Caderno Temático
INTERSTELLAR: A RELATIVIDADE NA FICÇÃO CIENTÍFICA E O ENSINO DE FÍSICA
INTERSTELLAR: THE RELATIVITY IN SCIENTIFIC FICTION AND PHYSICAL EDUCATION
INTERSTELLAR: LA RELATIVIDAD EN LA FICCIÓN CIENTÍFICA Y LA ENSEÑANZA DE FÍSICA
INTERSTELLAR: A RELATIVIDADE NA FICÇÃO CIENTÍFICA E O ENSINO DE FÍSICA
Olhar de Professor, vol. 21, núm. 2, 2018
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepção: 10 Agosto 2018
Aprovação: 10 Novembro 2018
Resumo: No presente trabalho é analisado o filme de ficção científica Interstellar, lançado no ano de 2014, sob uma ótica da astrofísica e do ensino de Física e com o intuito de examinar o tratamento de efeitos relativísticos na ficção científica. Para embasar a análise teórica, foi realizada uma revisão acerca de buracos negros, buracos de minhoca, relatividade especial, relatividade geral, métrica espacial e afins. Guiados por essa análise e na posse de algumas cenas do filme onde são retratados esses efeitos relativísticos, verificou-se que a presença do físico Kip Thorne na criação e produção do filme foi de extrema importância para um retrato sólido da ciência relativística retratada em Interstellar. Desta forma, a presente análise também tem como objetivo incentivar a discussão sobre arte-ciência (arte fílmica e a ciência em si) nos âmbitos acadêmicos e escolares, de modo que a Física possa ser compreendia por meiode uma obra ficcional fílmica.
Palavras-chave: Interstellar, Ficção científica, Relatividade, Ensino de Física.
Abstract: In the present paper the science fiction film Interstellar, launched in the year 2014, is analyzed, from a perspective of astrophysics and physics teaching, in order to examine the treatment of relativistic effects in science fiction. To support the theoretical analysis, a review was carried out about black holes, wormholes, special relativity, general relativity, spatial metrics and related subjects. Guided by this analysis, and in possession of some scenes of the film in which these relativistic effects are portrayed, it was found that the presence of the physicist Kip Thorne in the creation and production of the film was of extreme importance for a solid portrait of relativistic science portrayed in Interstellar. In this way, the present analysis also aims to encourage the discussion about art-science (film art and science itself) in the academic and school contexts, so that physics can be understood through a fictional film work.
Keywords: Interstellar, Science fiction, Relativity, Physics teaching.
Resumen: En el presente trabajo se analiza la película de ciencia ficción Interstellar, lanzada en el año 2014, bajo la óptica de la astrofísica y la enseñanza de la Física, con el propósito de examinar el tratamiento de efectos relativistas en la ciencia ficción. Para fundamentar el análisis teórico, se realizó una revisión sobre agujeros negros, agujeros de gusano, relatividad especial, relatividad general, métrica espacial y afines. Guiados por este análisis, y contando con algunas escenas del film donde se retratan efectos de la relatividad, verificamos que la presencia del físico Kip Thorne en la elaboración y producción del film fue de extrema importancia para un retrato sólido de la ciencia ligada a la Teoría de la Relatividad retratada en Interstellar. El presente análisis también tiene como objetivo incentivar la discusión sobre arte-ciencia (arte cinematográfico y ciencia en sí) en los ámbitos académicos y escolares, de modo que la Física pueda ser comprendida a través de una obra cinematográfica de ficción.
Palabras clave: Interstellar, Ciencia Ficción, Relatividad, Enseñanza de la Física.
Introdução
O encontro entre a Física e o Cinema ao longo dos anos
O encontro da Física com o Cinema é algo que desperta a atenção do público e da Academia, tanto para a hard physics, quanto para seu uso instrumental no Ensino de Física. O encontro teve seu inicio no século XX , quando, no ano de 1902 foi lançado o primeiro filme de ficção científica: “Le Voyage dans La Lune” (figuras 1 e 2a), dirigido por Georges Méliès, inspirado nos livros de grandes escritores de ficção científica, especialmente Jules Verne. (MELO JR.; SILVA JR., 2018). Apesar de ser um filme de curta duração (13 min.), mudo e em “preto e branco”, trouxe ao cinema as primeiras especulações referentes ao futuro da humanidade. Retrata uma viagem Terra-Lua por meio de um “projétil” como meio de locomoção, o que é claramente inspirado no livro “Da Terra à Lua” de Jules Verne. O filme aborda a surpresados humanos ao chegarem na Lua e se depararem com seres extraterrestres. Esta segunda parte é inspirada no livro “Os primeiros homens na Lua” de H.G.Wells.
A Física está bastante presente no filme no modelo de transporte sugerido para a viagem: uma espécie de projétil balístico com capacidade de transportar passageiros em seu interior, e que é lançado por um canhão para o destino desejado. Apesar de parecer algo extremamente fora de cogitação, tem seu mérito devido à forma aerodinâmica do transporte, que inclusive serviu de inspiração para os modelos de foguete e naves espaciais, como é possível ver na Figura 2b, na imagem do foguete Proton-M.
Outro aspecto dos filmes que pode ser abordado pela ciência de forma geral e mais especificamente pela astrobiologia, é a vida fora da Terra retratada no filme, trazendo uma reflexão a respeito do encontro entre homem e seres extraterrestres. É possível ir além dos clichês envolvendo seres verdes e de aparência assustadora, e a vida fora da Terra pode ser intuída imaginando-se seres mais simples como bactérias e seres com outros processos evolutivos distintos do nosso.
A obra de Méliès, ao abordar a vida na Lua, tange de certa forma uma obra futura, The Sentinel (CLARKE, 1951), de Arthur C. Clarke, publicado no ano de 1951. O conto retrata a descoberta de um estranho objeto na Lua: um enigma deixado por uma civilização avançada antes mesmo da existência do primeiro ser vivo na Terra. O conto tem uma grande importância, pois serviu de inspiração para um dos maiores filmes de ficção científica de todos os tempos: “2001: A Space Odyssey” (Figura4).
O encontro arte-ciência se faz muito presente nesta obra de arte de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, principalmente pela preocupação em retratar a ciência da maneira mais fiel possível. O filme foi lançado em 1968 e antecipou a épica viagem de Armstrong, Aldrin e Collins com a Apollo 11 para a Lua em julho de 1969. Consequentemente a obra gerou um grande impacto para o público, pois foi mostrada uma ficção científica mais “realista”, e, de forma mais próxima aos rigores acadêmicos, ou seja, uma possibilidade de tratar ficção com os parâmetros da ciência encerrada em nossos paradigmas.
Do ponto de vista artístico, é necessário citar a importância do diretor Stanley Kubrick no filme, que preza por uma obra estruturada nos “pequenos detalhes”, que vão desde a fotografia até a sonoplastia de seus trabalhos, os quais renderam, inclusive, quatro indicações ao Oscar: melhor diretor, melhor direção de arte, melhores efeitos visuais e melhor roteiro original, sendo agraciado na categoria de melhores efeitos visuais.
O filme “2001: Uma odisseia no espaço” apresenta diversos aspectos memoráveis para o retrato de uma ficção científica conceitualmente mais sólida. A obra apresenta um viés futurista da sociedade, em que no início do século XXI os humanos já possuem a tecnologia necessária para grandes explorações tripuladas no nosso sistema solar, incluindo naves espaciais, comida desidratada, possibilidade de simular a aceleração gravitacional da Terra (NEVES et al., 2000), sistema de inteligência artificial integrado nas espaçonaves - HAL 9000 -, computadores portáteis como Tablets, câmaras de hibernação para longos trajetos e afins.
Considerando que o filme foi lançado no ano de 1968, um ano antes do primeiro homem pisar na Lua, ele apresenta um riqueza de detalhes que serviu como inspiração para as tecnologias atuais, como: o uso de comida desidratada em missões espaciais, a invenção dos Tablets, a natureza do traje de um astronauta e a comunicação entre humanos e uma “Inteligência artificial” através de comandos de voz, como a Siri e o próprio Google Tradutor, inspirados no computador de bordo HAL 9000 (aliás, a sigla H.A.L. vem da corruptela da gigante de computadores de época I.B.M. - uma letra antes de cada uma desta dá - H.A.L.).
A principal estação espacial do filme, Space Station V, além de apresentar toda a tecnologia citada acima, possui um design inteligente, um formato que chama bastante a atenção dos físicos devido à capacidade de simular a aceleração gravitacional da Terra no espaço, através da força centrípeta gerada pela rotação da estação em uma certa velocidade angular, que assume um valor necessário para gerar uma aceleração gravitacional de aproximadamente 9,8 m/s², como mostra a Figura 5.
Interstellar
Interstellar: o início
Interstellar chegou aos cinemas em 2014 e rapidamente atraiu a atenção de leigos e membros da Academia pela alta fidelidade à ciência mostrada no filme. O segredo para o sucesso da obra parece ser infalível: um filme que contou com o apoio de físicos, matemáticos, engenheiros como consultores, além do ótimo trabalho da direção, produtores e artistas para ser elaborado e produzido da forma mais impactante possível.
Uma das principais mentes envolvidas com a produção e criação do filme é a do físico Kip Thorne: um cientista cujos trabalhos acadêmicos são voltados para a área de Astrofísica e Cosmologia, além de trabalhos em Física Teórica envolvendo a Relatividade einsteiniana. Thorne, por meio de uma conversa inicialmente informal com uma amiga envolvida na produção de filmes, Linda Obst, levantou o assunto a respeito da grande quantidade de filmes de ficção que apresentavam potencial para levar ciência até o público, porém, falharam devido à falta de preocupação entre o encontro da “realidade científica” com o cinema, como relatado no primeiro capítulo do livro The Science of Interstellar. (THORNE, 2014).
Desta forma, começaram a discutir elementos científicos, os quais, associados a um grande roteiro, seriam capazes de impressionar o público e também trazer reflexões a respeito da Física, Astronomia e Cosmologia. Assim nasceu o “embrião” de Interstellar: a ideia de um filme de ficção científica que apresentasse uma trama calcada na interpretação hodierna dos fenômenos científicos (nem que para isso fossem necessários “cálculos” relativísticos e simulações).
Após algum tempo de amadurecimento da ideia, Kip e Linda se reuniram para escrever o roteiro reduzido do filme, com objetivo de fazer o projeto, inicialmente informal, transformar-se em realidade. O roteiro reduzido do filme foi aprovado pelo estúdio Warner Brothers Company e o renomado diretor de filmes Steven Spielberg aceitou a direção da obra, porém, algum tempo depois, devido a motivos legais entre ele e a Warner Bros., acabou deixando a direção. Após esse incidente, Linda e Kip ficaram receosos de que a ideia do filme fosse abandonada. Entretanto, não desistiram do projeto e após vários emails e telefonemas, Christopher Nolan (Figura 6) aceitou não só dirigir o filme, como escrever e adaptar o roteiro juntamente com seu irmão Jonathan Nolan.
Interstellar: o desfecho
O filme se passa em uma época onde, após uma série de catástrofes climáticas causadas pelo homem, o planeta Terra torna-se cada vez mais hostil, com menos elementos favoráveis à vida humana: os seres humanos correm o risco de não sobreviver a tais condições. Dessa forma, umas das opções para que a raça humana não seja extinta é a de que ela se mude para outro local, opção explorada e projetada pelo personagem representado pelo físico e professor Dr. Brand, no filme. Este dirige a Missão Lazarus: a NASA havia enviado doze astronautas para doze planetas diferentes (além do sistema solar), com a intenção de buscar uma nova residência para os humanos. Anos depois, após a situação do planeta Terra tornar-se ainda mais crítica, Dr. Brand arquiteta uma nova missão com o intuito de resgatar os astronautas que obtiveram mais sucesso na Missão Lazarus, procurando um local com as condições mais propícias para a vida humana.
O outro personagem, Dr. Cooper, ex-piloto da NASA, após decifrar coordenadas geográficas misteriosamente produzidas por uma anomalia gravitacional no quarto de sua filha (padrões na poeira depositada no chão do quarto), é levado até uma base secreta da NASA pelas coordenadas, e então recebe o convite de Dr. Brand pilotar a nave Endurance, levando os tripulantes para um outro ponto do Universo na procura de um novo lar para a espécie humana. E é este o contexto que nos chama a atenção na trama fílmica: uma viagem espacial recheada de conceitos físicos e científicos através das cenas, incluindo fenômenos e eventos relativísticos como buracos negros, buracos de minhoca (wormholes), viagem no tempo e afins.
Os filmes de ficção científica muitas vezes acabam despertando o nosso imaginário, e, consequentemente, nos faz refletir a respeito de certos aspectos retratados nos filmes, e com o filme Interstellar não é diferente. Ele explora diversos aspectos com um viés futurístico, que poderiam se encaixar em um período de tempo não tão distante assim, caso o fenômeno principal ali descrito, um buraco negro próximo à órbita de Saturno, existisse.
O desfecho do filme, de uma maneira mais direta, diz respeito, como relatando, à sobrevivência da raça humana, onde os especialistas estão dispostos a fazer o que for necessário para que o ser humano não seja extinto do Universo, como, por exemplo, explorar planetas com alta semelhança com a Terra para que possam abrigar a espécie humana. Desta forma, o desfecho leva à reflexão: a espécie humana nasceu no planeta Terra, porém, seria possível a vida humana prosperar em outros locais do Universo?
Os pilares da Física no filme
A influência do físico Kip Thorne não foi apenas na criação do enredo do filme, mas também no rigor da Física presente nele. Ele estipulou algumas “regras” básicas ao relacionar o desfecho do filme com a Física, para que nada pudesse ser considerado um “absurdo científico”. Como relatado pelo próprio Thorne,
[...] um mês depois, no dia 27 de março de 2006, tivemos nosso primeiro encontro com “Steven o Spielberg”, como eu costumava chamá-lo. Nos encontramos em uma sala de conferência no coração da sua empresa de produção de filmes, Amblin, em Burbank. Em nossa reunião eu sugeri ao Steven e à Lynda duas guias para a ciência de Interstellar:
Nada no filme deveria violar as leis bem estabelecidas da Física, ou conhecimentos bem estabelecidos sobre o Universo;
Especulações sobre as leis da Física e do Universo sempre serão provenientes da ciência real, com ideias que, ao menos alguns “respeitáveis” cientistas aprovem; [...] (THORNE, 2014, p. 12).
Apesar da troca de diretores, as diretrizes científicas do filme foram mantidas, proporcionando um longa-metragem compatível com os conhecimentos científicos de Astrofísica e da Teoria da Relatividade Restrita e Geral, área da própria pesquisa de Kip Thorne.
Alguns dos conceitos básicos (EINSTEIN, 1988) para o filme necessitam ser apresentados antes de iniciarmos a análise da relatividade presente no filme Interstellar.
1º Postulado da Relatividade Especial: As leis da Física são as mesmas para qualquer referencial inercial, ou seja, não existe referencial inercial preferencial.
2º Postulado da Relatividade Especial: Princípio da constância da velocidade da luz, afirma que a velocidade da luz no vácuo tem o mesmo valor constante c em todos os referenciais inerciais.
É importante ressaltar que a Teoria da Relatividade Especial não nos diz que tudo é relativo, como escreve Isaacson (2008, p. 148):
[...] Ela não significa que tudo é subjetivo. Em vez disso ela diz que as medições do tempo, inclusive a duração e a simultaneidade, podem ser relativas, dependendo do movimento do observador. E que podem ser relativas as medições do espaço, como distância e comprimento. Mas existe uma união das duas, a que chamamos espaço tempo, e ela se mantém invariável em todos os sistemas inerciais. Da mesma forma, há coisas como a velocidade da luz que permanecem invariáveis.
Entretanto, vale ressaltar que, como consequência do primeiro postulado da relatividade especial, os referenciais não inerciais, aqueles que apresentam algum tipo de variação no sentindo ou no módulo das velocidades, não são comtemplados com a Teoria da Relatividade Especial em 1905, mas apenas em 1915 com a teoria da Relatividade Geral.
De acordo com a definição de espaço tempo, surge também algumas propriedades métricas em relação ao seu comportamento como: dobrar, esticar, curvar de acordo com a presença de uma massa ou de um campo gravitacional, como diz Rohden (2012, p. 182):
[...] Segundo Einstein, a matéria cria este campo gravitacional provocando em torno de si uma distorção do que chamou de “contínuo espaço-tempo”. Pode-se comparar esse fenômeno à deformação sofrida por um tapete de espuma de borracha sobre o qual se colocam objetos pesados [...]
Diferentemente do que Newton defendia através da métrica do espaço, um provável espaço absoluto, Einstein defendeu a ideia de que o espaço não só não é absoluto, pois depende do referencial em questão, como também sofre alteração em sua estrutura em certas condições, como na presença de uma massa ou de um campo gravitacional, como é possível observar na Figura 8.
A Física de Interstellar: uma análise relativística
“O buraco de minhoca próximo a Saturno”
‘‘Mas de todas as anomalias gravitacionais, a mais importante é essa próxima de Saturno, uma disfunção no espaço-tempo [...]” (INTERSTELLAR, 2014, 32 min.).
No filme, os cientistas encontram uma anomalia gravitacional próxima à Saturno, anomalia caracterizada como wormhole ou “buraco de minhoca”, como mostra a Figura 9. A definição de buraco de minhoca (ponte Einstein-Rosen) de acordo com Thorne (1994, p. 484, tradução nossa) é:
[...] Buraco de minhoca é um atalho hipotético para viagem entre pontos distantes no Universo. O buraco de minhoca tem duas entradas, chamadas de “boca”, uma (por exemplo) próxima à Terra, e outra (por exemplo) em órbita ao redor de Vega, 26 anos luz além. As bocas são conectadas entre si por um túnel através do hiperespaço (buraco de minhoca) que teria apenas um quilômetro de distância. Se nós entrássemos na boca próxima à Terra, nós estaríamos no túnel. Viajando apenas um quilômetro através do túnel nós alcançaríamos a outra boca e emergeríamos próximo à Vega, a 26 anos luz de distância no Universo externo.
Entretanto, segundo diversos astrofísicos, a probabilidade de um buraco de minhoca ser formado por causa natural e continuar existindo por um longo período de tempo é muito baixa. A instabilidade dentro de um buraco de minhoca é muito alta e, assim, uma pequena quantidade de matéria ao entrar em contato com o wormhole, pode ser causa para o aniquilamento do mesmo, como vemos na explicação de Thorne (1994, p. 486, tradução nossa):
[...] O buraco de minhoca é criado em algum momento no tempo; abre-se brevemente, e então se fecha e desaparece – desta forma, sua vida é tão breve desde sua criação até seu fechamento que nada, nem ninguém (nem pessoas, nem radiação, nem sinais) podem viajar através dele, de uma boca à outra. Qualquer coisa que tente isto será pego e destruído pelo fechamento do buraco de minhoca.
Por outro lado, se o buraco de minhoca possui pequenas probabilidades de provir de causas naturais, e apresenta zero por cento de chance de ser uma ponte para outro local do Universo, devido aos seus curtíssimos tempos de duração, poderia ele então ser “criado” por alguma espécie racionalmente superior como citado no filme pelo Dr. Brand? De acordo com Luminet (2015, p. 3, tradução nossa), seria possível:
[...] O buraco de minhoca próximo a Saturno foi criado artificialmente por uma civilização avançada, e colocado lá para ajudar a humanidade a escapar do sistema solar (no final do filme entendemos que aqueles alienígenas eram na verdade humanos avançados do futuro); eles criaram o buraco negro que está associado ao buraco de minhoca em primeiro lugar, manipulando o tempo e os eventos para que as coisas pudessem se desdobrar [...]
Claramente então, caímos na concepção de que, para a criação de um wormhole, seria necessário também a criação de um buraco negro, para que houvesse um equilíbrio na própria força gravitacional do mesmo e, portanto, deixasse o buraco de minhoca estável. É interessante lembrar que assim que a filha do Dr. Cooper consegue desvendar os dados enviados pelo seu pai do futuro que se encontra dentro do Gargântua, ela consegue finalizar as equações do Dr. Brand e, portanto, ter acesso ao conhecimento de manipulação do tempo e dos eventos, incluindo a criação de buracos negros e buracos de minhoca.
“Não é um buraco, é uma esfera!”
A cena inicia-se com Romily, outro astronauta, explicando para Cooper o porquê de um buraco de minhoca ser, na verdade, uma esfera e não apenas um círculo como normalmente é ilustrado em livros de Astronomia e Cosmologia (INTERSTELLAR, 2014, 58 min., tradução nossa):
Então as ilustrações transformam um espaço tridimensional em bidimensional, fazendo do buraco um círculo bidimensional. O que é um círculo em três dimensões? Exato, um buraco esférico.
Na Figura 11 percebe-se que à esquerda, Romily representa a distorção no espaço tempo (folha de papel), e à direita ele mostra a intersecção entre os dois pontos no espaço tempo, no caso interligados por um buraco de minhoca (caneta atravessando as duas dobras do papel). Entretanto a representação da boca do buraco de minhoca feita por Romily foi realizada em duas dimensões (um ponto em uma folha de papel), e não fica tão clara a representação tridimensional, até o momento em que a tripulação está frente à frente com o wormhole, nas proximidades de Saturno, como mostra a imagem abaixo:
A explicação de Romily se assemelha muito à explicação de Thorne (1994, p. 485, tradução nossa):
[...] No diagrama bidimensional do nosso universo a boca do buraco de minhoca é desenhada como um círculo, entretanto, para nosso Universo tridimensional, seria o análogo tridimensional ao círculo, uma esfera.
Desta forma, fica clara a influência de Kip nesta cena, devido à grande semelhança entre as explicações.
Endurance: atravessando o buraco de minhoca
O protagonista Cooper era um piloto experiente, de aviões de caça a ônibus espaciais, voando em diferentes condições de teste, porém nunca havia pilotado porum trajeto que tivesse como destino final um atalho gravitacional do tipo wormhole.A falta de experiência na situação não impediu que o piloto executasse uma manobra em que atingisse uma órbita espiral e assim chegasse ao centro do buraco de minhoca, rumo a um outro ponto do Universo, próximo a Gangântua. Por outro lado, assim que passaram por uma das superfícies do buraco de minhoca, logo percebeu a perda de controle da nave e dos sinais de comunicação. Um dos tripulantes diz a Cooper (INTERSTELLAR, 2014, 58 min.): “Os controles não funcionam aqui. Estamos atravessando o Bulk. Um espaço além das nossas três dimensões. Só nos resta registrar e observar.”
O Bulk por si só é uma região além do nosso espaço tridimensional, e não faz parte do nosso Universo. No caso de Interstellar, de acordo com Thorne (2014, p. 50, tradução nossa):
[...] Como pode o espaço se “dobrar para baixo”? Sobre o que ele se dobra? Ele se dobra sobre um hiperespaço com maior estrutura dimensional, chamada de “bulk”, que não faz parte do nosso Universo [...] Quantas dimensões tem um bulk? [...] a propósito, em Interstellar o bulk tem apenas uma dimensão espacial extra: quatro dimensões espaciais ao todo.
Desta forma, só é possível passar de um universo para outro através da passagem pelo bulk. Ao passarem pelo buraco de minhoca eles acabam atravessando o bulk de maneira direta, pois a “garganta” do buraco de minhoca, região entre as suas duas bocas, é uma região do bulk por si só.
Podemos tentar uma abordagem sem considerarmos a dimensão espacial extra do bulk de Interstellar. Se consideramos que a formiga ilustrada na Figura 13 gostaria de ir de uma parte da maçã à outra (como indicado em pontilhado), ela teria duas opções: contornar a superfície da maçã até chegar em seu local desejado, ou ir por dentro dela (uma região além da superfície) como em um buraco de minhoca. Se desconsiderarmos o acréscimo de dimensão, neste caso o bulk, seria o próprio recheio da maçã que a formiga precisa atravessar para chegar até seu local desejado.
Isso leva prontamente a uma das principais questões levantadas pelos astrofísicos: “O que acontece dentro de um buraco de minhoca? Seria possível para os humanos (animais limitados a três dimensões espaciais e uma dimensão temporal) detectar qualquer tipo de fenômeno ao atravessá-lo?”
Primeiramente, o buraco de minhoca necessita ter um tamanho razoavelmente grande para que uma nave possa atravessá-lo sem encostar em suas paredes. Segundo Hawking, um buraco de minhoca possui uma estrutura bastante instável, e a única forma de manter seu “túnel”, caminho que liga uma boca a outra do wormhole aberto é através de alguma tecnologia que permita gerar uma força de repulsão entre as estruturas do wormhole para que ele não feche ou mesmo não entre em colapso.
Atualmente não há indícios de qualquer tipo de tecnologia com este propósito, apesar de ser teoricamente possível. Desta forma, podemos inferir que, segundo o filme, os humanos do futuro já conseguiriam ter acesso a tal tecnologia, com provável ligação entre as equações do professor Dr. Brand e de Murph, possibilitando a construção/criação de um buraco de minhoca próximo a Saturno.
Segundo o filme Interstellar, seria sim possível ao homem detectar fenômenos ao longo do trajeto do buraco de minhoca. O mais perceptível dentro da nave, porém, que tem sua causa ligada a outro fator, é a anomalia gravitacional, primeiramente notada pela Dra. Brand, a qual, inclusive, chega a ter a sua mão momentaneamente distorcida ao colocá-la perto da anomalia, como vemos na figura 14.
A mão da Dra. Brand parece ser deformada em um padrão espiralado, uma espécie de vórtice gravitacional, devido, provavelmente, à presença de um campo gravitacional anômalo criado dentro da nave enquanto atravessam uma região do buraco de minhoca. Nesta cena, a Dra. Brand chega a dizer que seria o primeiro aperto de mão com seres de outra dimensão, que posteriormente conclui-se que na verdade, era a mão do Dr. Cooper, no futuro, tentando uma comunicação de dentro da singularidade de Gargântua, como afirma Thorne (2014, p. 308, tradução nossa):
Ela pensa que tocou em um ser do bulk. Mas ela tocou na verdade em um ser passando rapidamente pelo bulk em um tesserato [um hipercubo de quatro dimensões espaciais]. Um exausto e velho Cooper.
É interessante notar que a coexistência do Dr. Cooper do presente e do futuro na mesma cena apenas é possível devido ao fato de que no momento em que Cooper cai no centro de Gargântua ele tem acesso e controle a mais uma dimensão. Desta forma, a dimensão temporal passa a ser uma dimensão espacial para ele, possibilitando escolher qualquer evento presente na linha temporal do universo para “assistir”, seja no passado ou no presente.
Entretanto, a única forma de se comunicar com as pessoas presentes nos eventos passados ou até mesmo futuros é através de anomalias gravitacionais. A explicação se baseia na natureza da gravidade, sendo assim, algo que tem a capacidade de se mover entre as dimensões e, desta forma, entre o próprio tempo. Assim, a cada golpe que o Dr. Cooper dá nas estruturas presentes na singularidade, que podemos interpretar como sendo diversas “cordas do hiperespaço”, ele gera uma variação no campo gravitacional do evento em que ele observa.
Na Figura 16 conseguimos notar que Dr. Cooper não só consegue fazer alterações no campo gravitacional do evento observável como também o consegue em algum padrão específico, onde fica claro então sua comunicação através do padrão de barras de poeira no chão do quarto ou mesmo no ponteiro do relógio de sua filha.
O “olho” de Gargântua, a ciência por trás da simulação
As características de Gargântua
O buraco negro retratado no filme não é obra do acaso; pelo contrário, nasceu de vários cálculos e simulações comandados principalmente por Kip Thorne. Sua massa, velocidade de rotação e sua aparência são algumas das variáveis que tiveram que ser discutidas entre Kip e Christopher Nolan para que o roteiro fosse compatível com as informações científicas do filme e vice e versa. Entretanto, antes de prosseguir é necessário pontuar a definição de um buraco negro. De acordo com Hawking (2009, p. 111):
[..] Em 1916, o astrônomo Karl Schwarzchild encontrou uma solução para a teoria da relatividade de Einstein que representa um buraco negro esférico. O trabalho de Schwarzchild revelou uma espantosa consequência da relatividade geral. Ele mostrou que, se a massa de uma estrela estiver concentrada em uma região suficientemente pequena, o campo gravitacional na superfície estelar torna-se tão forte que nem mesmo a luz consegue mais escapar. Isso é o que agora denominamos um buraco negro, uma região do espaço tempo delimitada pelo assim chamado horizonte de eventos, da qual é impossível qualquer coisa, incluindo a luz, alcançar um observador distante.
Na figura 18 é possível notar a representação do espaço tempo segundo a Teoria da Relatividade Geral de Einstein: a definição de uma métrica que sofre deformação de forma diretamente proporcional à massa. Entretanto, é preciso ter cautela, se considerarmos o centro de um buraco negro hipermassivo: a deformação do espaço-tempo tenderia ao infinito e, desta forma, teríamos uma singularidade, uma região do espaço onde a densidade de matéria seria tão grande que a teoria da relatividade não conseguiria prever sua natureza. Assim, seria necessário estudá-lo sob uma ótica quântica. Como disse Thorne (2014, p. 66, tradução nossa), a respeito de Gargântua:
[...] Para um grande buraco negro como o Gargântua de Interstellar, a física quântica é relevante apenas no centro, na sua singularidade. Então, se os buracos negros realmente existem em nosso universo, eles devem ter as propriedades ditadas pelas leis relativísticas [...]
É importante notar também que a Figura 17 diz respeito às prováveis origens de buracos negros. Desta forma, os blackholes podem ter como origem o final da vida de uma estrela (estrela de nêutrons, por exemplo), quando ela já consumiu todo o combustível que a mantém quente, e então, implode, pois não há mais a pressão exercida pelas radiações emitidas das reações nucleares (pois afinal não há mais combustível para tal) para contrabalancear com a força gravitacional da própria estrela, como diz Rohden (2012, p. 190):
[...] Ao fim da vida, a estrela já esgotou seu combustível termonuclear, estas reações se interrompem e a estrela desaba sobre si mesma pela força de sua própria gravidade. Por fim, a estrela que sofre esse “desabamento” gravitacional se estabiliza em uma fase de enorme condensação: seu volume é mínimo para uma densidade e uma gravidade infinitamente grandes.
Se considerarmos uma estrela esférica estática de massa M, podemos utilizar a métrica de Schwarzchild para relacionar a massa da estrela com o raio 𝑅𝑠 do seu horizonte de eventos quando se tornar um buraco negro, como descrito na equação (1). Dos postulados da relatividade restrita sabe-se que nada viaja mais rápido que a luz, desta forma o raio de Schwarzchild é obtido considerando a velocidade de escape como c = 3x108m/s, e onde G é a constante universal da gravitação e vale aproximadamente 6,67 x 10−11𝑚3/𝑘𝑔𝑠2.
Se considerarmos o nosso Sol como exemplo (supondo que ele fosse estático e perfeitamente esférico), que possui uma massa de aproximadamente 1030 Kg, chegaremos que o raio do seu horizonte de evento teria apenas 3 quilômetros, caso o Sol implodisse hoje.
As principais grandezas necessárias para podermos saber mais a respeito de um buraco negro são: massa da estrela origem ou do buraco negro e sua velocidade de rotação. No caso em que o blackhole não possui rotação, utiliza-se a simetria de Schwarzchild, e no caso com velocidade de rotação maior que zero utiliza-se a métrica de Kerr. Em comparação com a equação (1), se for um buraco negro de massa M em rotação, teremos que o raio do seu horizonte de eventos 𝑅ℎserá definido pela equação (2), onde J corresponde ao momento angular da estrela,𝑅𝑠o raio de Schwarzchild e c e G são constantes universais:
A massa relaciona-se diretamente com o tamanho do horizonte de eventos de um buraco negro, de tal forma que quanto maior a massa, maior o tamanho do horizonte de eventos, como notamos pela interpretação das equações (1) e (2).
Segundo Thorne (2014, p. 72), Gargântua apresenta uma massa de aproximadamente cem milhões de vezes maior que a do Sol, algo próximo de 1,98 𝑥1038kg e um horizonte de eventos de um bilhão de quilômetros (valor dez vezes maior que a distância da Terra ao Sol). Sua rotação é extremamente alta, algo próximo a uma parte sobre cem trilhões a menos que a velocidade da luz. Desta maneira, a métrica adotada para compreender Gargântua é a de Kerr, devido à sua alta velocidade de rotação. Se analisarmos a relação entre a massa M e o módulo do momento angular J da estrela na equação (2), veremos que são grandezas inversamente proporcionais e que no caso de estrelas hipermassivas, estas tenderão a ter seu momento angular reduzido, estipulando assim uma velocidade limite para o buraco negro de acordo com sua massa.
Apesar do nome ser buraco negro o Gargântua possui uma região onde percebe-se uma alta quantidade de “fótons capturados”, formando uma espécie de anel luminoso ao seu redor. Isto acontece devido a fótons que são atraídos pelo buraco negro, porém que não são “engolidos” no primeiro instante: situam-se numa região exterior ao horizonte de eventos, fazendo com que entrem em rotação ao redor de Gargântua (Figuras 19 e 20) antes de serem finalmente atraídos pelo buraco negro, como podemos ver no livro de Kip Thorne (2014, p. 76, tradução nossa):
[...] A gravidade é tão forte próximo ao Gargântua, e o espaço e o tempo são tão deformados, que a luz (fótons) pode ficar presa em órbitas fora do horizonte, viajando em volta do buraco várias e várias vezes antes de ser engolida [...] Eu gosto de chamar essa luz presa em órbita de “concha de fogo’’. Essa concha de fogo tem um papel importante nas simulações gráficas, dando base à aparência visual de Gargântua. [...]
Simulando Gargântua
Aparentemente não há nenhum indício de algum buraco negro próximo ao planeta Terra ao ponto de vislumbramos o fenômeno com a ajuda de um telescópio. Desta forma não temos nenhuma “foto” de um buraco negro até o momento [a não ser o recentemente divulgado na imprensa na galáxia M87]. O que se tem são dados de regiões do espaço que se comportam de maneira semelhante ao que foi teoricamente atribuído aos buracos negros, porém ainda não se tem conhecimento exato de sua natureza. Diversos fatores podem influenciar na aparência de um blackhole, como os gases constituintes da estrela que lhe deu origem, sua massa e sua “vizinhança”.
No caso de Gargântua¸ o diretor Christopher Nolan queria que o buraco negro hiper massivo fosse retratado no filme da maneira mais real possível, fazendo com que Thorne, juntamente com a empresa Double Negative, desenvolvessem graficamente o Gargântua através de simulações de alta qualidade.
As simulações se basearam no princípio da sobreposição de imagens geradas pelos softwares de criação gráfica, DNGR, Double Negative Gravitational Renderer, um renderizador gravitacional da empresa de efeitos visuais. As características de Gargântua, como todo o ambiente a ser simulado, foi produto da resolução de algumas equações desenvolvidas por Thorne que descrevem as características do buraco negro como: sua velocidade de rotação, o tamanho de seu horizonte de eventos, sua massa, as dimensões do disco de matéria ou accretion disk localizados ao redor de sua borda, a angulação utilizada para simular a captura de uma câmera no local e afins.
Entretanto, se um buraco negro não emite luz de maneira direta, como ele pode ser retratado visualmente? De acordo com Thorne (2014, p. 88, tradução nossa)
[...] Buracos negros não emitem luz, então a única forma de ver Gargântua é através da influência na luz de outros objetos. Em Interstellar, os outros objetos são um disco de matéria (accretion disk) e a galáxia na qual o buraco se encontra, que possui nebulosas e um vasto campo de estrelas [...]
Isso é válido de acordo com a Teoria da Relatividade Geral, pois uma massa ao distorcer o espaço-tempo ao seu redor acaba implicando diretamente na “dobra” de um raio de luz. Assim, quanto maior a massa de um objeto, maior a distorção do raio de luz em sua proximidade. Como sabe-se que Gargântua é um buraco negro hipermassivo, a luz proveniente de outras estrelas tende a se distorcer com uma intensidade considerável. E desta forma, como diz Thorne (2014, p. 88, tradução nossa), temos o efeito da lente gravitacional:
Gargântua lança uma sombra negra no campo das estrelas, e também desvia os raios de luz provenientes de cada estrela, distorcendo o padrão estelar visto pela câmera. Esta distorção é a lente gravitacional [...]
A lente gravitacional é o primeiro elemento incorporado na simulação de Gargântua, e é ligado diretamente à massa do objeto. Quanto maior a massa, maior será o desvio da trajetória dos raios de luz que chegarem até o objeto. O segundo elemento essencial para a simulação de Gargântua é o disco de matéria ao seu redor, ou accretion disk, localizado no plano equatorial do buraco negro. O accretion disk neste caso é formado por gases e emite fótons como resultado da fricção entre as partículas dos gases, que colidem entre si ao serem atraídas por Gargântua, uma característica dos buracos negros, como diz Rohden (2012, p. 190): “Quando estes gases penetram em espiralno buraco negro, são esquentados e comprimidos, emitindo raio-x [...].”
Na verdade, neste fenômeno, há a emissão de energia de diversas maneiras e diversas frequências, sendo o raio-x uma delas, e se considerarmos um espectro visível, a luz visível também o será, apresentando uma cor característica de acordo com a frequência de emissão de cada elemento constituinte dos gases do accretion disk. Desta forma, é como se o disco de matéria, constituído de gases neste caso, deixasse um rastro de luz próximo à região equatorial de Gargântua, formando a “concha de fogo”, ou “shell of fire”, como já citado anteriormente.
É possível notar na Figura 22 que a região do disco de matéria vai além do plano equatorial do buraco negro, dando a impressão de “uma concha de luz” ao redor de Gargântua. Isto se dá devido à angulação e à distância escolhida para simular a câmera que filmaria Gargântua frente à frente (Figura 23).
A ameaçadora natureza do planeta Miller
A maré gravitacional e as ondas gigantescas
O planeta Miller, que orbita o imenso buraco negro, como nota-se em Interstellar, possui uma característica um tanto quanto incomum se comparado a planetas do nosso sistema solar, sua localização é muito próxima ao buraco negro Gargântua, e mesmo assim possui uma órbita estável.
Assim que os tripulantes da nave Rangers e deparam com a natureza do planeta Miller no filme, é possível notar a tranquila e vasta superfície aquática do planeta. Porém, em poucos minutos esta imagem aparentemente plácida se transforma em um cenário extremamente ameaçador devido a ondas gigantescas de até 1,2 quilômetros de altura (Figura 25). Qual seria a causa de tamanha mudança?
De acordo com THORNE (2014, p. 180),
[...] a explicação para as ondas gigantes, na minha interpretação científica, é devido à agitação do oceano, conforme o planeta balança sob a influência da maré gravitacional de Gargântua.
Desta forma podemos ver que uma das prováveis causas para as ondas gigantescas no planeta Miller, está ligada diretamente à maré gravitacional sofrida pelo mesmo. Como a sua órbita é muito próxima ao próprio horizonte de eventos de Gargântua, que possui um campo gravitacional altíssimo, o planeta tende a se “esticar” como resultado entre o “cabo de guerra” entre a força centrífuga do planeta e a força gravitacional de Gargântua sobre o planeta, como vemos na Figura 26.
Como o planeta se deforma devido às forças que atuam sobre ele, as águas do planeta também sofrem efeitos, e desta forma, acabam fazendo com que o planeta entre num estado de balanceio, ou de um oscilador. Assim, as “massas” de água do planeta se locomovem de uma região para outra, influenciadas pela força desse balanço, gerando mega tsunamis com ondas atingindo quilômetros de altura.
A viagem no tempo em Interstellar
Paradoxo dos Gêmeos versus Interstellar
O desejo de viagem no tempo é algo que sempre foi bastante discutido na ficção científica e na Academia, principalmente por sua íntima relação com a relatividade. O encontro do cinema com o tema “viagem no tempo” foi muito marcado pela trilogia “De volta para o futuro” (Figura 27), que explora as possibilidades e conseqüências da viagem no tempo.
Como o filme Interstellar está diretamente relacionado com temas relativísticos não poderia deixar de ser retratado aqui o tema “viagem no tempo”. Utilizando seus conhecimentos de astrofísica e física teórica, Kip Thorne conseguiu reproduzir uma ciência sólida mesmo em um tema tão aberto para especulações.
A relatividade especial assegura que não existe uma medida absoluta de tempo ou de espaço. Desta forma, as medidas obtidas são consequências diretas da escolha do referencial do observador e do evento. Como visto no capítulo anterior, quanto maior a massa de um objeto, maior a dobra que ele causa no espaço tempo. Assim, temos uma implicação direta da massa de um objeto com a percepção do tempo próximo à ele, como diz Thorne (2014, p. 45, tradução nossa):
[...] Quanto mais devagar o tempo “passa”, maior é a força gravitacional [...]. Na superfície de um buraco negro o tempo “passa” tão devagar que praticamente para: é onde a gravidade é tão forte que nada pode escapar, nem mesmo a luz.[...]. Essa desaceleração do tempo próximo a um buraco negro tem um papel importante em Interstellar. Cooper se desespera com medo de nunca mais ver sua filha Murph novamente, devido a sua viagem próximo a Gargântua, pois ele envelhece apenas algumas horas, enquanto Murph, na Terra envelhece quase oito décadas.
Assim que Cooper é encontrado e levado até a estação de nome similar, “Cooper” (só que dedicado à sua filha Murph Cooper), próximo a Saturno, ele recebe a notícia de que apesar de sua aparência parecer com a de um adulto de meia idade, ele já possui 124 anos. E desta forma presencia algo incomum: ver sua filha já com aproximadamente 90 anos falecendo por causas naturais, enquanto ele ainda aparenta uma idade muito próxima de quando saiu do planeta Terra rumo à Gargântua(figura 29). Neste ponto, como diz Willmusen (INTERESTELLAR, 2015, 13 min.): “A teoria da relatividade é fascinante, mas torna-se muito emotiva quando falamos da distância entre pessoas.”
A relatividade do tempo no planeta Miller
Como salientado no capítulo anterior, o horizonte de eventos de um buraco negro, por definição, é um local onde a força gravitacional é tão forte que nem mesmo a luz pode escapar. Na Figura 24 percebemos que a distância entre o planeta Miller e o horizonte de eventos de Gargântua não é muito grande, levando-nos a concluir que a força gravitacional próximo à região de Miller é extremamente alta, causando uma desaceleração no tempo, como escreve Thorne (2014, p. 174, tradução nossa):
[...] O tempo se desacelera próximo a Gargântua, e a desaceleração torna-se ainda mais extrema quando chegamos próximo ao seu horizonte de eventos. Portanto, de acordo com as leis de deformação do tempo de Einstein, a gravidade se torna extremamente forte quanto mais nos aproximamos do horizonte [...]
Desta forma, devido à proximidade do planeta Miller com o horizonte de eventos de Gargântua, o planeta possui uma desaceleração temporal muito perto do limite permitido: uma hora no planeta Miller equivale a sete anos na Terra.
Uma das formas de perceber o quão devagar o tempo passa no planeta Miller em relação à Terra, é analisando a cena após a viagem até o planeta Miller. Nesta cena, a Dra. Brand explica para Cooper que as peças da nave do Dr. Miller não apresentavam nenhuma deterioração causada pela água, pois a nave tinha sido destruída minutos antes da chegada da nave Ranger, ou seja, apenas algumas horas separavam a chegada de Miller e da nave Ranger no mesmo planeta.
Considerações finais
A ficção científica, desde sua aparição no cinema, tende a trazer diversos aspectos e situações consideradas como ultra futurísticas, provenientes muitas vezes de especulações sem qualquer tipo de conhecimento científico para servir como embasamento minimamente suportado pela própria ciência. Entretanto, é importante notar que o encontro da Física com o cinema, desde seu primórdio, em “Viagem à Lua” é marcado por uma preocupação científica tanto com objetivo de proporcionar um conteúdo mais realista à obra como também se constitui numa forma apropriada para divulgar debates entre a Academia e a sociedade, com um viés necessário de divulgação científica.
O filme Interstellar, por si só, apresenta um grande diferencial em relação aos filmes blockbuster de sua categoria: contou com a presença de um físico desde o processo de criação até a produção do filme, Kip Thorne, cuja área de trabalho ao longo de sua vida acadêmica tem sido assuntos ligados à Astrofísica e às teorias einstenianas, que são excepcionalmente exploradas no filme.
Concluímos que, de acordo com a análise de algumas cenas escolhidas no filme Interstellar, onde é possível notar uma forte presença dos conceitos relativísticos, a maioria das cenas tem um embasamento direto com a área de Astrofísica e Cosmologia semelhante ao trabalho de Stephen Hawking, mundialmente conhecido pelos estudos acerca de buracos negros, viagens no tempo e afins.
Esperamos que com este trabalho o encontro arte-ciência envolvendo Física, em especial efeitos relativísticos, e Cinema, neste caso em especial no gênero de ficção científica, seja amplamente discutido em níveis acadêmicos e escolares em geral, informal ou formalmente (disciplinar).
Para finalizar, e devido à contemporaneidade do tema, devemos lembrar o recente frisson causado pela “fotografia de um buraco negro” na galáxia M87. A figura 29 mostra a simulação de como seria o horizonte de eventos esperado pelos astrofísicos e cosmólogos e a “foto” em si. Apesar de toda ficção de Interstellar e dos esforços da nova Cosmologia, lembremos o que escreveu recentemente o Prof. Roberto de Andrade Martins (2019, n. p.) sobre isso:
Vamos tentar esclarecer alguns pontos sobre a recente divulgação da “fotografia” de um buraco negro. Em primeiro lugar, a existência de buracos negros não foi prevista por Einstein. Ele jamais aceitou a ideia de uma singularidade das equações de campo e não deu qualquer contribuição para a teoria dos buracos negros. As primeiras indicações teóricas daquilo que chamamos atualmente de “buraco negro” resultaram de estudos da “solução de Schwarzschild” para o campo gravitacional de um corpo esférico sem rotação. Embora a solução de Karl Schwarzschild indicasse uma singularidade do campo gravitacional para um raio r = 2GM/c², Einstein alegou que tal situação nunca ocorreria, porque alguma razão física impediria que uma estrela (ou qualquer outro corpo de grande massa) se contraísse até esse raio. Os desenvolvimentos mais importantes da teoria do buraco negro sem rotação foram proporcionados em 1931 por Subrahmanyan Chandrasekhar; em 1939 por Robert Oppenheimer; e em 1958 por David Finkelstein. Por outro lado, a primeira solução teórica exata para um buraco negro com rotação foi obtida por Roy Kerr em 1963, depois que Einstein já havia falecido. Atribuir a teoria dos buracos negros a Einstein é fruto de desconhecimento histórico e também uma grande injustiça para com as pessoas que realmente desenvolveram essa teoria. Por outro lado, sob o ponto de vista observacional, o enorme circo criado nos últimos dias também é um equívoco científico. As evidências sobre a existência de buracos negros (por exemplo, no centro da Via Láctea) não são obtidas através de fotografias e sim pelo estudo das propriedades gravitacionais e pela emissão de radiação dos mesmos. Há anos que os astrofísicos aceitam que foram detectados muitos buracos negros no universo observável. A recente imagem de uma rosquinha brilhante, produzida através de uma análise computadorizada de grande quantidade de dados (e que não é uma fotografia, como tem sido alegado) é interessante, sob o ponto de vista jornalístico, mas não é uma comprovação da existência de buracos negros.
Assim, o buraco negro de Interstellar, o Gargântua, continua sendo uma especulação da ficção científica. O Prof. Domingos Soares (2019), arremata:
Sombra de um buraco negro? É o que anunciaram as últimas notícias sobre os resultados do interferômetro de muito longa base denominado Event Horizon Telescope (EVT).
Vamos ver as mistificações e mancadas einsteinianas observadas num video preparado pelo ESO (European Southern Observatory). Intitula-se “Na Sombra de um Buraco Negro” (https://www.youtube.com/watch?v=omz77qrDjsU).
1) Tempo 0:0 – afirma-se que o eclipse de 1919 comprovou a Teoria da Relatividade Geral. Falso, já amplamente discutido em vários locais (ver, por exemplo, uma revisão da questão em Visita ao Museu do Eclipse em Sobral - http://lilith.fisica.ufmg.br/~dsoares/sobral/meclips.htm).
2) Tempo 1:15 – Karl Schwarzschild predisse a existência do buraco negro. Falso, o buraco negro é uma educada especulação científica criada posteriormente. Mas especulação.
3) Tempo 4:10 – Sera Markoff, da Universidade de Amsterdam, afirma que “Entendemos do ponto de vista matemático que buracos negros existem.”Será Sera? Não, nós não entendemos.
O EVT realizou um feito extraordinário: observou no comprimento de onda de 1,3 mm (microonda), em detalhes impressionantes, uma região de tamanho aparente de aproximadamente 0,1 milésimos de segundo de arco. Lembrem-se: o diâmetro da Lua cheia é de 1800 segundos de arco, ou, 0,5 grau. E esta região está localizada no centro de uma galáxia elíptica gigante, M87, a 55 milhões de anos-luz da Terra.
O procedimento científico correto seria o de usar as observações para se tentar entender o que está ocorrendo no centro desta tremenda galáxia, que é um verdadeiro inferno energético (ver A galáxia elíptica gigante M87 - http://lilith.fisica.ufmg.br/~dsoares/reino/m87.htm).
A nova física relativística que aparentemente havia substituído o paradigma newtoniano ainda tem uma longa estrada para consolidar-se como uma imagem do mundo real partilhado por suas possibilidades sociais, éticas e tecnológicas, como ficou patente no filme Interstellar. No entanto, sonhar é preciso e, mesmo com um paradigma falsificacionável, a fantasia do cinema pode nos levar muito além na complexa compreensão do que é isto, o Universo.
Referências
2001, UMA ODISSEIA NO ESPAÇO. Direção de Stanley Kubrick. Warner Bros., 2001. 1 DVD.
CLARKE, A. The sentinel. Berkeley: Avon Inc., 1951.
EINSTEIN, A. The meaning of relativity. Princeton: Princeton University Press, 1988.
HAWKING, S. O universo numa casca de noz. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
HAWKING, S. Uma breve história do tempo: do big bang aos buracos negros. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
INTERSTELLAR. Direção de Christopher Nolan. Warner Bros, 2014. 1 Blu-ray.
ISAACSON, W. Einstein: sua vida, seu universo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
JAMES, O.; TRUZELMANN, E.; FRANKLIN, P.; THORNE, K. Gravitational lensing by spinning black holes in Astrophysics, and in the movie Interstellar. Classical and Quantum Gravity, Pasadena, v. 32, p. 1-41, feb. 2015
LUMINET, J. P. The warped science of interstellar. Marseille, 2015. Disponível em: https://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1503/1503.08305.pdf. Acesso em: 24 abr. 2019.
MELO JR., V. H.; SILVA JR., N. Percepção e recepção da imagem no cinema clássico hollywoodiano. Em Aberto, Brasília, v. 31, n. 103, p. 161-176, set./dez. 2018.
MARTINS, R. A. Comunicação sem título em Facebook. São Carlos, 12 abr. 2019. Facebook: roberto.andrade.martins Disponível em: www.facebook.com/story.php?story_fbid=10214354811132832&id=1493987462. Acesso em: 24 abr. 2019.
NEVES, M. C. D.; CARDOSO, F. C.; SAKAI, F. S.; VERONEZE, P. R.; ANDRADE, A. C.; BERNABÉ, H. S. Science fiction in physics teaching: improvement of science education and history of science via informal strategies of teaching. Revista de Ciências Exatas e Naturais, Guarapuava. v. 1, n. 2, p. 91-100, jan./jun. 2000.
ROHDEN, H. Einstein: o enigma do universo. São Paulo: Martin Claret, 2012.
SOARES, D. S. de L. COSMOS - Notícias e tópicos de cosmologia, 11 abr. 2019. Disponível em: http://lilith.fisica.ufmg.br/dsoares/cosmos/19/cosmos5.htm. Acesso em: 24 abr. 2019.
THORNE, K. The science of Interstellar. New York: W. W. Norton & Company, 2014.
THORNE, K. Black holes and time warps. New York: W. W. Norton & Company, 1994.