in Olhar de Professor
Contação de histórias em tempos de COVID-19: estabelecendo vínculos afetivos entre professora, crianças e famílias
Resumo
Este trabalho é o relato de experiência de uma professora de Educação Infantil, da Rede Municipal de Santa Maria, RS, a qual procura estabelecer e manter vínculos afetivos com crianças pequenas e suas famílias por meio de contato virtual com contações de histórias. Como aporte teórico, usa-se Wallon (2005), Vygotsky (1984), Pichon-Rivière (1998), Paulo Freire (1997, 2011) e Marie-Christine Josso (2010). Durante essa vivência, em meio à pandemia de COVID-19, pelo contato através das redes sociais, principalmente via whatsapp, é possível perceber que esse tipo de proposta pedagógica proporciona a auto(trans)formação da professora e momentos lúdicos às crianças e aos seus familiares. As contações de histórias mantêm e estreitam vínculos afetivos estabelecidos, bem como possibilitam que relações de confiança e de ajuda mútua sejam consolidadas.
Main Text
Introdução
O tema deste trabalho é uma reflexão sobre os esforços de uma professora da primeira etapa da Educação Básica (Educação Infantil), para manter e estreitar os vínculos afetivos já estabelecidos com as crianças e suas famílias no curto espaço de tempo entre o início das aulas e a paralização delas em face da pandemia de COVID-19, por meio de contações de histórias.
Em tempos de pandemia e de distanciamento social, surge, para os docentes, o questionamento: como estabelecer e manter os vínculos afetivos com as crianças e suas famílias? Ressalta-se a auto(trans)formação da docente no fazer o que lhe é possível, no contexto em que atua, para manter o contato com os sujeitos envolvidos.
O ambiente de atuação é uma Escola Pública de Educação Infantil do município de Santa Maria/RS, com uma turma de Berçário II (B-II: crianças de 1 ano e meio a 2 anos) e Maternal II (M-II: crianças de 3 anos e meio a 4 anos). O esforço é para manter os vínculos afetivos já estabelecidos, ampliando-os, para que permaneçam e sejam consolidados, mesmo sem a presença física que possibilita o olhar, o toque e a comunicação verbal e não verbal, vitais para a convivência e o aprendizado mútuos.
A intenção desta escrita não é dialogar sobre “dimensões estéticas da leitura literária infantil” (CHAVES e KOEHLER, 2021, p. 421) nem sobre as funções social e política da contação, mas relatar as vivências em disponibilizar um momento de leveza realizado com amorosidade, com a possibilidade de estabelecer vínculos afetivos entre os envolvidos, ou seja, os bebês e as crianças bem pequenas, com suas famílias, mediados pela professora no período pandêmico. Também, que esses momentos servissem para que cada um pudesse dizer a “sua palavra”, demonstrar seus sentimentos.
Para ter um suporte teórico, usam-se conceitos de Wallon (1975, 1971), Vygotsky (1994), Pichon-Rivière (1998) e Paulo Freire (1997, 2011).
Pondera-se a compreensão sobre a afetividade e os vínculos afetivos e aponta-se os meios usados para viabilizar a comunicação entre os sujeitos envolvidos, bem como ressaltar algumas vivências significativas.
É possível perceber que essa proposta pedagógica permite, pela ludicidade dos sentimentos vividos durante as contações de histórias, que as relações de confiança e a ajuda mútua sejam ampliadas e consolidadas.
Importância dos vínculos afetivos estabelecidos
Estudos realizados
Compreende-se que são estabelecidos vínculos afetivos através da convivência, da proximidade, da afetividade, dos sentimentos, das relações, das emoções e da comunicação, surgidos por meio da confiança mútua, das amizades, da afinidade e do coleguismo entre os sujeitos. A forma de se estabelecerem essas relações foi abruptamente modificada em face da pandemia. Sem aviso prévio, foi necessário reinventar-se, sempre considerando a faixa etária dos discentes envolvidos.
Assim, busca-se suporte teórico nas concepções de Wallon (2005) a respeito da afetividade que, tanto quanto a inteligência, tem papel imprescindível nos processos de desenvolvimento da personalidade das crianças. Os professores percebem o estado emotivo das crianças e desafiam-se a abordá-lo para ampliar o desenvolvimento dos sujeitos.
As atitudes mostram traços da personalidade e do caráter e demonstram o quanto a raiva, a alegria, a tristeza, o medo e os sentimentos mais íntimos adquirem funções importantes nas relações das crianças com o meio. A afetividade é o elemento mediador das relações sociais, uma vez que
De acordo com o autor abordado, afetividade é o termo utilizado para identificar um domínio funcional abrangente, no qual aparecem variadas manifestações, que vão desde as primeiras, basicamente orgânicas, até as diferenciadas, como as emoções, os sentimentos e as paixões. Uma criança, quando emocionada, demonstra sua inquietude de diversas formas, pelo choro, pela violência, pela cólera, pelo carinho, mas, seja como for, geralmente o seu corpo é a “fonte” usada para essa expressividade. Assim, ao manifestar suas emoções e desejos, as crianças demonstram sua afetividade.
É necessário destacar também os estudos das obras de L. S. Vygotsky (1984), os quais têm importante relevância sobre a concepção do pensamento e da linguagem, bem como sobre a importância das relações entre os sujeitos no meio educacional para o desenvolvimento deles próprios. Para entender melhor o indivíduo, primeiro deve-se entender as relações sociais nas . pelas quais ele se desenvolve. Assim, as respostas individuais surgem das formas de vida coletiva.
As pesquisas desse autor buscam compreender como o contexto sociocultural pode influenciar e determinar o desenvolvimento humano, em especial, o desenvolvimento das crianças e suas aprendizagens. Segundo Vygotsky:
A forma como as crianças se expressam funciona como “mola propulsora” da aprendizagem, e é por ela que se moldam as relações com os outros, sendo possível o desenvolvimento mental.
É primordial e indiscutível que crianças e docentes se relacionam de forma afetiva, e, para compreender essas relações, é possível expor dados acerca dos vínculos afetivos a partir das teorias de Pichon-Rivière (1998). O autor destaca que
Os vínculos afetivos estão diretamente relacionados à comunicação e às relações entre as pessoas. Como explica o autor supracitado, usa-se, como material de trabalho, a observação permanente da forma particular como cada sujeito relaciona-se com outros, elaborando um alicerce individual a cada caso e momento, chamado de vínculo. As formas como as pessoas se relacionam entre si permitem entender a importância dos vínculos afetivos.
Entende-se que “é possível estabelecer um vínculo, uma relação de objeto, com um objeto interno e também com um objeto externo” (PICHON-RIVIÈRE, 1998, p. 18). No atual contexto de isolamento social, do ponto de vista psicossocial, observam-se os vínculos externos que são as relações entre as pessoas, o respeito e a confiança que surgem.
Freire (1997), ao tratar da educação, destaca que professoras e professores precisam sentir afetividade pelas crianças, pois: “É impossível ensinar sem a capacidade forjada, inventada, bem cuidada de amar [...] É preciso ousar para jamais dicotomizar o cognitivo do emocional” (p. 8). Nota-se que docentes que trabalham com bebês e crianças pequenas vivenciam diariamente os vínculos afetivos sendo estabelecidos e o conhecimento infantil sendo produzido; nessa vivência, progridem e auto(trans)formam-se.
Ao destacar a auto(trans)formação, é necessário informar o significado desse termo, de acordo com o que vem sendo estudado, tendo como principal referência teórica os escritos de Paulo Freire e Marie Christine Josso, os quais englobam, como um de seus propósitos, a condição de “inacabamento” do ser humano.
A consciência de ser inacabado coloca o ser humano, de modo geral, e as professoras e os professores, de modo específico, neste escrito, em um movimento permanente de desenvolvimento pessoal e profissional, que também se estabelece, fundamentalmente, a partir de suas relações com os outros.
Nesse sentido, considera-se relevante realizar esse movimento, na prática docente, percebendo-se como sujeito inacabado, repleto da amorosidade indissociável da cognição e diretamente relacionado à produção de conhecimento, bem como da auto(trans)formação. Destaca- se a importância dos vínculos afetivos estarem presentes nas relações entre os docentes de Educação Infantil e as crianças; neste estudo, especificamente entre aqueles e os bebês, crianças pequenas.
Leis que orientam a Educação Infantil em tempos de COVID-19 e a busca de possibilidades de manter os vínculos afetivos
A Educação Infantil, primeira etapa da educação básica, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), Lei nº 9.394/96, na Seção II, Art. 29, apregoa que “tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade” (BRASIL, 1996). Assim, no que se refere ao aspecto psicológico, fica subentendido que a afetividade e os vínculos afetivos devem ser estabelecidos entre docentes e crianças.
No mesmo documento (LDB), Lei nº 9.394/96, na Seção II, Art. 31, consta que “II – carga horária mínima anual de 800 (oitocentas) horas, distribuída por um mínimo de 200 (duzentos) dias de trabalho educacional” (BRASIL, 1996). No entanto, nesse momento de pandemia, uma Medida Provisória – MP nº 934/2020 - desobriga todas as redes de educação básica de cumprirem o mínimo de “200 dias efetivos de trabalho escolar, desde que cumprida a carga horária mínima anual de 800 horas ou a estabelecida pelos respectivos sistemas de ensino”.
É importante destacar que, na LDB, não tem previsão nem normativa ofertando educação a distância, inclusive em circunstâncias emergenciais. Porém, o Conselho Nacional de Educação (CNE, 2020) sugeriu que as escolas “elaborassem orientações/sugestões” para as famílias ou responsáveis com propostas que pudessem ser realizadas com as crianças durante o período de isolamento social. experiências tomou a iniciativa de organizar grupos (via WhatsApp), em uma página social, para manter contato com as famílias das crianças, no caso específico, do B-II e do M-II. Em um primeiro momento, a intenção era manter os vínculos afetivos estabelecidos e ter informações sobre o bem estar das crianças, saber com quem estavam ficando em suas casas, com respeito e demonstrando cuidado com todos.
Em um segundo momento, a professora pensou em uma proposta pedagógica que as famílias pudessem apreciar as crianças, uma proposta lúdica, que proporcionasse prazer em ver e ouvir; assim, iniciou as contações de histórias. “Muitas histórias viajam dos livros para a voz do narrador e vice- versa” (GIRARDELLO, 2014, p. 12), possibilitando que os sujeitos, ao ouvirem uma história ser contada, viajem em suas imaginações.
As contações de histórias fazem parte da vivência dessa professora, a qual usa essa metodologia por acreditar na importância das histórias, como estímulo à imaginação, e como influência da leitura para os sujeitos. Seguindo a perspectiva de Freire, “a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele” (2011, p. 29). Primeiramente, os sujeitos leem o mundo e têm sua imaginação instigada; posteriormente, leem palavras e frases, de forma que, na atividade de contação de histórias, reside a esperança de formar novos leitores.
Nessa perspectiva, acredita-se ser possível “encantar por alimentar o nosso imaginário e dar mais brilho ao nosso mundo interior” (BUSATTO, 2012, p.17). Em tempos de isolamento social, a contação de histórias leva às crianças e seus familiares alguns momentos de descontração.
Mudar paradigmas e enfrentar uma nova realidade traz desafios. A professora aqui relatada enfrentou esses desafios e auto(trans)formou-se, reinventou-se em sua prática docente. Acostumada que estava com as contações de histórias de maneira presencial, prática recorrente em suas aulas, intimidou-se diante das câmeras, ao realizar as primeiras gravações de contações de histórias a serem encaminhadas às famílias. Mas, como Busatto (2012) apresenta, “é fundamental que se conte com o coração” (p.47). Dessa maneira, internalizando esse pensamento, concretizou-se o projeto, buscando, com a entonação da voz, encantar, prender a atenção das crianças e de seus familiares.
O trabalho teve retorno em forma de agradecimentos (algumas crianças mandavam figurinhas) e por meio de recados repletos de carinho. Foram recebidos áudios gravados pelas crianças e mensagens escritas pelos pais em nome de seus filhos, ainda não alfabetizados. Essa foi a motivação que faltava; a professora acreditou que poderia ir além.
Com o intuito de estreitar ainda mais os vínculos afetivos, a docente criou uma história, chamada “Vitor e a Centopeia”; confeccionou as personagens e fez a contação usando vozes diferentes e entonações especiais. A partir da audição dessa história, as crianças, juntamente com seus familiares, começaram a interagir, criando novas personagens e dando-lhes nomes diferentes. Os familiares fotografaram as crianças e suas criações; animais de estimação, bem como, bonecos, irmãos e amigos viraram personagens e ganharam novos nomes. Tudo compartilhado nos grupos virtuais.
“Gostaria de deixar expresso a minha crença de que contar histórias não é um privilégio de poucos, e sim uma tarefa acessível a quem se dispor a desenvolvê-la. Afinal, a prática ainda é o caminho mais seguro” (BUSATTO, 2012, p.90). Nesse sentido, destaca-se a auto(trans)formação da professora que, refletindo sobre sua prática, olhando os vídeos, relacionando com estudos, percebeu a necessidade de aprimorar-se nas contações e assim o fez. E, em assim fazendo, percebeu o quanto valoriza e ama seu trabalho e o quanto a falta do contato físico com as crianças e seus familiares e a distância da instituição de ensino onde trabalha traz saudades.
Considerações finais/conclusões
O relato demonstra que os vínculos afetivos estão sendo mantidos nas turmas do B-II e do M-II. As demonstrações de carinho relatadas, o cuidado, o respeito e a confiança entre a professora, as crianças e seus familiares estão sendo indispensáveis para passar, com o mínimo de sequelas possível, por esse tempo de pandemia.
As proposições freireanas possibilitam refletir sobre os sentimentos, as relações estabelecidas entre os sujeitos, a amorosidade, a humildade, a ética, o diálogo e os temores, os quais estão presentes nos vínculos afetivos estabelecidos entre professores, bebês, crianças bem pequenas e famílias.
A emoção por conseguir manter os vínculos afetivos com os bebês e as crianças pequenas (por meio das histórias, dos vídeos com recados, dos áudios e das fotografias), bem como com suas famílias, e por saber que, até este momento, mesmo com as dificuldades que o COVID-19 a todos impõe, foi possível fazer a diferença, é indescritível.
Ao compartilhar essa vivência pedagógica, cabe salientar que não é o foco aprofundar estudos sobre as obras literários, questões estéticas, mas compartilhar as vivências relatadas proporcionam um “caminhar para si” (JOSSO, 2010, p.10), em meio a sensibilidade de descobertas, de saberes até então desconhecidos, como a percepção do potencial da voz humana ao transmitir uma mensagem, via contação de história. A possibilidade de modificar as emoções de quem ouve ou vê e de quem conta uma história é uma realidade nesse momento de pandemia. É uma boniteza em meio a tantas outras bonitezas e em meio às incertezas desse tempo.
Resumo
Main Text
Introdução
Importância dos vínculos afetivos estabelecidos
Estudos realizados
Leis que orientam a Educação Infantil em tempos de COVID-19 e a busca de possibilidades de manter os vínculos afetivos
Considerações finais/conclusões