in Olhar de Professor
CORONAVÍRUS E DESIGUALDADES EDUCACIONAIS: REPOSICIONANDO O DEBATE
Resumo
O ensaio traz algumas questões e apontamentos sobre o impacto do novo coronavírus nos processos educativos, com especial atenção para o aprofundamento das desigualdades educacionais em situações de emergência global. Trata-se de tensionar tanto as estratégias adotadas por instituições de ensino, com o predomínio das mediações tecnológicas e utilização de ferramentas digitais, quanto os desafios de educar democraticamente no contexto atual. Finalmente, questionamos: qual o papel e quais são os limites das práticas educativas a distância em um país marcado por desigualdades estruturais?
Main Text
COTIDIANO PANDÊMICO
Quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou, no dia 11 de março de 2020, a pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), a real dimensão de seu significado ainda não estava colocada para nós. A mudança de classificação do estado de contaminação e o desconhecimento acerca de todos os sintomas relacionados ao Covid-19, ainda hoje em atualização, trouxeram para centro do debate duas variáveis importantes: a dimensão social da epidemia e a rápida disseminação geográfica, exigindo medidas e protocolos governamentais de ação conjunta.
A infecção generalizada causada pelo vírus, apesar da gestão da epidemia em diferentes escalas por parte dos países afetados e do monitoramento global, atingiu continentes e territórios de modo diferenciado. O coronavírus aprofundou ainda mais as linhas abissais entre grupos sociais, segmentos marginalizados e aqueles que têm o direito efetivamente ao isolamento social com dignidade, resguardados em seus domicílios e sem se expor ao risco alargado da contaminação1. Mas não é só isso. A chance dilatada de adoecimento e morte, os obstáculos interpostos no acesso aos sistemas de saúde – sobrecarregados – e a intensificação dos riscos recaem, assimetricamente, aos segmentos mais vulnerabilizados da sociedade brasileira, que têm cor e classe social bem definidas. Populações negras, periféricas, ribeirinhas, quilombolas, ameríndias, alvos diletos do racismo institucional brasileiro, experimentam acentuada precarização das possibilidades de sobrevivência, devido ao deliberado abandono a que são relegadas. Precariedades social, laboral e sanitária que, imbricadas, expõem uma fratura social, exacerbada em territórios onde é patente a dificuldade de permanecer em isolamento social. Nesse sentido, a epidemia não tem nada de democrática.
A constatação da incidência mais extensiva da doença nos grupos considerados de risco, como idosos e pessoas com doenças crônicas, não se reduz àqueles que apresentam mais comorbidades. E talvez esse seja o lado mais mórbido dessa epidemia: ela escancara as estruturas desiguais, que atravessam todos âmbitos sociais, e que consolidam a redistribuição desigual da vulnerabilidade (MBEMBE, 2020). Como destacaria Butler,
A discussão acerca da educação em contextos de pandemia não pode ignorar esse cenário de desigualdades socioeconômicas e raciais. Tampouco a cultura de privilégios – de raça, classe, território – que opera em benefício de alguns grupos e impede que transformações estruturais, coletivas e democráticas, revertam a lógica de desumanização e de (des)vantagens em curso no país, seja revestida pelos contornos da meritocracia, seja na desconsideração da interseccionalidade como ferramenta imprescindível de análise das desigualdades educacionais.
Por isso, ao discutir as práticas de educação a distância (EaD), é preciso atentar para o fato de que nem todos/as têm acesso aos meios e aos instrumentos necessários para serem digitalmente integrados/as nessa modalidade de ensino; e, ainda que tenham acesso, isso não significa que dominem plataformas e linguagens digitais, sequer que disponham das condições mínimas para um processo significativo de ensino-aprendizagem em suas residências e territórios – tanto no que concerne à disponibilidade de infraestrutura e dos dispositivos de acesso ao ambiente digital, quanto às condições para o acesso efetivo, isto é, a posse e o uso pessoal dos dispositivos digitais.
DISTÂNCIAS NA EDUCAÇÃO
A declaração da pandemia, a suspensão das atividades não essenciais e o decreto das quarentenas incidiu diretamente sobre instituições e processos educativos. A emergência de saúde pública gerou uma série de desafios que foram apresentados a estudantes e professores/as, quer pela pressão do oferecimento das aulas virtuais, ofertadas na modalidade de ensino a distância, quer pela possibilidade de anulação do ano letivo e pelo aumento da evasão escolar.
Rapidamente, a modalidade da EaD foi considerada e adotada por instituições públicas e privadas como solução inevitável para continuidade do ano letivo. Mas não sem gerar múltiplos debates, por meio dos quais foram e são tratados o lugar, o papel, a função e a finalidade das tecnologias da informação e da comunicação (TIC) como ferramentas de mediação didático-pedagógica no processo de ensino, aprendizagem e pesquisa.
A suposta “autonomia para estudar” e flexibilidade na construção do conhecimento à distância (física), anunciadas como salvação para a conjuntura atual, esbarram, porém, em alguns obstáculos. Sobretudo, diante da inegável desigualdade digital que assola o país, onde 20 milhões de domicílios não possuem acesso à internet2. A EaD, nesses parâmetros, pode distanciar ainda mais as classes sociais que usufruem dos meios, dos serviços, dos suportes e das ferramentas indispensáveis para continuidade do período letivo e aquelas que reivindicam a infraestrutura básica de sobrevivência. As disparidades de acesso, utilização e domínio das TIC, sem dúvidas, dificultam a execução de políticas de virtualização do ensino na educação básica e superior que vêm sendo implementadas, atingindo crianças e jovens socioeconomicamente e racialmente vulneráveis de maneira desproporcional3.
Não se trata, todavia, de condenar a priori a utilização dos recursos tecnológicos, como se eles não trouxessem benefícios nesse contexto de pandemia. Temos aprendido, estudantes e professores/as, a acionar os dispositivos tecnológicos e a utilizá-los a nosso favor, apesar das adversidades. Trata-se, sim, de trazer ao foco da discussão a necessidade de garantir o direito à educação para todos/as, e como, diante da constatação do abismo social que separa a população brasileira, a utilização dessas tecnologias digitais poderia operar o reforço da estratificação digital/social, bem como das desvantagens de oportunidades experimentadas por determinados/as estudantes.
Muito se tem debatido sobre a função, o papel e os limites das práticas de educação a distância e suas ambivalências. De fato, a expansão da EaD nos últimos anos tem sido atravessada por contradições e desconhecimento, tanto por parte das instituições que a promovem quanto por seus críticos. A investigação sobre as metodologias, os planejamentos, os métodos avaliativos e as concepções teóricas específicas, que poderia adensar a reflexão sobre essa modalidade, culmina por reduzi-la à instrumentalização técnica e à mediação digital, via TIC. Não à toa, a onda neoliberalizante (LAVAL, 2019) que atingiu a educação enxergou na implementação da EaD e dos ambientes virtuais de aprendizagem (AVA) a possibilidade de cortar custos, restringir os quadros docentes e de produzir o sujeito da educação como gerente de seu auto-investimento produtivo, isto é, de seu próprio aprendizado. A propalada autonomia do estudante, como sabemos, converte-se, não raramente, na deriva do itinerário formativo, com possibilidades reduzidas de interação efetiva entre os sujeitos, cuja consequência é a desmotivação que acomete parcela significativa dos/as estudantes.
Nesse contexto, a questão dos usos, dos procedimentos e dos recursos aplicados ao ensino não pode deixar de considerar a reflexão sobre o quem e não se limitar apenas ao como das práticas educativas (VALLE; BOHADANA, 2010). A ausência dessa reflexão incorre no risco de ampliação dos processos de mercantilização e da precarização da educação brasileira, reiterando a lógica de exclusões e sucateamento que opera em benefício das grandes empresas educacionais.
Ora, as desigualdades sociais e educacionais no Brasil, como se sabe, são racialmente marcadas4. E a variável raça/cor, nessa economia das diferenças, é elemento central que organiza as relações de poder e de desigualdade, e que expõe, ainda, as insuficiências e ineficiências das políticas públicas atuais de combate às disparidades raciais/sociais. A invisibilidade das desigualdades raciais, contudo, não pode seguir norteando as políticas públicas educacionais, sobretudo pelo prejuízo que gera àqueles/as que mais dependem dos sistemas públicos de educação. Assimetrias profundas que devem ser problematizadas e combatidas, pois, para além do debate entre “presença” e “distância” que figura nas principais discussões no campo da educação sobre EaD, é preciso não perder de vista a finalidade do que está em questão – e se, nesse sentido, os fins justificam os usos dos meios tecnológicos.
PARA NÃO CONCLUIR
A interrupção educacional afeta desproporcionalmente segmentos sociais e raciais mais vulneráveis. O compromisso de pactuar e garantir que as premissas de equidade da educação pública sejam mantidas, mesmo na modalidade EaD, requer que sejam encontradas soluções que não resultem em prejuízo ainda maior aos/às estudantes que se deparam com barreiras materiais e simbólicas para o efetivo exercício de seu direito à educação. Isso sem mencionar os desafios suplementares colocados à educação infantil e ao ensino fundamental; as especificidades sociodemográficas e territoriais do campo; a educação de jovens e adultos; a educação em ambientes de restrição e privação de liberdade.
A reflexão sobre a prática educativa, portanto, deve considerar a situação dos estudantes em vulnerabilidade racial/social, e buscar medidas pautadas pelo princípio de acessibilidade, pela participação conjunta da comunidade e dos profissionais da educação, em acordo com os direitos humanos. O estado de emergência atual não pode significar reforço da lógica necroliberal, que exige sacrifícios de alguns para que outros usufruam os benefícios materiais e simbólicos proporcionados aos grupos hegemônicos.
Se a educação é um direito de todos/as, é imperativo questionar essas desigualdades, que se traduzem em evidentes desvantagens experimentadas pelas populações periféricas e em situação de maior vulnerabilidade. É fundamental, ainda, que se conjuguem políticas públicas de longo prazo – e de amplo alcance – e ações emergenciais.
O distanciamento e o isolamento sociais, nesse momento, não devem ter como consequência a ampliação dos efeitos nocivos das crises que, historicamente, recaem prioritariamente sobre populações negras, pobres e periféricas. O aporte de recursos em infraestrutura básica, em educação e pesquisa é incontornável para que direitos sociais sejam promovidos e garantidos, especialmente no acesso a um sistema educacional universal – financiado adequadamente –, e na permanência de segmentos que não cessam de ser pressionados à evasão.
Os desafios com os quais nos deparamos diante da realidade virtual exigem que nós repensemos, sim, as potencialidades dos aparatos tecnológicos para fins educativos. Mas, também, que aprofundemos o debate acerca do pedagógico e da necessidade de ressignificar os processos educativos, sem perder o foco de nossas práticas: a formação humana de sujeitos em permanente processo de produção e reinvenção de suas próprias vidas. A questão, por fim, é: será possível combater as desigualdades sociodigitais sem enfrentar, radicalmente, as disparidades sócio raciais e territoriais que cindem a sociedade brasileira? Sem encarar esse problema, alguns continuarão sonhando com o retorno à normalidade após o término da pandemia. O problema é que a exclusão também tem sido, historicamente, a norma que vige no Brasil.
Resumo
Main Text
COTIDIANO PANDÊMICO
DISTÂNCIAS NA EDUCAÇÃO
PARA NÃO CONCLUIR