in Olhar de Professor
Relatos docentes de práticas educativas para inclusão na pandemia: experiências na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro
Resumo
O cotidiano desta pesquisa aconteceu com as/os docentes que atuam no Ensino Fundamental da rede municipal do Rio de Janeiro, especificamente em turmas com estudantes com deficiência(s). Nesse cotidiano, buscamos “compreender as práticas educativas das/os docentes para a inclusão de estudante com deficiência(s) na pandemia da covid-19”. Pensamos a pesquisa a partir da epistemologia da prática e, em termos metodológicos, optamos por pesquisar a experiência docente. Para operacionalizar a pesquisa, conversamos com as/os docentes via aplicativo WhatsApp e solicitamos a elas/es que compartilhassem suas experiências por meio de um formulário online, organizado em tópicos abertos sobre a atuação docente para a inclusão das/os estudantes durante a pandemia. Destacamos como resultados desta pesquisa potencialidades – múltiplas inventividades docentes para a inclusão das/os estudantes com deficiência(s) mediadas com os usos das tecnologias digitais; e despotencialidades – aprofundamento da precarização do trabalho docente, ausência de formação continuada e de políticas públicas para a inclusão na pandemia.
Main Text
Problematizações iniciais: a pandemia sars-cov-2 reconfigurando a educação no Brasil
Iniciamos as nossas discussões pontuando que a pandemia da covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, “o novo coronavírus”, ceifou muitas vidas, deixando sequelas e dores em tantas outras. Os primeiros casos de coronavírus foram registrados na cidade Wuhan/China em dezembro de 2019. O vírus rapidamente se espalhou pelo mundo. Dados disponibilizados e divulgados pela Organização Mundial da Saúde/OMS, acessados em 3 de julho de 2021, registram mais de 143 milhões de casos e 3 milhões de mortes pela covid-19 em todo o mundo.
Aqui no Brasil, o primeiro caso foi registrado no final de fevereiro de 2020; em março, a transmissão do vírus já estava descontrolada no país e houve a primeira morte por covid-19, que aconteceu no estado de São Paulo. No segundo ano de pandemia, o número de mortos por covid-19 cresceu consideravelmente, são mais de 500 mil vidas perdidas, fruto de uma necropolítica: “formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte” (MBEMBE, 2016, p. 146).
Para frear a transmissão da covid-19, medidas foram adotadas, como o incentivo ao trabalho em casa (home office), a suspensão de eventos esportivos e de shows, restrições de abertura de estabelecimentos comerciais, parques e espaços culturais, entre outras. Nesse contexto pandêmico, o Ministério da Educação (MEC) publicou, em 17 de março de 2020, a Portaria nº 343, que suspendeu as aulas presenciais e cujo artigo 1º autorizou (em caráter excepcional) a substituição das disciplinas presenciais (em andamento) “por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e comunicação, nos limites estabelecidos pela legislação em vigor, por instituição de educação superior integrante do sistema federal de ensino”. Essa Portaria, posteriormente, passou por ajustes e acréscimos por meio das Portarias nº 345, de 19 de março de 2020, e 356, de 20 de março de 2020.
Em seguida, o Conselho Nacional de Educação emitiu o Parecer nº 5/2020 indicando que caberia aos sistemas de ensino autorizar, ou não, a realização de atividades remotas do Ensino Fundamental, Médio, Educação Profissional Técnica de Nível Médio, Educação de Jovens e Adultos e Educação Especial. O ensino remoto é uma modalidade não presencial de educação em que docentes e discentes encontram-se em lugares distintos e o professor se reúne regularmente com a turma de alunos num horário previamente agendado para a realização de atividades síncronas (no mesmo tempo) por meio de videoconferência e outros sistemas colaborativos (PIMENTEL, 2020, n. p.). Todavia, se em 2020 a demanda era pelo ensino remoto, agora em 2021 “a noção de ordem é o “ensino híbrido”, uma vez que escolas, universidades e outras redes educativas se encontram bastante pressionadas ao retorno de atividades presenciais” (SANTOS, 2021, n. p.).
No Rio de Janeiro, o Conselho Estadual de Educação (CEE/RJ), por meio da deliberação nº 376 de 23 de março de 2020, autorizou o ensino remoto na educação básica e superior da rede pública e privada, e estabeleceu as regras que as instituições devem seguir para esse ensino. O artigo 1º dessa deliberação destaca que as instituições vinculadas ao Sistema de Ensino do Estado do Rio de Janeiro, públicas ou privadas da Educação Básica e públicas de Educação Superior, poderão reorganizar suas atividades escolares, a partir de seus projetos pedagógicos, a serem realizadas pelos estudantes e profissionais da educação em regime especial domiciliar.
As diversas medidas tomadas por conselhos, órgãos e entidades federais, estaduais e municipais de Educação reconfiguraram o cotidiano escolar, como a substituição do ensino presencial pelo ensino remoto, ampliando ainda mais as desigualdades. Muitas/os docentes se viram diante de grandes desafios, como fazer a transposição de suas práticas educativas presenciais para o online e assim conseguir (de alguma forma) dar continuidade ao trabalho que vinham desenvolvendo na sala de aula. Cabe pontuar que a maior parte das/os docentes não teve a oportunidade de experienciar uma formação continuada adequada, principalmente para possibilitá-las/os conhecer novas proposições didáticas pedagógicas para o online, dilatando a precarização do trabalho docente.
É importante mencionar que, nesse cenário pandêmico, presenciamos enquanto docentes inúmeras ausências de ações e políticas públicas do MEC, reverberando em todo o cenário nacional. Na Educação Especial não foi diferente, Fachinetti, Spinazola e Carneiro (2021, p. 155) argumentam que o planejamento das atividades escolares remotas foi organizado sem o apoio do governo, “a partir de um processo coletivo, envolvendo comunidades escolares, instituições e organizações, universidades, movimentos sociais e de indivíduos, tanto que esse coletivo impulsionou as lives do período”. Por conta dessas ausências de ações e políticas públicas, buscamos compreender como as/os docentes vêm mobilizando práticas educativas para a inclusão de estudante com deficiência(s) durante a pandemia do covid-19. Para nos ajudar a pensar esse objetivo, optamos por movimentações teóricas que se voltam aos estudos da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, experiência e formação docente, (ciber)culturais, epistemologias das práticas entre outros, discutidos e problematizados adiante.
Teorizando o presente
Nas últimas décadas no Brasil, foram produzidas diversas ações e políticas afirmativas no sentido de garantir os direitos das pessoas com deficiência, visando à inclusão delas em diferentes setores de nossa sociedade. No fluxo dessas produções, vários mecanismos legais foram criados e aprimorados para garantir, manter e ampliar a inclusão de pessoas com deficiência no cotidiano escolar. “Apesar das políticas e das ações afirmativas em prol dos direitos de pessoas com deficiência, estas ainda encontram inúmeras barreiras para sua efetiva inclusão educacional e social” (GLAT; ESTEF, 2021, p. 165-166).
Com a pandemia da covid-19, a necessidade do isolamento social e das aulas remotas, os atendimentos educacionais especializados ofertados às/aos estudantes com deficiência(s) foram interrompidos ou passaram a ser online, agravando o problema da exclusão social dessa parcela da população (REDIG; MASCARO, 2020). São estudantes que precisam de um olhar “pormenorizado, já que, de acordo com suas especificidades, precisam de intervenções e uma atenção diferenciada para que seu desenvolvimento cognitivo, social e mental seja de fato efetivado” (CABRAL; MOREIRA; DAMASCENO, 2021, p. 361-362). Isso sem dizer que a “parceria com os familiares” (FACHINETTI; SPINAZOLA; CARNEIRO, 2021) das/os estudantes é extremamente fundamental. Entretanto, entendemos que essa parceria nem sempre é possível de se efetivar, uma vez que há também a questão da “negligência de determinadas famílias” (SACCOL; VIANNA; PAVÃO, 2021) no acompanhamento do processo formativo dessas/es estudantes.
Por outro lado, temos acompanhado diversas experiências que buscam alternativas para a inclusão das/os estudantes com deficiência(s), como a do Observatório de Educação Especial e Inclusão Escolar/ObEE (2021), que lançou o Portal de Práticas Inclusivas4, visando difundir as atividades educacionais desenvolvidas nas redes públicas de ensino durante a pandemia. O objetivo do Portal é disseminar materiais e práticas docentes sobre acessibilidade e inclusão aplicadas à educação de pessoas que integram o público da Educação Especial. As práticas e experiências educativas desenvolvidas envolvem as/os estudantes com altas habilidades/superdotação, transtorno do espectro autista, deficiência física, surdez ou deficiência auditiva, deficiência visual, cegueira e baixa visão, surdocegueira, deficiência múltipla, deficiência intelectual e síndrome congênita do zika vírus.
Uma outra experiência que trazemos é da docente Vilma Soares (2020), que atua na Escola Municipal Carlos Drummond de Andrade, no município de Duque de Caxias (RJ). Ela desenvolveu um projeto de inclusão para proporcionar aprendizado às/aos estudantes durante o ensino remoto, em colaboração com a docente de Atendimento Educacional Especializado (AEE). O objetivo principal do projeto foi preparar uma metodologia que pudesse chegar ao lar dessas/es estudantes, tanto virtual quanto presencialmente. Para isso, as docentes montaram uma caixa – nomeada de “caixa multissensorial” – contendo materiais que consideram necessários para desenvolver as atividades com as/os estudantes com deficiência, uma vez que os materiais utilizados nas aulas se encontravam somente na escola. Além disso, Soares (2020) destaca que, com atividades remotas e diversificadas, inseriu práticas da “cibercultura” – cultura contemporânea mediada pelas tecnologias digitais em rede (SANTOS, 2021) –, buscando promover o engajamento familiar e a valorização das relações humanas.
Essas experiências relatadas, entre outras que têm emergido, mostram inúmeras inventividades que vêm sendo criadas nas práticas educativas para inclusão na pandemia, apesar de todas as precariedades enfrentadas. São experiências singulares, situadas culturalmente e que podem vir a inspirar outras/os colegas docentes. Nessa direção, a pesquisadora Márcia Pletsch (2020), no artigo “O que há de especial na Educação Especial brasileira?”, nos fornece ideias para a política de inclusão educacional como uma proposta ampla, calcada nos princípios dos direitos humanos, segundo a qual os sujeitos com deficiência devem ter acesso à educação, participar das atividades educativas e aprender de modo significativo. A partir dessas ideias, Pletsch (2020, p. 63) argumenta que a inclusão implica a combinação de três elementos: “1) no desenvolvimento dos sujeitos; 2) na pluralidade cognitiva; e 3) na convivência com a diversidade cultural, numa escola/universidade com todos e para todos”.
Somada a essas discussões, há a problemática da carência de políticas de públicas para a “inclusão digital induzida” (LEMOS, 2011), que são aquelas políticas que oportunizam a inclusão de uma grande parcela da população excluída do uso e dos benefícios da cibercultura. Esse tipo de inclusão se difere da “inclusão espontânea”, que é uma inserção compulsória dos sujeitos na sociedade em rede. Todavia, não basta promover a inclusão digital sem promover a “e-acessibilidade” (COLACIQUE, 2013) de ambientes e conteúdo online, uma vez que entendemos que as/os estudantes com deficiências precisam consumir, produzir e distribuir informação em/na rede, e também interagir com as/os outras/os estudantes e com o mundo.
Cabe destacar que, durante a pandemia, muitas/os docentes-pesquisadoras/es têm compartilhado inúmeras experiências didático-pedagógicas para auxiliar as/os colegas docentes em suas práticas educativas nesse contexto pandêmico, são experiências mediadas por tecnologias digitais em/na rede oriundas de décadas de estudo e pesquisa. Essas/es docentes-pesquisadoras/es recomendam, por exemplo, que as/os docentes mobilizem no processo formativo a interatividade (SILVA, 2021), conversação (PIMENTEL; ARAÚJO, 2020), (co)autoria (CARVALHO; PIMENTEL, 2020) ou autoria coletiva (AMARAL; VELOSO; ROSSINI; 2021), aprendizagem em/na rede e colaborativa (PIMENTEL; CARVALHO, 2020), práticas educativas alinhadas às práticas (ciber)culturais das/os estudantes (SANTOS, 2021; 2020; 2014), as práticas de curadoria como atividades de aprendizagem (BASSANI; MAGNUS; 2021), a promoção de multiletramentos (BUZATO, 2021; FERNANDES; MACIEL; SANTOS, 2020), a mediação didática lúdica (D’ÁVILA; MASSA; XAVIER, 2021) etc.
Essas recomendações se contrapõem à perspectiva que entende as tecnologias digitais em rede como mídias de massa, máquinas de ensinar, alinhadas a abordagens instrucionistas, descontextualizadas das experiências das/os discentes (PIMENTEL; CARVALHO, 2021). Pensar nessas recomendações é pensar que a formação do/a docente da Educação Especial deve ser pensada como parte da formação dos profissionais da educação em geral (CARTOLANO, 1998). É pensar também que a prática educativa é repleta de desafios que mudam a cada dia – como temos visto na pandemia, exigindo que o/a docente esteja em constante formação para atender as diversas demandas inerentes ao seu trabalho e às suas práticas. Nóvoa (1995, p. 16) entende que “a formação passa pela experimentação, pela inovação, pelo ensaio de novos modos de trabalho pedagógico. E por uma reflexão crítica sobre a sua utilização”. Esse entendimento nos ajuda a pensar como a formação docente acontece também nos momentos em que o/a docente é levado/a a agir em uma nova realidade, sobretudo precarizada como a da atual pandemia de covid-19.
Discutimos adiante como pensamos-fazemos a presente pesquisa.
Movimentações epistêmico-metodológicas
O cotidiano desta pesquisa aconteceu com as/os docentes que atuam no Ensino Fundamental da rede municipal do Rio de Janeiro, especificamente em turmas com estudantes com deficiência(s). Doze docentes aceitaram participar da pesquisa; elas/es fazem parte de uma rede de afeto, de amizade e de parceria, e foram solidárias/os em compartilhar as experiências de suas práticas educativas para a produção desta pesquisa. Pensamos as experiências das/os docentes a partir dos pressupostos da epistemologia da prática, que visa ao “reconhecimento de um saber, oriundo, mobilizado e reconstruído nas práticas docentes. Busca compreender e elucidar a produção de saberes no bojo da experiência docente – saberes subjetivos que se objetivam na ação” (D’ÁVILA; SONNEVILLE, 2008, p. 34-35).
Optamos, em termos metodológicos, por “pesquisar-com a experiência” (MACEDO, 2015) docente, que nos fornece caminhos para refletir-problematizar a prática educativa no presente, processos formativos, experiências, saberes. Compartilhamos da ideia de que a experiência é irredutível, um fenômeno hipercomplexo e mediado por múltiplas referências. “A experiência não é algo que sucede, é o que nos implica, portanto, nos afeta, nos toca, nos mobiliza e também nos impõe, nos compromete” (MACEDO, 2015, p. 25). Essa maneira de fazer pesquisa pela experiência docente é atravessadas pelas ideias cotidianista (ALVES, 2007) e experiencial (JOSSO, 2007; SOUZA, 2007), que parte da ideia de que “a história das práticas docentes pode ser conhecida não somente assistindo a aulas que professores/professoras dão, mas ouvindo o que é ‘contado’ [...] sobre as suas experiências pedagógicas, didáticas e curriculares” (ALVES, 2007, p. 69); “toma a experiência do sujeito adulto como fonte de conhecimento e de formação” (SOUZA, 2007, p. 3-4); e compreende que a formação acontece por meio da experiência, “efetua-se a partir da construção da narração da história da formação de cada um, da narração das experiências com as quais o autor-ator aprendeu, da sua maneira de operar escolhas, de se situar em suas pertenças e de definir seus interesses, valores, aspirações” (JOSSO, 2007, p. 420).
Ao optarmos por essas movimentações epistêmico-metodológicas para compreender as práticas educativas das/os docentes para a inclusão de estudante com deficiência(s) na pandemia do covid-19, levamos em consideração os seus desejos, dilemas, inquietações, implicações, histórias de vida-formação, contextos em que atuam e se subjetivam. Por meio das práticas educativas, buscamos trazer fragmentos/rastros de tudo aquilo que marca as/os docentes, faz sentido em suas práticas formativas cotidianas, fica registrado nas memorais do seu corpo: (re)significações e (des)aprendizados no mundo e com o mundo.
Compreendemos que as práticas educativas se constituem em “atos de currículo” (MACEDO, 2013), que são ações reflexivo-críticas que envolvem docentes e discentes, levando-as/os a criar, participar e habitar propósitos e práticas em cenários curriculares situados culturalmente. Os “atos de currículo, como conceito-dispositivo, levando em conta a práxis curricular, é um conceito-chave, um gesto político, um potente analisador das práxis curricular” (MACEDO, 2013, p. 28). Nessa discussão, o currículo é uma produção “sociopedagógica, cultural e política, feita e refeita pelos seus atores/autores dentro de ‘dada’ historicidade, coletivamente configurada, em que sempre se vivenciam certas hegemonias de cosmovisões de homem, de educação, de ensino e de aprendizagem” (MACEDO, 2007, p. 95-96).
Para operacionalizar esta pesquisa, conversamos com as/os docentes via aplicativo WhatsApp, que é a segunda rede mais usada no Brasil (KEMPE, 2021). Nas conversas (SANTOS; CARVALHO; MADDALENA, 2017), solicitamos a elas/es o compartilhamento de seus relatos por meio de um formulário online, que ficou disponível de 22 de março de 2021 a 30 de abril de 2021. O formulário serviu de espaço para que as/os docentes sintetizassem as suas ideias com bases nas experiências vividas na pandemia do covid-19. A opção por esse instrumento de pesquisa – formulário – resultou das dificuldades de acesso às práticas educativas desenvolvidas online pela/os docentes e do distanciamento social.
Ademais, o formulário online está organizado em tópicos abertos sobre a atuação docente para a inclusão das/os estudantes com deficiência(s) durante a pandemia, a saber: (1) compartilhar livremente relato de experiência de como foi a relação com as/os estudantes do ensino fundamental; (2) as principais dificuldades/barreiras para a realização do trabalho como docente; (3) quais tecnologias foram mobilizadas na prática educativa; e, por fim, (4) o que precisa ser feito para melhorar o atendimento às/aos estudantes. Por questões éticas, abrimos no formulário a opção de utilizar o próprio nome ou pseudônimo, sobretudo para que as/os docentes se sentissem confortáveis para expor suas experiências, críticas, reflexões e posicionamentos, e não sofressem com perseguições.
Para analisar os relatos compartilhados pelas/os docentes, de modo sistemático e complexo, optamos por uma “triangulação ampliada [dos dados]” (MACEDO, 2009) porque, além de múltiplas fontes de dados e do próprio referencial teórico epistêmico-metodológico, ela nos possibilita mobilizar os entendimentos obtidos de outras experiências formativas em outros contextos de modo a “enriquecer a dialogicidade com relações diversas que o objeto realiza em outros contextos de compreensão” (MACEDO, 2009, p. 102), visando compreender o fenômeno em sua complexidade.
Discutimos, na seção a seguir, os relatos de experiência (dados) compartilhados pelas/os docentes participantes desta pesquisa.
Experiências docentes para inclusão no ensino remoto
Começamos as nossas discussões trazendo os desdobramentos do primeiro tópico discutido no formulário online, em que solicitamos às/aos docentes que compartilhassem livremente seus relatos de experiência com as/os estudantes com deficiência(s) no ensino fundamental durante a pandemia da covid-19: “Inicialmente eu estava mandando as atividades diferenciadas para eles, de acordo com a especificidade de cada um. Mas em seguida um pai relatou que não tinha o material necessário para realizar algumas das atividades e que faria o possível com o que tinha em casa. Dois acompanhavam o mesmo conteúdo da turma. E o outro, era acompanhado por uma psicóloga que se mostrou resistente a realizar atividades diferentes das que ela planejava” – Professora L; “Os estudantes da educação especial foram os mais prejudicados com a pandemia. Tinha apenas um aluno nesta condição e este dependia do suporte de um adulto em casa para acessar os conteúdos, o que nem sempre ocorria, pois a mãe se viu obrigada a aumentar sua rotina de trabalho como diarista para compensar a perda de renda causada pela covid” – Roberto Lucio; “Foi um período de pouco contato. Os pais dos meus alunos especiais ficaram com o emocional abalado e não queriam participar das aulas remotas. Como consequência, os discentes também” – Sem identificação; “Buscar por estratégias de aprendizagem a distância para alunos especiais não é fácil! Foi preciso empatia pelas famílias, onde não sabíamos o que fazer e como fazer” – Roseli Souza; “No início muito complicado, pois tudo era diferente. Os alunos da Educação Especial têm de ser mediados o tempo todo, e essa mediação não tem como ser remota” – Preciliana; “Foi um período muito difícil, não houve um acompanhamento” – Roberta Rezende; “Muito complicado, pois esse público, mais do que os outros alunos, necessita ainda mais de atividades presenciais” – Rlima; “Ele [estudante] não me deu retorno no ensino remoto, mas está interessado agora que as aulas voltaram” – Fabianne Arguello. Os relatos das/os docentes chamam a nossa atenção por conta das inúmeras dificuldades encontradas por elas/es para operacionalizar as atividades remotas, sobretudo para a inclusão das/os estudantes com deficiência(s). A ausência de material adequado para trabalhar, mediação para o desenvolvimento de atividades com as/os estudantes remotamente, adaptação à nova realidade de ensino imposta pela pandemia, falta de suporte da família, são algumas das dificuldades experienciadas. Por meio dos relatos, é possível entender fragmentos da complexidade e da precariedade do trabalho docente neste contexto pandêmico; as dificuldades de manter contato e interação, e de construir relações de parceria e laços sociais com as/os estudantes e familiares; a questão da saúde mental; posicionamentos defendendo a impossibilidade do ensino remoto, enfatizando a necessidade de atividades presenciais; processos formativos fragilizados.
Os relatos dessas/es docentes vão ao encontro do segundo tópico de nossas discussões, o qual trata da questão das principais dificuldades/barreiras com as quais as/os docentes se deparam para a realização de seu trabalho na pandemia: “Tenho bons equipamentos e conhecimento de informática. Assimilei bem o trabalho remoto, no entanto, houve uma baixa adesão dos responsáveis e alunos ao ensino remoto. Dificuldades como falta de recursos, como computadores, celulares e acesso à internet, ainda são barreiras que limitam o trabalho e que precisam ser superadas. Para além dessas questões, gestões equivocadas na SME e Seeduc deixaram enormes lacunas, seja por falta de uma diretriz, seja pelo despreparo de alguns docentes, ou ainda por uma política desleixada que insistiu no retorno presencial, no lugar de se preparar para o ensino híbrido” – Roberto Lucio; “A maior dificuldade em 2020 foi a falta de preparo para o ensino remoto. Tudo era novo e inesperado, por isso demandou um tempo para o início das atividades” – Rlima; “A dificuldade do acesso às tecnologias para um trabalho remoto de eficiência” – Helena; “Falta de conhecimento das tecnologias a serem utilizadas no trabalho remoto e o retorno por parte das famílias em realizar as atividades com seus filhos” – Preciliana; “A principal dificuldade foi indisponibilidade da família no acompanhamento dos alunos nas atividades enviadas através de aplicativos e plataformas devido a seus motivos pessoais” – Roseli Souza; “A falta de interesse e paciência dos responsáveis” – Professora L; “Dificuldades de acesso ao material, e o auxílio da família” – Roberta Rezende; “A falta de compromisso dos pais, muitas vezes ocasionada por não possuírem celular ou internet em casa” – Professora N; “Pouco conhecimento meu de Libras e falta de conhecimento dos alunos com a tecnologia” – Eliana Oliveira. Esses fragmentos dos relatos docentes expõem, por exemplo, que a falta de formação continuada e infraestrutura adequada na pandemia foram algumas das principais dificuldades experienciadas, ferindo, inclusive, o artigo 3º da Resolução nº 2 do CNE (2001) que trata entre outras coisas da garantia de recursos materiais e apoio especializado para viabilizar a inclusão de estudantes com deficiência. Portanto, há indícios de uma omissão e má gestão da secretária de Educação do município do Rio de Janeiro, uma dissintonia entre o que propõe a Resolução e como é a sua aplicação no cotidiano escolar, gerando inúmeras barreiras à efetivação do trabalho docente e aos processos de ensino-aprendizagem.
A pouca participação das famílias foi outro problema identificado pelas/os docentes durante a pandemia, sobretudo nas mediações diárias. Dos doze docentes participantes desta pesquisa, oito em algum momento citaram esse problema da participação. Entendemos que essa participação é fundamental (FACHINETTI; SPINAZOLA; CARNEIRO, 2021), nesse período pandêmico que estamos passando, se tornou imprescindível, principalmente para as/os estudantes com deficiência(s), uma vez que necessitam de um/a mediador/a para um bom desenvolvimento. Entendemos também que muitas famílias estão passando por problemas sérios, como a perda de entes queridos por conta de complicações do covid-19, diminuição da renda etc. Entretanto, entendemos que pode haver também a negligência de determinadas famílias (SACCOL; VIANNA; PAVÃO, 2021).
A partir dos relatos docentes identificamos um outro problema, a carência e a precarização na inclusão, no acesso e na permanência das/os estudantes, e a falta de uma inclusão digital “induzida”, que é aquela inclusão fruto de um trabalho educativo e de políticas públicas que “visam dar oportunidades a uma grande parcela da população excluída do uso e dos benefícios da sociedade da informação. É o que conhecemos por projetos de inclusão digital” (LEMOS, 2011, p. 19).
Com base no terceiro tópico que trata dos usos das tecnologias digitais, observamos que, apesar de todas as fragilidades e precariedades relatadas, as/os docentes utilizaram múltiplos aplicativos e plataformas em suas práticas, isto é, mobilizaram “ambiências computacionais diversas” (PIMENTEL; CARVALHO, 2020); e pontuaram algumas dificuldades e benefícios encontrados, expostos a seguir: “Utilizei a plataforma Teams e consegui reunir em aulas diárias (atividade síncrona) cerca de 15 alunos, o que representou 60% da turma, um feito se comparado a outras experiências onde professores relatavam não terem alcançado nem 10% da turma. Também mantive um grupo de WhatsApp com os responsáveis por onde enviava as atividades. Produzimos um livro digital com os professores e alunos de forma totalmente remota, além de vídeos, formulários de avaliação e revisão de conteúdos” – Roberto Lucio; “Foram utilizados aplicativos (WhatsApp, play game, Google forms, kiner Master etc.) e plataformas (Rioeduca em casa, Teems e Google Meet). A facilidade do uso no celular da família foi um benefício e a dificuldade foi o interesse do aluno em executar o comando pedido” – Roseli Souza; “WhatsApp. O benefício foi o acesso mais fácil quanto à utilização. As dificuldades foram ter minha vida privada “violada” fora do horário de serviço (devido ao constante contato dos pais a qualquer dia e hora) e o acesso dos responsáveis em relação ao uso da internet” – Pseudônimo vazio; “O Google Sala de Aula e o aplicativo Rioeduca em Casa, porém o aluno não possui acesso à internet” – Luciana Bastos; “O WhatsApp, não teve efeito nenhum com os dois que não acompanhavam o conteúdo da turma” – Professora L; “WhatsApp. Muita dificuldade, pois alguns alunos não tinham acesso à internet e/ou celular” – Professora N; “Vídeos gravados por mim e utilizando aplicativos com kinemaster, InShot e WhatsApp” – Preciliana; “Vídeo, WhatsApp, jogos de interação com as crianças em chamadas de vídeo” – Helena. Esses relatos nos ajudam a pensar as diversas experiências vividas e enfrentadas pelas/os docentes no ensino remoto, como a falta de acesso à internet e às tecnologias digitais necessárias para o desenvolvimento das atividades; a baixa adesão das/os estudantes às aulas e o pouco engajamento delas/es em realizar as atividades solicitadas online; a violação da vida privada, entre outras experiências.
Por outro lado, observamos que as/os docentes buscaram contemplar uma prática educativa genuína para a inclusão das/os estudantes, preocupada em melhor atendê-las/os, no sentido de cuidado; criaram situação de aprendizagem com os usos das tecnologias digitais, lançando mão de práticas de curadoria (AMARAL apud BASSANI; MAGNUS, 2021), como as de conteúdo, sistemas computacionais e atividade para aprendizagem, visando a novas estratégias de ensino. Essas estratégias se conectam ao pensamento compartilhado por Nóvoa (1995, p. 16), para quem a formação docente “passa pela experimentação, pela inovação, pelo ensaio de novos modos de trabalho pedagógico. E por uma reflexão crítica sobre a sua utilização”; e visaram promover experiências em sala de aula voltadas à interatividade (SILVA, 2021) e à conversação (PIMENTEL; ARAÚJO, 2020) com estudantes e seus familiares, e com atividades autorais (CARVALHO; PIMENTEL, 2020) focadas na aprendizagem em/na rede (PIMENTEL; CARVALHO, 2020) e para os multiletramentos (BUZATO, 2021; FERNANDES; MACIEL; SANTOS, 2020).
Sintetizamos, no Gráfico 1, as tecnologias digitais mais usadas pelas/os docentes em suas práticas educativas. Notamos que o aplicativo WhatsApp se destaca, sendo o mais utilizado pelas/os docentes (uso pedagógico), possivelmente porque já fazem o uso dele na sua vida cotidiana (uso social). Cabe salientar que esse aplicativo é um dos mais usados pela população brasileira em geral (KEMP, 2021).
Todavia, chamamos atenção para os usos de tecnologia de empresas privadas (Google, WhatsApp, Facebook etc.) nas práticas educativas, pois podem trazer diversos problemas para todos nós, como o uso de nossos dados pessoais (docentes e discentes). Os documentários Privacidade Hackeada (NOUJAIM; AMER, 2019) e Dilemas da rede social (ORLOWSKI; COOMBE; CURTIS, 2020) já retrataram o quanto é perigoso essas empresas conhecerem dados pessoais (conversas, preferências, posicionamentos, crenças, valores, conhecimentos etc.), podendo induzir o comportamento e o humor das/os usuárias/os, influenciar eleições, ameaçar democracias etc.
Para finalizar as nossas análises trazemos, no quarto e último tópico, as impressões dos/as docentes em relação ao que precisa ser feito para melhorar o atendimento às/aos estudantes com deficiência(s) durante a pandemia: “esse segmento carece de uma atenção diferenciada, conduzida por um profissional exclusivo para esse grupamento. Questões como aquisição de equipamentos e acesso à internet devem ser prioridade para esses alunos. Para isso é preciso uma política pública clara e consistente que substitua o discurso por ações” – Roberto Lucio; “deveria ser disponibilizado algum curso online para os responsáveis e os professores, para que todos entendessem as reais necessidades dos especiais” – Professora L; “o ideal para esse público, com certeza, são aulas presenciais. Na impossibilidade devido à pandemia, conscientizar a família da importância de interação entre professor e aluno, facilitando a aprendizagem” – Roseli Souza; “uma conscientização por parte das famílias para poder fazer a mediação das atividades enviadas, pois nesse momento o professor está atrás da tela” – Preciliana; “a minha Rede precisa dar mais suporte aos professores e aos alunos” – Luciana Bastos; “acolhimento ao estudante, oficinas de capacitação, apoio tecnológico” – Eliana Oliveira; “capacitação dos professores” – Fabianne Arguello; “maior investimento em tecnologia, não só nas escolas, mas também nas residências desses alunos” – Rlima; “melhorar as tecnologias utilizadas e também que a família seja mais participativa” – Helena; “o acesso à tecnologia digital e a colaboração da família” – Roberta Rezende; “aulas presenciais e escalonadas é a solução” – Professora N.
Consideramos essas sugestões das/os docentes importantes, pois elas partem das experiênciasvividas e praticadas, e se aproximam dos objetivos propostos por Colacique (2018) para efetivar a inclusão de estudantes com deficiências a partir da Lei nº 7.853/89, a qual trata do apoio às pessoas com deficiência e sua integração social.
Ainda as sugestões das/os docentes se conectam com algumas das preocupações apontadas por Redig e Mascaro (2020), para quem as/os estudantes com deficiência(s) que “precisam, em sua maioria, de recursos de acessibilidade física e pedagógica para o seu aprendizado, nestas aulas [remotas], estão enfrentando mais dificuldades para acompanharem as propostas de atividades pedagógicas planejadas para o período da pandemia” (REDIG; MASCARO, 2020, p. 149). Isso sem dizer que há estudantes que precisam de “uma mediação pedagógica de profissional de apoio, que neste momento, neste formato de aula, é um serviço que não está sendo oferecido” (REDIG; MASCARO, 2020, p. 149).
Notamos nessas sugestões que determinadas/os docentes discordam da maneira como o ensino vem sendo conduzido na pandemia, inclusive sugerem mudanças do ensino remoto para o ensino presencial escalonado, conforme apontado pelo o Professor N. As sugestões das/os docentes retomam o relato do docente Roberto Lucio, no segundo tópico, em que ele também faz críticas à gestão do ensino durante este período, criticando a falta de diretrizes e formação continuada, e a insistência na ideia de voltar ao ensino presencial.
Concluímos as nossas discussões destacando potencialidades . despotencialidades encontradas nesta experiência de pesquisa. Potencialidades – múltiplas inventividades docentes para a inclusão das/os estudantes com deficiência(s) mediada com os usos das tecnologias digitais; práticas educativas contextualizadas, voltadas à preocupação com o outro e à dilatação do acesso e da permanência das/os estudantes na escola. Despotencialidades – aprofundamento da precarização do trabalho docente, ausência de formação continuada e de políticas públicas para a inclusão na pandemia, processo de ensino-aprendizagem fragilizado, pouca ou quase nenhuma mediação da família nas atividades escolares das/os filhas/os; e dificuldades de acesso às tecnologias digitais por docentes, estudantes e familiares, potencializando a exclusão social, digital e (ciber)cultural.
Conclusão da pesquisa
Nesta pesquisa, buscamos compreender como as/os docentes do ensino fundamental da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro vêm mobilizando práticas educativas para a inclusão de estudante com deficiência(s) durante a pandemia da covid-19. Pensamos-produzimos esta pesquisa com base nos estudos da educação especial e inclusiva, experiência e formação docente (ciber)culturais, epistemologias das práticas, metodologias que se debruçam em investigar as experiências docentes. A partir dos relatos compartilhados pelas/os docentes participantes da pesquisa, constatamos infelizmente que muitos dos direitos conquistados pelas/os estudantes com deficiência(s) não foram (não vêm sendo) respeitados durante a pandemia, e como os desrespeitos a esses direitos reverberaram na inviabilidade de determinadas/os estudantes se manterem estudando, tiveram o direito à educação “negado”, dilatando a exclusão.
Pesquisar as experiências das práticas educativas das/os docentes nos possibilitou múltiplos aprendizados, como conhecer um pouco mais a fundo o cotidiano das/os docentes participantes da pesquisa, seus dilemas, inquietações, práticas para inclusão, precarizações. Um outro aprendizado é que as práticas educativas experienciadas são marcadas pela dimensão do vivido, daquilo que forma e transforma. Elas se dão em “atos de currículo” (MACEDO, 2013), pois emergem como uma criação, um acontecimento, de um pensar-propositivo, de ações instituintes das/os sujeitas/os envolvidas/os. Essas ações instituintes, por sua vez, acontecem nas experiências cotidianas miúdas, nas brechas, nas frestas e fissuras, nas reexistências afirmativas, nas transgressões, nas rasuras, nas rebeldias e nas traições cotidianas, nas opacidades, na clandestinidade, nas diversas micro-ousadias, nas epifanias que irrompem (MACEDO, 2013).
Por fim, esperamos que as experiências relatadas nesta pesquisa contribuam para o debate sobre a formação de professores, as múltiplas formas de inclusão e a convivência com as diferenças em sala de aula. Entretanto, destacamos que incluir estudantes com deficiência(s) demanda recursos, profissionais especializados, apoio familiar, infraestrutura e políticas afirmativas públicas. Apostamos que é a partir da garantia desses, e de outros direitos intersecionados, que poderemos vir a assegurar o desenvolvimento efetivo das/os estudantes em suas múltiplas potencialidades.
Resumo
Main Text
Problematizações iniciais: a pandemia sars-cov-2 reconfigurando a educação no Brasil
Teorizando o presente
Movimentações epistêmico-metodológicas
Experiências docentes para inclusão no ensino remoto
Conclusão da pesquisa