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O RECREIO NA PERSPECTIVA DAS CRIANÇAS
O RECREIO NA PERSPECTIVA DAS CRIANÇAS
Olhar de Professor, vol. 22, 2019
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepción: 01 Febrero 2018
Aprobación: 15 Noviembre 2018
Resumo: O artigo investigou os sentidos atribuídos pelas crianças às suas vivências no momento do recreio. O referencial teórico adotado se baseia em alguns interlocutores da Socioantropologia da Infância, dentre outros autores que também fazem parte dos Estudos da Infância e tiveram o brincar e as culturas infantis como fontes de estudo. A pesquisa se caracterizou como qualitativa e a metodologia contemplou a observação participante e a realização de entrevistas por meio do recurso Desenhos com Histórias que nos possibilitou conhecer o modo como elas se relacionam com seus pares e adultos e contribuiu também para olharmos o recreio a partir de sua perspectiva, bem como, pensarmos sua educação. Nesse sentido, a pesquisa sobre o recreio se mostrou relevante ao apresentar a importância de se ouvir as crianças na organização do trabalho cotidiano visando superar a perspectiva adultocêntrica tão presente nas rotinas institucionais.
Palavras-chave: Infância, Recreio, Pré-Escola.
Abstract: The article investigated the meanings attributed by children to their experiences at playground. The theoretical framework adopted is based on some interlocutors of Socioanthropology of Childhood, among other authors who are also part of Childhood Studies and had play and children's cultures as sources of study. The research was characterized as qualitative and the methodology included participant observation and interviews through Drawings with Stories that allowed us to know how they relate to their peers and adults and also contributed to look the school playgroung from their perspective, as well as think your education. In this sense, the research on the playground proved relevant by presenting the importance of listening to children in the organization of daily work aiming to overcome the adult perspective so present in institutional routines.
Keywords: Childhood, Playground, Pre School, Childhood, Playground, Pre School.
Resumen: El artículo investigó los significados atribuidos por los niños a sus experiencias en el recreo. El marco teórico adoptado se basa en algunos interlocutores de la Socioantropología de la Infancia, entre otros autores que también forman parte de los Estudios de la Infancia y que tuvieron como fuente de estudio el juego y la cultura infantil. La investigación se caracterizó como cualitativa y la metodología incluyó la observación y las entrevistas de los participantes a través de la función Dibujos con historias que nos permitió saber cómo se relacionan con sus compañeros y adultos y también contribuyeron a mirar el patio de recreo desde su perspectiva, así como pensar en su educación. En este sentido, la investigación en el patio de recreo demostró ser relevante al presentar la importancia de escuchar a los niños en la organización del trabajo diario con el objetivo de superar la perspectiva centrada en el adulto tan presente en las rutinas institucionales. Palabras clave: Infancia. Zona de juegos Preescolar.
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa teve como objetivo refletir acerca dos sentidos atribuídos pelas crianças às suas vivências no momento do recreio. O referencial teórico adotado se baseia em alguns interlocutores da Socioantropologia da Infância, dentre outros autores que também fazem parte dos Estudos da Infância e tiveram o brincar e as culturas infantis como fontes de estudo.
Inicialmente para conhecermos melhor o tema pesquisado realizamos um levantamento na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD/IBICT) visando conhecer a produção das pesquisas existentes. Para a busca foi utilizado o descritor “recreio” e não foi delimitada nenhuma data enquanto um período pré-definido. A partir do uso deste descritor os resultados chegaram a cento e cinquenta e três documentos encontrados. Por meio da análise dos títulos foi possível identificar que alguns estudos se voltavam para as áreas da construção civil e da geografia, outras em grande parte se tratavam de uma revista infantil intitulada “Recreio”. Dos cento e cinquenta e três documentos encontrados foram selecionados pela análise dos títulos trinta trabalhos. Após a leitura dos resumos, foram selecionadas doze dissertações e uma tese.
Majoritariamente as pesquisas foram desenvolvidas em Programas de Pós-Graduação em Educação. Todas as pesquisas foram realizadas em instituições de ensino superior públicas constando quatro estudos realizados na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); dois na Universidade de São Paulo (USP); e os demais com uma pesquisa cada na Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e nas Estaduais UNESP e UNICAMP.
A primeira dissertação encontrada corresponde ao ano de 1998, sendo que após esta, as produções se concentraram no ano 2000 contabilizando quatro dissertações em 2005, 2006, 2007 e 2009. A partir de 2010 tivemos um crescimento na abordagem do tema, pois nesse ano e no seguinte (2011) tivemos quatro dissertações com duas em cada ano respectivamente, e depois uma a cada ano considerando os anos de 2012, 2013 e em 2015 a última produção sobre o tema até o momento do levantamento que realizamos no início do ano de 2016. Desse total de pesquisas, duas eram de cunho bibliográfico e todas as demais envolveram pesquisa de campo tendo a etnografia como uma de suas principais metodologias.
Foram encontradas quatro temáticas centrais presentes nas pesquisas analisadas: a discussão sobre as relações das crianças com os adultos no recreio esteve presente em um único estudo que analisou mais profundamente este tema; quatro estudos tratavam da formação dos grupos de brincadeira no momento do recreio; outras três versavam sobre as questões da dicotomia entre os sexos neste espaço e tempo durante as brincadeiras e os jogos; e, quatro buscaram entender o modo como os espaços são utilizados no momento do recreio.
Outro dado que merece destaque é o referencial teórico utilizado nas pesquisas analisadas. Encontramos como os mais citados Manuel Jacinto Sarmento, Willian Corsaro e Julie Delalande. A partir dos dados encontrados a pesquisa que aqui se traz para reflexão utilizou também desse referencial teórico, pois são autores expressivos na área quando se busca refletir acerca do recreio e das culturas infantis. A pesquisa buscou trazer algum avanço para o campo dos Estudos da Infância a partir do estudo da perspectiva das crianças sobre o recreio que se configura ainda como um desafio, por isso a metodologia utilizada pretendeu utilizar instrumentos que contribuíssem para captar a voz das crianças e sua participação na pesquisa.
Considerando também os dados encontrados ainda são poucas as pesquisas que se debruçaram sobre o estudo do recreio enquanto um espaço que diz muito sobre as crianças, sobre suas aprendizagens e sobre a própria instituição educativa. Por meio dessa pesquisa buscou-se apresentar possibilidades para a escola voltar seu olhar para as crianças enquanto sujeitos com direito à voz, que apresentam concepções sobre a organização da rotina e que podem contribuir para a constituição de uma instituição educativa mais voltada para suas necessidades.
Nesse sentido, a presente pesquisa propõe um estudo sobre o recreio numa instituição de educação infantil. Assim, essa reflexão está organizada em três partes que se complementam: a primeira trata de uma discussão envolvendo o referencial teórico que embasou a pesquisa; a segunda parte envolve os aspectos teóricos e metodológicos utilizados para o desenvolvimento da pesquisa e, pôr fim, apresentamos alguns dados da pesquisa por meio de três categorias de análise que são as que seguem: “sabe o que eu amo no recreio?”; “Tem alguém nos olhando”; e, “Eu vou fazer cara de brava porque eu não gosto”.
SITUANDO ALGUNS INTERLOCUTORES TEÓRICOS DA PESQUISA
Sabemos que “o estatuto de objeto sociológico e a consideração da infância como categoria social apenas se desenvolveu no último quartel do século XX, com um significativo incremento a partir do início da década de 90” (SARMENTO, 2009, p. 18). Essa alteração nos permitiu encontrar subsídios para entender a criança como ator social e compreender a infância como categoria histórica e cultural. A partir disso, passamos a pensar na transformação dos caminhos da pesquisa passando de estudos sobre as crianças para estudos com as crianças e a possibilidade de abertura de participação delas como coautoras da pesquisa.
A Socioantropologia da Infância, área ainda em construção, também busca renovar o olhar para a criança e para a infância, investigando por meio do “ponto de vista das crianças suas experiências e culturas” (DELGADO, 2011, p. 182). Podemos dizer de acordo com Delalande (2011b) que esses estudos são transdisciplinares, pois reúnem pesquisadores de diferentes áreas.
Podemos entender a partir da lógica de Delalande (2001) que os estudos da criança e da infância, ganharam mais reconhecimento por conta das pesquisas que adotaram novos modos de olhar para estes sujeitos. A autora vem nos mostrando que essa “maneira de pensar a infância no século XX permite o desenvolvimento de estudos e objetivos novos” (DELALANDE, 2001, p. 25)1, que por conseguinte tornaram a forma atual de pesquisar com crianças diferente de algumas maneiras que perpassamos em momentos históricos anteriores, sendo que na sociedade contemporânea podemos presenciar estudos que valorizam a fala da criança a partir de pesquisadores e pesquisadoras que estão dispostos a ouvir estes sujeitos e colocar em evidência seus interesses.
Segundo Delalande (2011) os primeiros estudos considerados sociantropológicos surgem entre as décadas de 1980 e 1990 no desenvolvimento da área como transdisciplinar, isso remete a união de técnicas, estudos, modos de ver a criança que ambas áreas tomam por base a sociologia e a antropologia. Nesse sentido, “para vir ao mundo, a socioantropologia da infância teve que abandonar o único registro da criança como um vir a ser, da criança guiada para a criança sujeito” (DELALANDE, 2011, p. 472).
A Socioantropologia da Infância atua no sentido de entender e fazer ser entendida a criança enquanto sujeito ativo, ator social de sua infância e de sua vida. Enfim, ela se caracteriza pelos:
Intercâmbios entre as diferentes disciplinas, que se dedicam ao mesmo objeto de pesquisa chamado infância, favorecem igualmente a superação de um estreitamento das perspectivas (...) A denominação socioantropologia da infância (...) testemunha ao menos uma realidade: aquela de uma pesquisa que ultrapassa os territórios de uma disciplina e reúne pesquisadores que, por detrás de um vocábulo que inclui também muitos antropólogos e sociólogos, bem como pesquisadores provenientes da filosofia e da geografia social assumem a infância como objeto de sua reflexão (DELALANDE, 2011, p. 475).
A abordagem socioantropológica da infância abrange, portanto, diferentes áreas. Essas áreas unem-se, em torno do mesmo objeto estudo que é a infância, pelos métodos e instrumentos de recolha de dados utilizados na pesquisa, que são geralmente métodos etnográficos, os quais dispõem de observação participante e o contato prolongado com os sujeitos da pesquisa.
Estes estudos contribuem para pensar na infância como categoria social que vem sendo historicamente construída e as crianças como sujeitos ativos dessa categoria, que a afetam e por ela são afetados. Pensar na criança enquanto ator social que tem papel ativo na sua socialização remete a um conceito de socialização que é horizontal e que se contrapõe à verticalização do processo no qual não somente o adulto exerce uma ação sobre a criança concebendo-a como um ser imaturo que está sendo preparada para a vida adulta.
Assim como Delalande, Corsaro (2011) também trata dos estudos sobre a socialização e as crianças como participantes ativos da sociedade e produtoras de suas culturas. Corsaro (2011) destaca que as perspectivas teóricas interpretativas e construtivistas, apresentaram estudos importantes sobre as crianças e a infância, pois, "argumentam que as crianças, assim como os adultos, são participantes ativos na construção social da infância e na reprodução interpretativa de sua cultura compartilhada" (p. 19). Nesse sentido,
As crianças criam e participam de suas próprias e exclusivas culturas de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de informações do mundo adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações. O termo reprodução inclui a ideia de que as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudança culturais (CORSARO, 2011, p. 31).
Pode-se dizer que a noção de reprodução interpretativa é a forma de participação das crianças na sociedade e da cultura na qual fazem parte. Diferente de uma visão linear, Corsaro (2011, p. 36) apresenta uma crítica, sua perspectiva não presume que a criança passa por uma preparação na infância para poder "evoluir para um adulto socialmente competente". Trazendo a ideia de que a criança não é um vir a ser, mas que ela é um sujeito com vida em andamento.
Assim, Corsaro (2011) vem defendendo que a reprodução interpretativa é "a integração das crianças em suas culturas como reprodutiva-interpretativa, em vez de linear [...] As crianças não se limitam a imitar ou internalizar o mundo em torno delas. Elas se esforçam para interpretar ou dar sentido a sua cultura e participar dela" (p. 36). A cultura de pares que é a forma de organização das crianças e seus modos de dar sentido e entender o mundo, dessa forma, é importante destacar que:
Culturas de pares não são fases que cada criança vive. As crianças produzem e participam de suas culturas de pares, e essas produções são incorporadas na teia de experiências que elas tecem com outras pessoas por toda sua vida. Portanto, as experiências infantis nas culturas de pares não são abandonadas com a maturidade ou o desenvolvimento individual; em vez disso elas permanecem parte de suas histórias vivas como membros ativos de uma determinada cultura (CORSARO, 2011, p. 39).
Dalalande (2011) em consonância a essa perspectiva apresenta um estudo sobre os momentos do recreio, e concebe o pátio do recreio como uma microssociedade, como um espaço de produção de cultura, de troca de experiências e de relações. O que leva a entender o espaço, como um lugar de relações de um grupo que se organiza formando suas culturas. Dessa forma, a autora supracitada afirma que “o recreio da escola pode ser analisado como uma microssociedade no interior da qual cada criança deve encontrar o seu lugar para integração numa brincadeira” (DELALANDE, 2011, p. 70).
A formação desses grupos no momento do recreio mostra a prática da cultura de pares infantil, pois é no pátio que as crianças se relacionam umas com as outras, elaboram regras e formas de inserção nos grupos, apropriam-se dos espaços e até estabelecem limites. Delalande (2011, p. 71) vai definir essa prática cultural “como o conjunto dos conhecimentos e dos comportamentos esperados de uma criança por seus pares para sua aceitação no grupo”.
A interação entre as crianças, seus modos de se relacionar umas com as outras, nos revelam suas culturas produzidas e reproduzidas. Estas ações realizadas pelas crianças em meio às suas socializações estão ligadas às interpretações que elas próprias fazem do mundo. Mesmo que historicamente uma cultura vem sendo reproduzida, enquanto seres humanos, as crianças possuem a capacidade de inovar as ações e não somente reproduzir o que veem, mas transformar inovando em ações, atitudes, modos de se relacionar com outras pessoas, sejam elas seus pares ou não, pois “todos os elementos culturais decorrentes da socialização infantil são reinterpretados e ressignificados pelas crianças, e investido nas suas relações com os pares e com os adultos” (SARMENTO, 2011, p. 49).
As práticas culturais realizadas pelas crianças no pátio do recreio são meios de inserção nos grupos de pares, pois
No que concerne às práticas culturais, a recolha de jogos e brincadeiras e outras práticas, a sua transmissão e transformação, a sua construção a partir de elementos tomados tanto do mundo da infância como dos adultos mostram o interesse heurístico de apresentar os pátios de recreação enquanto lugares de transmissão de uma “cultura infantil”. Eu a defino como o conjunto dos conhecimentos e dos comportamentos esperados de uma criança por seus pares para sua aceitação no grupo (DELALANDE, 2011, p. 71).
Portanto, ao analisar o espaço do recreio como um lugar de produção cultural onde relações entre pares se estabelecem, Delalande (2001) não trata de um grupo social a parte, mas sim, de um grupo social que integra a sociedade como um todo, que nela está e provocam mudanças, transformações de acordo com suas produções.
No Brasil, segundo Delgado (2011, p. 193), os primeiros estudos sociológicos que tomaram “as crianças como informantes legítimos”, destacando-se no sentido de reconhecer as crianças como agentes de socialização, sendo o pioneiro desses estudos Florestan Fernandes na década de 1940, mas seus estudos “foram criticados, sobretudo, por considerá-las imaturas.” Os estudos da criança e da infância, desse modo, permitem uma evolução, que nos levam pensar na relação horizontal entre adultos/crianças e crianças/crianças como meios para construir novas experiências e diferentes conhecimentos:
Aquilo que as evoluções permitem é, portanto, principalmente uma transformação do conceito de socialização, sendo esta distinguida não só como uma simples ação dos adultos sobre as crianças, uma modelação do indivíduo, mas sim como o trabalho de cada indivíduo que se socializa, que se torna um ator da sua socialização (DELALANDE, 2011, p. 65).
As relações entre pares e suas produções culturais no espaço escolar que se estabelecem e, por vezes, sem serem percebidas pelos adultos, podem ser destacadas por meio da pesquisa que reconhece essas relações e produções de culturas infantis. Não é da ausência de cultura que se fala, mas da invisibilidade que dela os adultos fazem nos espaços de vida da criança, que são os mesmos espaços de vida dos adultos.
Os estudos destas culturas, como os de Corsaro (2011) e Delalande (2011) permitem que essas invisibilidades, se tornem visíveis. E é por meio da pesquisa com crianças e, quando é feito um retorno dos resultados aos sujeitos de pesquisa – crianças e adultos – que é possível provocar uma visibilidade das produções culturais infantis e práticas sociais, assim como a desconstrução de uma visão de criança como um vir a ser e construir a ideia da criança como sujeito ativo e ator social.
As crianças o tempo todo produzem culturas, seja brincando, seja jogando, seja conversando, também interagindo por meios eletrônicos. E isto não pode ser negado e não mais invisibilizado. A invisibilidade das culturas infantis acaba gerando a visão de criança neutra, que não se posiciona diante das situações. O intuito destas discussões é chegar ao (re)conhecimento da cultura infantil que é produzida o tempo todo nos espaços de vida das crianças. Assim, essa base teórica contribuiu para refletirmos sobre as vivências das crianças nos momentos do recreio.
A PESQUISA COM AS CRIANÇAS SOBRE O RECREIO
A pesquisa realizada se caracterizou como qualitativa com base no estudo do ser humano envolvendo sua relação com o ambiente em que está a partir de um viés etnográfico que visou investigar os sentidos atribuídos pelas crianças às suas vivências no momento do recreio.
A pesquisa envolveu crianças de cinco anos de uma pré-escola situada numa instituição municipal de ensino fundamental I situada no Estado de Minas Gerais. A escola onde se realizou o estudo atualmente atende a Educação Infantil, com alunos de 04 (quatro) e 05 (cinco) anos e anos iniciais do Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano). No período matutino atende apenas ao Ensino Fundamental I de 3º ao 5º ano e no período vespertino a Educação Infantil e Ensino Fundamental I com salas de 1º e 2º anos. A escola em uma média total atende a 920 crianças considerando os dois turnos de funcionamento.
A escola dispõe de duas quadras com cobertura uma ao lado da outra. Os recreios são organizados por segmento, em ambos os turnos. No período da manhã o recreio das crianças do quinto ano (de nove à onze anos) é realizado na “quadra de baixo” (designação utilizada pelas crianças e funcionários(as) da escola). O turno vespertino tem a organização, também, por segmento, sendo o recreio das crianças de cinco anos, da educação infantil realizado na “quadra de cima”.
Sendo as quadras muito parecidas no seu aspecto arquitetônico será feita uma descrição geral do espaço. Ambas são cobertas e cercadas com grades, possuem uma arquibancada e escadas que dão acesso à elas. As quadras possuem uma trave em e uma rede de basquete em cada extremidade, na entrada de cada uma das quadras há um portão e na frente de ambas existe um pomar em formação, com árvores plantadas por crianças e funcionários(as) da escola e um gramado, mas as crianças não têm acesso a ele no momento do recreio.
A passagem que dá acesso às quadras é uma rampa cimentada e possui jardins nas laterais. Não há banheiros próximos às quadras, de modo que as crianças precisam caminhar até o corredor onde ficam as salas de aula e os sanitários para acessá-los. Do mesmo modo não há bebedouros próximos, os mesmos encontram-se perto das salas.
As crianças são levadas e fila pelas professoras no início do recreio e, ao término, são organizadas em filas pelos funcionários que ajudam na observação e organização do momento do recreio e, junto das professoras as crianças voltam para as salas.
Para o desenvolvimento da pesquisa uma turma da pré-escola da instituição foi selecionada por meio de sorteio considerando que as turmas possuíam características em comum e não se buscava algo tão específico que pudesse estar significativamente presente em uma turma e ausente em outra. A partir disso, foi dado início à busca pela autorização dos pais para a participação das crianças na pesquisa. Das vinte cinco crianças, onze foram autorizadas a participar pelos seus responsáveis. As crianças autorizadas pelos seus responsáveis receberam o convite para participarem da pesquisa e sua decisão também foi considerada. Das onze crianças que tiveram o consentimento dos pais, quando informadas da pesquisa e, feito o convite, elas também aceitaram sua participação no estudo.
A explicação do estudo se dava por meio do Termo de Assentimento que era composto pela foto da pesquisadora que coletou os dados, bem como por meio de desenhos que se buscava ilustrar os objetivos e os procedimentos utilizados. As crianças assinaram o termo de assentimento da mesma forma que seus pais assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Tínhamos crianças que já escreviam seus nomes convencionalmente e, outras que ainda não, e essas utilizaram uma escrita que lhe fazia sentido naquele momento da pesquisa. A escola também autorizou a realização da pesquisa, bem como, o Comitê de Ética em Pesquisa por meio do protocolo de aprovação n. 57211916.2.0000.5142 que consta na Plataforma Brasil.
A metodologia contemplou a observação participante e a realização de entrevistas com as crianças, nas quais foi utilizado o recurso de Desenho com Histórias (DH) a partir de uma adaptação dos Desenhos – Estórias, do Dr. Walter Trinca. A observação participante do recreio foi realizada três vezes por semana, durante um semestre. Esse tipo de observação pode ou não ser iniciada com a presença prévia de um ponto de vista teórico, no caso desta pesquisa, o estudo se realizou a partir da perspectiva de encontrar no pátio do recreio uma microssociedade e com o objetivo de compreender o que se passa nesse espaço, as relações, a organização e a cultura construída e reelaborada pelas crianças. Porém, o estudo também considerou a possibilidade de deparar-se com situações não previstas e que diferiam desse ponto de vista teórico adotado.
Foi necessário criar uma relação com as crianças que participaram do estudo, principalmente para que no momento das entrevistas elas tivessem certa confiança de falar sua opinião diante desse adulto que de alguma forma ainda estava em processo de ser conhecido e reconhecido por esse grupo de crianças, por isso, buscou-se construir uma relação com as crianças por meio de uma convivência inicial, uma relação mesmo que sutil.
Durante as observações utilizou-se de um diário de campo, no qual foram feitas anotações das brincadeiras, das interações, das relações entre crianças e de como apareciam as questões envolvendo gênero, raça e idade. Utilizou-se também de uma câmera para filmar o recreio, que era posicionada em um local que fosse possível registrar a maior parte do pátio. Para a presente reflexão nos debruçamos especificamente sobre os dados coletados por meio do Desenho com Histórias (D-H).
Nas entrevistas com as crianças que se utilizou do método de Desenho com Histórias (D-H), essas ocorreram numa sala disponibilizada pela direção da escola. Nos dados apresentados a seguir optamos por apresentar a narração da história que foi desenhada pelas crianças e não os desenhos visando mostrar a descrição que a criança quis apresentar sobre o seu recreio que foi representado, pois assim estamos considerando a criança enquanto autora do desenho, o desenho em si e a narração do sujeito-criança-autor que o produziu.
As crianças que participaram dessa atividade eram retiradas da sala em momentos previamente agendados com a professora. Esse momento iniciava-se a partir de uma conversa com as crianças sobre os objetivos da pesquisa e os procedimentos novamente, em seguida, pedia-se às crianças a escolha de um nome fictício para que pudesse ser utilizado na pesquisa e explicava-se às crianças o motivo de tal solicitação para que não pudesse ser revelada a identidade delas considerando os motivos éticos necessários à pesquisa.
Aproveitava-se desse momento também para mostrar registros feitos anteriormente como fotos e vídeos de conversas coletivas, explicava-se que todos que quisessem teriam a oportunidade de falar a partir das seguintes perguntas: “o que vocês pensam sobre o recreio?” e explicava-se dizendo que era no sentido deles verbalizarem o que gostavam ou o que menos gostavam, o que achavam que poderia ser diferente, quais eram suas brincadeiras, com quais crianças mais brincavam, quais os locais da escola que mais gostavam etc. Esse momento durava em torno de 45 minutos.
Em seguida sugeria-se que as crianças fizessem um desenho pensando no que haviam narrado. Nesse momento foram disponibilizados papeis e lápis às crianças. Para melhor recolher a riqueza desses encontros regados a muitas conversas também se recorreu ao uso da filmadora para captar a perspectiva das crianças que muitas vezes falavam ao mesmo tempo e do gravador como forma de garantir o áudio.
Para o desenvolvimento das atividades, as crianças realizam o desenho, em seguida, apresentavam uma história oral baseada no seu desenho, esse momento era registrado em vídeo. O vídeo era realizado por outro pesquisador, enquanto a criança e a pesquisadora que tinha mais proximidade com ela realiza a atividade. Esses momentos tinham a duração de até de 1h e 30 minutos, mas variava de acordo com o retorno do grupo de crianças, considerando àquelas que falavam mais ou menos e também a rapidez ou não em fazer o desenho e relatar a história. A pesquisa a duração de quatro meses no período de março a junho do ano de 2017.
É preciso mencionar também que os nomes que estão apenas citados com a letra inicial correspondem às crianças que não participaram da pesquisa, mas que apareceram na fala das crianças participantes.
A análise dos dados foi iniciada com a primeira etapa por meio da organização do material em ordem cronológica, a partir da transcrição dos áudios das entrevistas. Foi uma etapa de organização do material para que ao encerrar as observações, o material já estivesse pronto para ser analisado e, “a finalidade é facilitar o seu uso, permitir o pesquisador encontrar-se rapidamente no momento da análise e da interpretação em função das suas questões e hipóteses” (LAVILLE, 1999, p. 214).
A segunda etapa do processo de análise consistiu em analisar o material, foi o momento da análise do material colhido em campo por meio das entrevistas e da observação participante. Para tanto fizemos um recorte dos conteúdos por meio de consulta às anotações do diário de campo, as fotos e filmagens dos espaços e momentos do recreio, aos desenhos com histórias (D-H) e as entrevistas coletivas. Nessa fase foi possível “começar a distinguir categorias diversas significativas para classificar os conteúdos e enfocar-lhes a disposição, preparando assim as etapas por vir” (LAVILLE, 1999, p. 216).
Após fazer os recortes dos conteúdos definiu-se as categorias analíticas fazendo agrupamento de elementos comuns de sentido. Laville (1999, p. 219) apresenta três modos de definição das categorias, que se seguem:
No modelo aberto, as categorias não são fixas no início, mas tomam forma no curso da própria análise. O modelo fechado, em contrapartida, o pesquisador decide a priori as categorias, apoiando-se em um ponto de vista teórico que se propõe o mais frequentemente submeter à prova da realidade. O modelo misto situa-se entre os dois, servindo-se dos dois modelos precedentes: categorias são selecionadas no início, mas o pesquisador se permite modifica-las em função do que a análise aportará (Grifo nosso).
No nosso caso, utilizamos o modelo misto de definição das categorias, que foram as seguintes:
- “Sabe o que eu amo no recreio?” - surgiu a partir da fala de uma criança, Miguel;
- “Tem alguém nos olhando” - já constava entre os objetivos da pesquisa compreender o papel do adulto no recreio;
- “Eu vou fazer cara de brava porque eu não gosto” – também já constava entre os objetivos da pesquisa entender o que as crianças gostavam ou não no momento do recreio.
Então, o modelo de análise de dados dessa pesquisa consistiu na análise qualitativa de conteúdo por meio da categorização das unidades de análise, que de acordo com Laville (1999) “trata-se de considerar uma a uma as unidades à luz dos critérios da grade de análise para escolher a categoria que convém melhor a cada uma” (LAVILLE, 1999, p. 223). E a partir dessa atividade, iniciou-se interpretação.
A perspectiva das crianças sobre o recreio
Por meio das entrevistas a partir das Histórias com Desenho (H-D) foi possível captar olhares e falas das crianças da pré-escola sobre o recreio. A perspectiva das crianças está apresentada a partir de três categorias de análise já citadas anteriormente. A primeira categoria vem analisando o que as crianças têm a dizer sobre o que gostam de fazer no recreio; na segunda, apresentamos a concepção das crianças sobre o papel do adulto no recreio e, por fim, as crianças vêm nos dizendo o que não gostam no recreio.
As crianças buscam por meio de diferentes linguagens nos mostrarem o que pensam, o que querem, do que gostam e não gostam, basta apenas que nós adultos nos voltemos para elas, para ouvir e observar o que elas têm a dizer. Foi por meio de um movimento de escuta, de interlocução e interação com os sujeitos que surgiram os dados apresentados a seguir.
A primeira categoria de análise denominada “Sabe o que eu amo no recreio?” surgiu a partir da fala de uma criança, o Miguel, que fez o seu desenho sobre o quanto ele ama o recreio e vem medindo esse amor em graus:
Na fala de Miguel é possível notar que a atividade que ele mais gosta de fazer no recreio é correr com seus amigos. Ao ser questionado sobre quais atividades se faz em um recreio considerado “legal” (utilizado a designação utilizada por Miguel), ele apresenta certo grau de surpresa quando responde dizendo: “ué correr”. Essa expressão representou certa admiração, pois como a pesquisadora não sabia o que se faz em um recreio que é “super” legal? A expressão utilizada carrega esse espanto e certa obviedade da parte de Miguel, já que o que não poderia faltar em um bom recreio é uma corrida certamente.
O “correr” apareceu nos desenhos e nas falas de várias crianças incluindo meninos e meninas. Apesar de os adultos não aprovarem, como será discutido posteriormente, a corrida para a criança é uma forma de brincar, de prazer e para ela essa brincadeira é muito importante. Pelas observações foi possível perceber que o espaço onde acontecia o recreio era tomado por crianças correndo por todos os lados. Foi possível presenciar meninas correndo atrás de meninos, meninos atrás de meninas, brincadeiras de pega-pega, de polícia e ladrão, brincadeiras de faz de conta etc.
No Desenho com História (D-H) de Gabriel, ele fez um desenho sobre a brincadeira de polícia e ladrão e, em seguida, contou a história presente no seu desenho como segue no relato a seguir:
Da mesma forma que a corrida envolvendo a brincadeira de polícia e ladrão, existem muitas brincadeiras que podem ser transmitidas por meio da cultura infantil entre os pares, pois “o brincar constitui um fato social e refere-se a determinada imagem de criança e brincadeira de uma comunidade ou grupo de pessoas específicos” (WAJSKOP, 1995, p. 65).
A brincadeira de polícia e ladrão é bastante popular entre as crianças no recreio. Observando essa brincadeira, pode-se perceber que a maioria dos integrantes são meninos, porém, algumas meninas também participam. A história contada por Gabriel remete ao faz de conta também ao juntar elementos presentes nos contos de fada como “era uma vez” e “ficaram felizes para sempre”, bem como, situações do cotidiano que envolvem violência e que podem ser vistas na televisão e no vídeo game onde podemos ver ladrões” correndo/fugindo a partir do roubo de dinheiro e o papel da polícia que aparece no desenho também correndo com o intuito de capturar os ladrões.
Nesse sentido, de acordo com Delalande (2011, p. 71) os pátios de recreação podem ser vistos como “lugares de transmissão de uma cultura infantil”, pois ao recolhermos dados como dessa brincadeira desenhada e narrada por Gabriel temos a transmissão de práticas culturais que são transmitidas e transformadas “a partir de elementos tomados tanto do mundo da infância como dos adultos”. Demonstrando inclusive que esses grupos não estão fechados em si mesmos. Isso é o que Sarmento (2011) nos mostra ao discutir sobre a intersecção de vários códigos culturais de socialização das crianças por meio da cultura local, nacional, escolar, familiar, global etc. que se articulam na imersão das crianças num universo simbólico a partir de referências de diferentes origens. As crianças interpretam e ressignificam esses códigos carregados de simbolismo a partir da sua perspectiva infantil.
Corsaro (2011) também nos ajuda nessa reflexão ao mostrar que um dos planos de produção e reprodução cultural das culturas infantis está ligada à aspectos simbólicos presentes na cultura produzida pelo adulto para a infância e que pode ser encontrada na literatura infantil, na mídia por meio dos desenhos e filmes, nos jogos de vídeo game etc. Assim as crianças trazem elementos para suas brincadeiras de acordo com que vivenciam, das histórias que ouvem, do que veem na televisão, nos desenhos e jogos que lhes são disponibilizados.
Assim notamos que há a representação interpretativa nesta brincadeira como forma de entender a realidade do mundo adulto que se mistura com a fantasia, sendo esta uma forma de produção cultural da criança. Contudo, Gabriel vem dizendo que está brincando com o primo e que aquilo é de mentirinha, buscando explicar que aquela brincadeira pode acontecer, mas a história que contou é um faz de conta, não é real, ainda mais que nessa brincadeira ele mesmo era o ladrão junto com seu primo e justamente nessa parte ele faz questão de dizer que “era de mentirinha”. Roubar e ser ladrão nessa perspectiva da brincadeira desenhada já possui a conotação de algo errado e que não se deve fazer, ou seja, em suas culturas infantis as crianças já se apropriaram da ideia do que é visto como moralmente aceito ou rejeitado socialmente.
Assim como Gabriel, Laís também conta uma história sobre o seu desenho ligada a um faz de conta, mas esse pode ser identificado com um “clássico”. Um tipo de leitura que as crianças costumam ouvir dos familiares e na escola. Ela relaciona o seu desenho à história da “Chapeuzinho Vermelho”, como consta no relato abaixo:
Quando Laís é questionada sobre o motivo do recreio ser legal, ela diz ser em razão de estar correndo e o Lobo Mau estar brincando com ela e, ainda acrescentou que o Papai Noel também estava. Os dois personagens são também ligados a aspectos simbólicos da cultura infantil e que está relacionado à família, aos valores míticos e as lendas de acordo com Corsaro (2011). Trazendo esses personagens para a história e para a sua brincadeira, Laís está incorporando-os em suas brincadeiras e fazendo com que sejam parte das suas produções culturais e reproduções interpretativas acerca do imaginário presente no mundo adulto que lhes é transmitido como algo para crianças.
Ao contar a história relacionada à de Chapeuzinho Vermelho, Laís apresenta uma interpretação da história, pois “o mundo do faz de conta integra a construção pela criança da sua visão do mundo e da atribuição do significado às coisas” (SARMENTO, 2011, p. 52).
Na brincadeira ela é perseguida pelo Lobo Mau e na história que ela conta sobre o desenho aparece a Chapeuzinho sendo enganada pelo Lobo. Dessa forma, entende-se que ela é a personagem, e a forma como eles estão brincando envolve a corrida, que aparece como uma das atividades que ela gosta de realizar no recreio.
Além da corrida, outras brincadeiras também apareceram no relato das crianças. Se considerarmos a fala de Júlia, ela vem justificando que o recreio é legal, pois tem muitas crianças brincando:
A fala de Júlia nos remete à discussão de Delalande (2011) à respeito do modo como o grupo de crianças no momento do recreio se constitui em uma microssociedade “no interior da qual cada criança deve encontrar o seu lugar para integração numa brincadeira” (p. 70).
Nos remete também às cenas observadas durante a pesquisa, nas quais foi possível acompanhar as crianças brincando no escorregador, brincando com suas lancheiras que, às vezes, eram transformadas em escudos ou telefones celulares etc. Podemos entender que “a brincadeira compreende uma atitude mental e uma linguagem baseadas na atribuição de significados aos objetos e à linguagem, comunicados e expressos por um sistema próprio de signos e sinais” (WAJSKOP, 1995, p. 65), então a partir das brincadeiras as crianças se colocam em diferentes situações, representam o real, transformam objetos para comporem os objetos ausentes, se encontram com diferentes culturas provindas das origens dos seus amigos e produzem novas culturas juntas por meio da ressignificação.
A seguir o relato de Júlia que nos conta sobre a brincadeira de pega-pega com alguns amigos e amigas:
Na fala de Júlia, percebemos o prazer que ela apresenta a brincadeira de pega-pega. Ela também apresenta uma sucessão de acontecimentos envolvendo a brincadeira entre ela e três amigos na qual um começa sendo àquele que é o “pegador”, depois vão se revezando nesse papel mostrando como as crianças ao interagirem entre si podem desmontar alguns estereótipos relacionado ao gênero, já que independente de ser menino ou menina, todos revezam no papel principal de “pegador”.
Na brincadeira, as crianças podem pensar e experimentar situações novas ou mesmo do seu cotidiano, pois as brincadeiras durante o recreio acontecem principalmente com grupos de pares, pois “as crianças formam grupos estáveis, mesmo que, além de sua pertença a um, cada criança cria relações mais rotineiras e menos visíveis” (DELALANDE, 2011, p. 73) aos adultos que “olham” esse recreio, e que muitas vezes não percebem as brincadeiras que se repetem diariamente, não identificam as crianças que são as propositoras das brincadeiras e nem o motivo pelo qual correr é tão prazeroso e presente na maior parte das brincadeiras entre os grupos de crianças.
Considerando o relato das crianças pode-se inferir que elas fazem parte de um grupo de pares, que elas se relacionam e partilham experiências, além de criarem dependências para realizarem suas brincadeiras e assim produzirem suas culturas infantis.
Em relação à figura do adulto no recreio chegamos à segunda categoria de análise denominada “tem alguém nos olhando”. Quando as crianças são questionadas sobre o adulto e o seu papel no recreio, esse sujeito é visto como uma figura de autoridade e que tem como função vigiar o recreio, manter a ordem e não permitir que as crianças executem brincadeiras que ofereçam riscos, principalmente brincadeiras do tipo “correr” que envolvem movimentação entre as crianças.
Nesse sentido, podemos recorrer à Sarmento (2011) que nos ajuda a compreender como as crianças nas relações com os adultos partilham, reproduzem, interpretam códigos culturais que envolvem dimensões normativas e regras de conduta como é o caso das crianças no momento do recreio e a associação que fazem ao papel do adulto enquanto aquele que proíbe as corridas e a agitação entre elas.
Podemos entender essa concepção do adulto no recreio a partir dos relatos de Carla e Gustavo:
Os adultos, dessa forma, restringem as brincadeiras, ao que pensam ser correto e talvez “seguro”, porém para as crianças restam poucas possibilidades para brincar, no que foi possível ser observado, pois não são disponibilizados brinquedos no momento do recreio que poderiam possibilitar outras brincadeiras. Os únicos brinquedos disponíveis para as crianças são dois escorregadores, no entanto o número de crianças é grande e somente os dois brinquedos não são suficientes para atender a todas as crianças. Na ausência do brinquedo, as crianças fazem uso do próprio corpo como a brincadeira de luta, pega-pega e polícia e ladrão, por exemplo.
Se podemos pensar que na falta do brinquedo, a criança remete ao uso do corpo para brincar, devemos considerar também que essa é uma lógica que se distancia do modo como a escola concebe isso, pois historicamente essa instituição vem limitando o movimento das crianças, já que esse corpo infantil deve se restringir às brincadeiras que não levem à euforia como correr ou lutar. É essa perspectiva que justifica profissionais da educação básica afirmarem que após o recreio as crianças/os alunos retornam mais agitados para as salas, o que acarreta certos problemas para o “bom” andamento das atividades ditas “pedagógicas”.
Dessa forma, para os adultos num recreio “organizado”, as crianças deveriam fazer o uso mínimo dos seus corpos. Esta lógica nos remete ao que Foucault (2002) nos apresenta sobre a produção de corpos dóceis: “um corpo bem disciplinado forma o contexto da realização do mínimo gesto (...) um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente” (p. 147). Um gesto eficiente se distingue de algo descoordenado, desatento, agitado etc. Tal lógica não faz sentido num ambiente em que os corpos são utilizados para brincar, o que evolve diferentes movimentos.
Na terceira categoria denominada “eu vou fazer cara de brava porque eu não gosto” iremos visualizar relatos trazidos pelas crianças de um recreio que não é considerado “bom”. Foi possível identificar suas visões desse período, mas encontramos diferentes concepções, isto é, o que é ruim para uma criança nem sempre é um motivo similar apresentado por outra.
Podemos observar os relatos de Antônia, a partir do qual foi possível perceber que ela não gosta de ficar sentada e nem fazendo atividade em sala durante o recreio e quando ela tem que ficar, esse se torna um momento ruim e, de fato, não poderia ser diferente. Vejamos:
No seu desenho, aparece Antônia sentada na mesa fazendo tarefa, momento no qual as demais crianças podem brincar e ela não. O seu desenho mostra a negatividade dessa restrição e então mais uma vez esta ação de autorizar brincar e proibir o brincar é realizada por um adulto que acaba por dominar as ações da criança.
A palavra castigo carrega um sentido de punição, de repreensão. A escola desse modo mostra-se punitiva e vem provando isso quando ensina para a criança que: “se você não faz o que queremos lhe tiramos o que você mais gosta – o recreio”. Desse modo não se considera as razões pelas quais a criança deixou de fazer a atividade e, ao mesmo tempo, se ensina que fazer atividade é algo negativo/ruim, pois é aplicado como um castigo.
Ainda relacionado ao ficar sentado no recreio e apresentando esta obrigação como algo ruim, João vem explicando que não gosta de ficar sentado nesse momento, pois para ele não é bom, já que gosta de correr com outros amigos como foi relatado a seguir:
No seu desenho, João desenhou uma mesa rodeada de cadeiras, representando o momento no qual as crianças devem permanecer sentadas durante o recreio até terminarem seus lanches. O recreio tem a duração de 15 minutos e muitas crianças passam boa parte sentadas até terminarem de comer os seus lanches. Algumas até passam o tempo todo sentadas lanchando e quando levantam para realizar outra atividade precisam retornar e fazer a fila com a sua professora para voltar para a sala de aula. Ou seja, não houve tempo para o brincar, para as crianças se relacionarem com seus pares, se divertirem, trocarem experiências, conversarem entre si etc. Assim, é o adulto que controla esse tempo escolar, é quem decide o que e quando fazer, deixando de olhar para o interesse da criança, deixando assim de construir uma relação com ela, fazendo, portanto, a sua vontade e tomando decisões sem considerar os interesses das crianças.
Considerações Finais
A partir da pesquisa realizada buscou-se investigar os sentidos atribuídos pelas crianças às suas vivências no momento do recreio. O desenho foi utilizado como um dos procedimentos da pesquisa a partir da adaptação da técnica do Desenhos-Estórias. O desenho foi considerado nesse estudo como uma produção simbólica e cultural das crianças, por isso, um momento bastante importante de expressividade infantil.
O que foi desenhado e relatado pelas crianças? As crianças desenharam as interações com seus pares nos momentos de brincadeira; as brincadeiras que mais gostavam de brincar no momento do recreio; a perda do recreio como uma forma de castigo estipulado pelo adulto e também a visão desse sujeito como aquele que vigia o momento do recreio. Nos desenhos encontramos também uma cultura material da infância atravessada pelas influências das mídias que foram narradas pelas crianças ao contarem sobre seus desenhos.
As crianças ocupam o pátio da escola e o transformam num território da infância apesar do adulto buscar o controle desse espaço e dos corpos das crianças impedindo certas brincadeiras, interações e agrupamentos.
O recreio se mostrou como um momento bastante prazeroso para as crianças. Um momento que se faz a partir de trocas, interações, compartilhamentos e aprendizagens entre as crianças que tem como marca a ludicidade e a cultura de pares, mas há também os momentos não tão prazerosos caracterizados por ficar de castigo na sala e ter que ficar sentado o tempo todo em que se está comendo o lanche, o que gera uma “perda” de tempo, já que o recreio tem um tempo muito curto e impossibilita que as crianças brinquem e interajam.
O tempo do recreio é um momento importante de ser observado no qual as crianças nos fornecem informações de como estão no mundo e seus modos de compreendê-lo. Elas nos apresentam seus gostos, seus desagrados, informações e concepções advindas das suas relações com seus pares, os adultos e as mídias. O recreio é um tempo no qual as crianças buscam transformar o tempo institucional em tempo da infância distinguindo-o do tempo escolar.
Assim, por meio dessa pesquisa sobre o recreio buscou-se apresentar a perspectiva das crianças com o intuito da escola voltar o olhar para esse momento que é tão rico e também para as crianças enquanto sujeitos com direito à voz, que apresentam concepções sobre a organização da rotina e que podem contribuir para a constituição de uma instituição educativa mais voltada para suas necessidades.
Quando brincam as crianças se colocam em diferentes situações, representam o real, transformam objetos para comporem os ausentes, se encontram com diferentes culturas provindas das origens dos seus pares e produzem novas culturas juntas por meio da ressignificação.
Nas várias entrevistas realizadas com as crianças por meio do Desenho com Histórias (D-H), em nenhuma apareceu menção a brinquedos para brincar no momento do recreio. Na maior parte das observações e nas falas das crianças apareceram brincadeiras nas quais elas utilizam o corpo, mas são também na maior parte do tempo proibidas de utilizá-lo da forma como desejam, isto é, correndo, se movimentando.
Podemos inferir que a falta de brinquedos remete ao uso do corpo para brincar, mas isso se choca com a lógica da escola a partir da qual o corpo deve se limitar às brincadeiras que não levem as crianças à euforia/agitação, isto é, a criança deveria desenvolver brincadeiras que exercitem o mínimo possível do corpo. É bastante inadequado este domínio do corpo, já que as crianças possuem pouca coisa além dele para brincarem.
E, por fim, as relações com os adultos no recreio, no qual este é visto como àquele que vigia esse momento e zela para que acidentes não aconteçam. Os adultos, dessa forma, restringem as brincadeiras, ao que pensam ser correto e talvez “seguro”, porém para as crianças restam poucas possibilidades para brincar.
Dessa forma, consideramos que a instituição educativa a partir de uma rotina e de um olhar adultocêntrico desconsidera as necessidades das crianças ao não privilegiar o que elas têm a dizer sobre os aspectos da escola que lhes interessa e que poderia ser um meio de atrelar a perspectiva infantil à organização do trabalho cotidiano, bem como, podemos dizer da invisibilidade da cultura infantil por parte dos adultos que interagem com as crianças.
É importante pontuar que a partir da Lei nº 12.796 de 2013 que tornou obrigatória a matrícula de crianças de 4 e 5 anos de idade, muitas escolas de ensino fundamental I passou a acolher as crianças dessa faixa etária, ou seja, muitas crianças brasileiras vivem essa realidade no nosso país ao serem retiradas das instituições de educação infantil. Se considerarmos a importância do espaço físico na educação infantil e seu modo de organização para as crianças de 0 a 5 anos, podemos afirmar que a alocação das crianças em escolas de ensino fundamental apresenta uma contradição pedagógica, pois a importância em se falar da organização dos espaços apropriados para as crianças está no fato de que o modo como o espaço é concebido e apresentado imprime concepções que se tem de criança e de educação e refletirá diretamente nas atividades desenvolvidas com as crianças.
Nesse sentido, tanto Corsaro quanto Delalande chamam atenção é muito importante para o desenvolvimento de uma nova concepção de infância e de criança. Este novo pensamento deve não somente atingir o campo científico, mas o campo social, os espaços de vida das crianças, como as escolas, os espaços familiares e os espaços públicos, de modo que, os adultos passem a enxergar a criança como sujeito pleno, não esperando que ela se torne um sujeito para com ela se relacionar, para oferecer atenção à sua fala. A criança deve ser reconhecida como sujeito e em suas possibilidades hoje tendo a garantia que ela viva o seu presente.
As crianças estão a todo o momento dizendo quais são as suas vontades, por meio de diferentes linguagens e expressões, as crianças reivindicam os seus direitos e, quando o adulto se dispõe a escutá-las é capaz de identificar essas manifestações, por isso, ouvir a criança é algo tão importante. As crianças agem e provocam ações nos espaços que vivem, elas são atores de sua socialização e da construção das suas culturas, e assim elas estabelecem ações que são particulares e causam impactos nesses espaços, afetando não somente seus grupos de pares, mas todos que com elas se relacionam.
Nesse sentido, é importante a escuta das crianças, mas é algo ainda muito incipiente nas instituições educativas e como nos mostra Corsaro (2011, p. 131) “a participação das crianças nas decisões sobre os cuidados oferecidos por pessoas de fora da família ou sobre a educação infantil em programas pré-escolares é limitada”. Podemos dizer que é quase inexistente, assim o desafio é possibilitar lugares de fala e escuta às crianças, bem como, identificar no momento do recreio, na sala de aula, nos lugares de vida da criança as suas produções culturais, valorizando-a e entendendo-a.
REFERÊNCIAS
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Notas