorias em diversas áreas do conhecimento, por exemplo. O aprender está intimamente ligado ao sujeito, às suas concepções. O sujeito aprende aquele conhecimento de uma maneira mais genérica, quando faz uso daquele conhecimento, apropriando-se dele e transformando-o em um saber. Compreende-se assim que, a epistemologia sob a ótica de Charlot se dá em momentos distintos: o aprender de maneira mais geral e o saber de maneira mais específica.
Apropriando-se desta relação entre saber e aprender no contexto educativo, e, em uma relação com o outro, com ele mesmo e com o mundo, Charlot (2005) destaca que o professor precisa estar ciente dos processos de saber e aprender dentro e fora de sala de aula, pois denomina “ideia de ensino” o processo que “[...] implica um saber a transmitir, quaisquer que sejam as modalidades de transmissão, que podem ser magistrais ou passar por processos de ‘construção’, de ‘apropriação’.” (CHARLOT, 2005, p. 90). Este ensino centra-se em três pontos: o aprender ou saber, que é o compartilhamento de conhecimento e o objetivo do ensino, o professor que é o mediador entre conhecimento e alunos, e, este último, que é denominado como aprendiz.
Convém salientar que para Charlot (2000), este aprendiz que se educa nos contextos familiar, social e escolar, é um sujeito que participa da construção destes contextos, expressando sua identidade, marcando sua singularidade. Para o autor, os contextos não moldam ou determinam estes sujeitos, mas sim, as suas relações construídas nesses contextos.
Para Charlot (2005), o processo educativo ocorre por si mesmo, mas também, constrói-se com a singularidade e mediação de muitos sujeitos. Para o autor, ninguém se educa somente para o trabalho, para atender às demandas sociais. Ninguém se educa sem um consentimento, sem uma colaboração neste contexto, sem uma mediação do outro. A educação é um processo que acontece a muitas mãos. Neste sentido, pode-se concluir que a educação é um direito humano e não uma mercadoria, é contribuição para o avanço cultural e humano, e, além disso, é humanizadora, pois o sujeito se permite ser construído pelos outros e contribuir na construção de contextos, isto é, construir.
Da relação do homem com o saber: uma discussão entre as óticas de Émile Durkheim e Bernard Charlot
Durkheim construiu uma teoria funcionalista e positivista, pois suas teorias e elaboração dos métodos científicos foram construídos com base nos estudos dos fatos sociais. Estudou a sociedade do ponto de vista objetivo e preciso para real constatação e interpretação dos fatos sociais, que para ele, são considerados como maneiras coercitivas de pensar e agir exteriores ao indivíduo. Charlot consolidou sua teoria no materialismo histórico-dialético, pois assumiu que sujeito e sociedade não podem se dissociar, sendo a história coletiva e individual uma construção do sujeito na mediação com os outros, com o mundo e com ele mesmo. Estes autores enxergaram de maneira distinta a aquisição de conhecimento, os papeis de professor e aluno e suas relações no processo educativo.
Para Durkheim (1978), o conhecimento é visto como uma representação social, relacionada ao contexto cultural e histórico. Ideais e princípios são transmitidos de geração a geração e a educação formal é a principal responsável por transmitir o conhecimento e moldar para a vida em sociedade. Charlot (2000) afirma que o conhecimento é construído através de relações estabelecidas com as outras pessoas, consigo mesmo e com o mundo, em diferentes contextos. Estas experiências acompanham o sujeito desde a infância até a vida adulta. Ambos os autores reconhecem que a construção do conhecimento é social, porém Durkheim desconsidera a contribuição individual nesta construção. Charlot reconhece que o conhecimento é construído em uma tríade: eu – o outro – o mundo.
Com relação a figura do professor, Durkheim (1978), acredita que este desempenha um papel estritamente social, sendo o detentor e transmissor do conhecimento, além de direcionador do ensino, responsável por propagar conceitos, valores, normas de conduta e padrões culturais, a fim de preparar os alunos para vida em sociedade e exercício pleno da cidadania. O aluno seria um sujeito passivo, repositório de informações, sem permissões para desenvolver a criticidade, para mostrar sua singularidade e identidade. O ideal educativo seria mais instrutivo do que criativo.
Na perspectiva de Durkheim (1978), o sujeito que frequenta os bancos escolares se humaniza, pois este processo só ocorre através da educação. Esta educação se refere à assimilação de normas de conduta e conceitos. As características subjetivas e identitárias do sujeito, suas experiências e conhecimentos prévios são desconsideradas.
Durkheim possui uma visão simplista de ensino, da relação com o saber, do aluno e do professor. Evidencia um papel autoritário para o professor, caracterizando a docência como uma missão, um dom, ao mencionar que “[...] não é de fora que o mestre recebe a autoridade: é de si mesmo. Ela não pode provir senão de fé interior.” (DURKHEIM, 2011, p. 43). No entanto, é necessário reconhecer que o contexto sócio histórico teve total influência sob a forma como esta concepção foi concebida. Também é necessário perceber que diante do funcionalismo e positivismo da teoria de Durkheim, é coerente que o ensino fosse visto como fato social com características que lhe são próprias como a generalização, pois o ensino se impõe a todos os sujeitos, como a coerção, sendo a moral e a disciplina os principais pontos a se considerar no ambiente de ensino, e como a exterioridade, considerando que o conhecimento é exterior ao sujeito.
Na perspectiva de Charlot (2005), o professor é figura fundamental no processo de ensino, pois comporta-se como mediador do conhecimento, preocupado em transmiti-lo de modo que o aluno construa seu saber de acordo com sua singularidade. O aluno aprende dentro e fora de sala de aula.
Para Charlot (2005), a educação acontece por si mesma e, também, constrói-se com a mediação e identidade de muitos sujeitos. Para ele, a educação é humanizadora, é direito humano, é construtora e construída, pois ninguém se educa somente para conviver em sociedade.
Charlot possui uma visão mais ampla da relação do homem com o saber, pois centra o homem como foco ao invés da sociedade. Charlot (2005) propõe que as pesquisas relacionadas à educação considerem os aspectos identitários e sociais dos sujeitos pesquisados. Segundo ele, não há diferenciação entre a singularidade e a sociabilidade de cada sujeito, todas as pessoas têm uma maneira de ser social e ser singular ao mesmo tempo.Assim, Charlot é contrário as ideias de Durkheim quando afirma que “[...] não se pode deixar de considerar o sujeito ao estudar-se a educação.” (CHARLOT, 2000, p. 34).
Cabe mencionar que a teoria de Durkheim não dialoga com a concepção atual de docência, que parte do princípio de que as práticas de ensino devem ser significativas de modo a subsidiar a construção do conhecimento, através de reflexões e indagações dos alunos em uma construção coletiva, não desconsiderando os conhecimentos prévios de cada aluno, suas experiências, interesses, cultura, enfim, sua identidade. Além disso, o professor, escola e comunidade devem contribuir para que a educação seja edificadora, na construção da cidadania. Charlot por ser contemporâneo, constrói um dialogismo entre sua teoria e tal concepção, para ele, o processo educativo se constrói dentro do sujeito. E ainda, os sujeitos estando inseridos em diversos contextos, educam-se, tais contextos não moldam o sujeito, pois a construção destes é feita pelos sujeitos.
Pensando na relação com o saber que o professor constrói no contexto de ensino e aprendizagem, Mendes et al. (2015, p. 897) destacam que essa relação “[...] é importante porque influi no processo de ensino e aprendizagem em sala de aula. Tal relação ainda expressa o modo como esse sujeito compreende o mundo, assim como também é uma expressão de seu interior e demonstra como esse sujeito aprende com o outro.”
Podemos destacar ainda na influência que as mudanças sociais tem provocado na educação e no papel do professor no processo de ensino e aprendizagem. Nesse contexto, assim como Libâneo (2002, p. 3), acreditamos que é necessária “uma reavaliação do papel da escola e dos professores”, pois essas mudanças têm exigido do professor mudanças nas suas práticas e no papel como professor, acrescentando a ele, inúmeras responsabilidades. Dentre elas podemos destacar a necessidade de superação das racionalidades técnicas (IMBERNÓN, 2011) e práticas que se limitam à transmissão de conteúdos. Isso nos faz pensar sobre o papel do professor no processo de ensino e aprendizagem apresentada por Durkheim, onde embora o papel do professor seja o de direcionador do ensino, buscando preparar os alunos para vida em sociedade e exercício pleno da cidadania, sua visão sobre o papel do professor aparece ancorada na racionalidade técnica e no tradicionalismo, pois o professor aparece como o detentor e transmissor do conhecimento, e caberia ao aluno o papel de sujeito passivo, como um depósito de informações, sem espaços para a criticidade, singularidade e ou construção para sua identidade. Embora reconhecesse, que a escola como peça central para o processo de humanização do homem, essa dicotomia nos remete a inferir que se trata mais de uma humanização no sentido estrito da palavra, visto que não coloca o aluno em uma posição de ser e ocupar seus espaços sociais de forma crítica.
Como destacamos acima, para Charlot (2000), o papel do professor e da educação vão muito além disso, pois o homem é sujeito de saber e estabelece essa relação com o mundo de forma muito específica. Além disso, Charlot (2005, p. 41), destaca ainda que a relação com o saber envolvem a compreensão de “como o sujeito categoriza, organiza seu mundo, como dá sentido à sua experiência e especialmente à sua experiência escolar.” Acreditamos que é a partir dessa compreensão que o sujeito constrói saberes de fato para poder ocupar e exercer o seu papel de cidadão crítico no mundo.
Considerações Finais
A obra de Durkheim e as contribuições de Charlot até os dias atuais, configuram-se, como obras inspiradoras, de leituras muito relevantes para o pensar contemporâneo da educação. Estas leituras se direcionam a muitos públicos, mas principalmente para estudiosos que buscam maior aprofundamento no sentido de compreender e fundamentar, sob muitos olhares, o âmbito educacional e a relação do homem com o saber.
Dentre as principais contribuições da teoria durkheimiana, destaca-se, ainda que dentro de uma perspectiva funcionalista, o enaltecimento da educação no âmbito humano e social. Durkheim concedeu aos espaços escolares um grande reconhecimento, uma vez que pensava a escola como lugar de perpetuação histórica, cultural e formativa dos homens para a sociedade. A escola, para ele, promovia o sujeito a um nível mais evoluído, do homem natural ao homem social.
Entretanto, não podemos deixar de pontuar que embora Durkheim destacasse que caberia ao professor o papel de ser o direcionador do ensino, bem como o responsável por propagar conceitos, valores, normas de conduta e padrões culturais, buscando preparar os alunos para vida em sociedade e exercício pleno da cidadania, sua visão sobre o papel do professor parece-nos um pouco dicotômica. Apontamos essa dicotomia, pois, ao mesmo tempo que buscava educar para sociedade e para a cidadania, também colocava o professor como o detentor e transmissor do conhecimento, e cabia ao aluno o papel de sujeito passivo, como um depósito de informações, sem espaços para a criticidade, singularidade e ou construção para sua identidade, ou seja, características ancoradas na racionalidade técnica e tradicionalismo. Embora reconhecesse, que a escola como peça central para o processo de humanização do homem.
Seguramente, leituras mais apuradas também em outras esferas de todos os estudos de Durkheim, indicariam outros pontos relevantes, além dos ressaltados nesse estudo.
As contribuições de Charlotdestacam-se com mais força, por tratar-se de um teórico contemporâneo que analisa o campo da educação sob múltiplos enfoques. Os aspectos mais relevantes de sua teoria residem em uma sociologia do sujeito ao pensar os alunos como seres sociais, humanos e singulares, que aprendem além dos muros da escola. Ao afirmar que o homem é um ser social em constante aprendizado nos mais diferentes contextos desde sua infância, Charlot não responsabiliza a escola por todo o aprendizado que o sujeito deve obter para sua vida. Assim, enxerga a relação do homem com o saber de uma maneira mais profunda. Charlot (2005) chama de “ideia de ensino”, o processo de aprendizagem que ocorre em sala de aula, onde o professor media os conhecimentos para que os alunos construam os seus próprios e se apropriem destes. Os alunos por sua vez, são ativos na aquisição do saber/aprender, possuem sua identidade e subjetividade, podendo mostrá-las no ambiente escolar, isto é, suas experiências, suas expectativas, sua cultura, suas referências são evidenciadas também neste contexto.
As reflexões e discussões aqui realizadas limitam-se a pensar a relação do homem com o saber sob os olhares de Durkheim e Charlot, assim, acredita-se que o presente artigo pode servir de norte para continuidade e aprofundamento destes estudos, bem como, suscitar interesse em novas comparações entre os teóricos aqui citados ou novas discussões com outros estudos relacionados.
Referências
CHARLOT, B. Relação com o saber, formação de professores e globalização: questões para a educação hoje. Porto Alegre: Artmed, 2005.
CHARLOT, B. Os jovens e o saber: perspectivas mundiais. Porto Alegre: Artmed, 2001.
CHARLOT, B. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre: Artmed, 2000.
DURKHEIM, E. Educação e sociologia. Lisboa: Edições 70, 2011.
DURKHEIM. E. Educação e sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1978.
IMBERNÓN, F. Formação docente e profissional: forma-se para a mudança e a incerteza. São Paulo: Cortez, 2011.
LIBÂNEO, J. C. Adeus professor, adeus professora? Novas exigências educativas e profissão docente. São Paulo: Cortez, 2002.
MENDES, T. C. et al. Ser professor das representações sociais à relação com o saber. Atos de Pesquisa em Educação, Blumenau, v. 10, n. 3, p. 892-921, set./dez. 2015.
TURA, M. L. R. Durkheim e a Educação. In.: TURA, M. L. R. (org.). Sociologia para educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2006. p. 25-61.