in Práxis Educativa
Dialogando com Magda Soares sobre alfabetização, práticas pedagógicase formação de rede
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A entrevista com a Prof.ª Dra. Magda Becker Soares, que ora publicamos, foi realizada nodia 12 de julho de 2016, na sala do Núcleo de Alfabetização e Letramento da SecretariaMunicipal de Educação, em Lagoa Santa - Minas Gerais, responsável pela coordenação doProjeto Alfaletrar. A entrevista foi realizada por ocasião da visita que realizamos paraconhecer os fundamentos e as práticas do "Projeto Alfaletrar". Participaram também daentrevista as professoras Janair C. Cassiano e Gilmara Diniz Duarte, da Rede Municipalde Lagoa Santa, que atuam como responsáveis, respectivamente, pelo Núcleo deAlfabetização e Letramento e pela Educação Infantil e Ensino Fundamental no município deLagoa Santa.
Magda Becker Soares é professora emérita da Faculdade de Educação da UFMG ereconhecida como uma das mais importantes pesquisadoras da área de Alfabetização noBrasil. O Projeto Alfaletrar, criado em 2007 na Secretaria de Educação da Prefeitura deLagoa Santa, é liderado pela Prof.ª Magda Soares e coordenado pelo Núcleo deAlfabetização e Letramento. O projeto tem como objetivo alfabetizar e letrar todas ascrianças na perspectiva do direito à qualidade da educação para os alunos da RedeMunicipal, do maternal até o 5º ano do Ensino Fundamental.
Os princípios do Projeto são os seguintes: continuidade, integração, sistematização eacompanhamento. É estruturado por metas de ensino que consistem em competências a seremalcançadas pelos educandos a cada ano de escolarização. Essas metas, propostas emprogressão, estão organizadas por componentes do processo de alfabetização e letramento:consciência fonológica e conhecimento do alfabeto, consciência fonêmica - ortografia,linguagem oral, tecnologia da escrita, escrita de palavras, produção de textos, leiturade palavras, leitura oral de textos, leitura silenciosa de textos, compreensão detextos, vocabulário e reflexão sobre a língua.
O Projeto Alfaletrar realiza, ainda, duas atividades de exposição anual, denominadasParalfaletrar e Alfalendo. A primeira, direcionada especificamente aos docentes da rede,consiste em uma exposição de recursos metodológicos utilizados pelos professores paraalfabetizar e letrar. A segunda volta-se mais para o letramento: é uma exposição dasleituras literárias e produções de textos realizadas pelos alunos. O objetivo dessasduas atividades é promover a troca de experiências entre as professoras, as crianças, asfamílias e outros municípios, socializando o conhecimento e as práticas docentes.
Ao adotar a organização de uma formação de rede voltada para o desenvolvimentoprofissional de professores, termo que a Prof.ª Magda prefere à expressão 'formaçãocontinuada', busca-se desenvolver, no âmbito de todas as escolas municipais, na área dealfabetização e letramento, atividades fundamentadas em princípios teóricos,linguísticos e cognitivos, e reflexões que, com base nesses princípios, possamesclarecer problemas ou dificuldades enfrentados no ensino e na aprendizagem. Este tipode formação envolve todos os docentes da Rede de Ensino. Os temas e discussões sãodesenvolvidos a partir das demandas apresentadas pelos docentes relacionadas aodesenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem. Com o objetivo de atingir todas asprofessoras da rede, estes encontros se desenvolvem a partir do Núcleo de Alfabetizaçãoe Letramento, constituído de professoras representantes das escolas que, em reuniõessemanais, discutem as questões surgidas no interior das unidades educacionais, osanseios e posicionamentos frente ao processo de ensino-aprendizagem.
O Núcleo de Alfabetização e Letramento é constituído por 23 professoras: a professoracoordenadora Magda Soares, duas professoras que exercem atividades administrativas epedagógicas na Secretaria Municipal de Educação e 23 professoras, representantes das 23unidades escolares da rede municipal de ensino, que atuam como orientadoras dasprofessoras em sua escola. O Núcleo reúne-se, semanalmente, em seminários que seconstituem como espaço de debates e discussão permanentes, de compartilhamento eprodução de práticas, estudo das teorias sobre a alfabetização e construção de saberes.Os professores integrantes do Núcleo trazem para os encontros do Núcleo as dúvidas edificuldades das colegas, discutem o que foi debatido, apresentam o que foi estudadopara os demais professores das escolas, quer no convívio diário quer em reuniões mensaiscom a participação de todas as professoras: os repasses. Nestes, os professores podemdiscutir e sugerir proposições, solicitar esclarecimentos e apresentar novaspossibilidades de abordagens. Nas reuniões do Núcleo, são apresentadas ao grupo asimpressões dos colegas das escolas e novas possibilidades de abordagens edificuldades.
O acompanhamento das aprendizagens é sistemático através de diagnósticos, realizados trêsvezes ao ano, com devolutivas que acontecessem em menos de trinta dias após a aplicaçãodas atividades diagnósticas. Esta ação visa orientar a atuação dos professores para areal necessidade das crianças, garantindo a progressão das aprendizagens. Os resultadosda aplicação dos diagnósticos dão ao professor a possibilidade de organizar propostas deintervenção junto aos estudantes e dão ao Núcleo a possibilidade de orientar e promoverdiscussões sobre a realidade do ensino no município, desenvolver ações, metas eestratégias de trabalho, bem como subsidiar a elaboração de materiais a seremcompartilhados com os professores, objetivando contribuir para a melhoria do ensino.Além disso, o acompanhamento do ensino dos componentes e do aprendizado das criançaspoderá apresentar impactos qualitativos nas avaliações externas previstas no calendárioletivo, por meio de pareceres descritivos realizados a partir da observação dodesempenho dos estudantes.
Magna do Carmo Silva: Magda, você pode nos explicar de onde surgiu seuinteresse em desenvolver um projeto como esse?
Magda Soares: Veja... passei 40 anos na universidade e ficava preocupadaporque, trabalhando especificamente com formação de professores, constatava, empesquisas que fazia e lia, e no retorno que me davam os que se formavam e iam para asescolas, que a formação que dávamos nas licenciaturas na verdade não preparava os alunospara as práticas docentes, particularmente nas escolas públicas. Comecei minha vida naUniversidade formando professores para as séries finais do Ensino Fundamental, nalicenciatura em Letras - minha graduação foi em Letras. Mas fui me dando conta de que aprecária qualidade do ensino e da aprendizagem nas séries finais se explicava, em grandeparte, pela precariedade da qualidade nas séries iniciais: alunos chegam às sériesfinais semialfabetizados, com problemas básicos de leitura e de produção textual. Assim,comecei a me voltar para as séries iniciais, direcionando minhas pesquisas e as de meusorientandos para essas séries, sempre com o foco em alfabetização e letramento. Umapesquisa que fiz foi particularmente relevante: uma pesquisa documental em queanalisamos dissertações e teses sobre alfabetização produzidas até então, com o objetivode verificar o conhecimento que já tínhamos construído sobre a alfabetização no Brasil;essa pesquisa foi publicada pelo INEP, com o título de "O estado do conhecimento emAlfabetização". Pudemos verificar, e continuamos verificando, porque os dados dessapesquisa continuam sendo permanentemente atualizados, que o conhecimento que tínhamos jáconstruído sobre alfabetização no Brasil não revertia em melhora da qualidade do ensinoe da aprendizagem, ao contrário, comprovava a falta de qualidade... Esse fracassoreiterado do país em alfabetizar as crianças foi um dos motivos que levou à antecipaçãoda entrada no Ensino Fundamental para os seis anos. Mas o que se passou a discutir nãofoi se essa ampliação propiciaria avanço na qualidade da alfabetização, mas se se podiaou não alfabetizar a criança aos seis anos. Preocupada com a qualidade, neste momentoaprofundei-me em estudos e pesquisas sobre a relação entre o desenvolvimento infantil,cognitivo e linguístico, e a aprendizagem do sistema de escrita, e ficou claro para mimque o processo de alfabetização e letramento é um processo contínuo, que começa mesmoantes de a criança entrar em instituição de Educação Infantil, consequência de seudesenvolvimento cognitivo e linguístico em sociedades centradas na escrita, como é ocaso da nossa. Portanto, a questão que se coloca não é se a criança pode ou não seralfabetizada aos seis anos, mas como a instituição escolar, desde a Educação Infantil,deveria dar continuidade ao desenvolvimento da aquisição da língua escrita pela criança.Foram essas constatações que me levaram a pensar em um projeto em que eu pudesse colocarem prática os conhecimentos e hipóteses que fui construindo sobre a alfabetização e oletramento em escolas públicas.
Renata Jatobá: Então, como foi que a senhora veio trabalhar em LagoaSanta?
Magda Soares: Quando eu me aposentei na UMFG, decidi: agora vou voltar paraa escola pública, quero ver e sentir "de dentro", participando diretamente, asdificuldades que impedem uma alfabetização e um letramento de qualidade. Em um primeiromomento, fui para uma creche comunitária em Belo Horizonte e fiquei lá durante cincoanos, trabalhando com as professoras de crianças de 0 a 6 anos, moças da comunidade que,de certa forma, "se improvisavam" professoras. Foi uma experiência muito rica, convivicom as crianças, com a favela, com as famílias, e vi, de perto e de dentro, a realidadeda educação em meios populares e as possibilidades de um ensino e uma aprendizagem quelevava as crianças a se apropriarem progressivamente da língua escrita. Infelizmente acreche não conseguiu se manter e teve de fechar as portas. Coincidiu que, nesse momento,a Secretária de Educação de Lagoa Santa, uma amiga e ex-colega na UFMG, ao encontrar nomunicípio um nível muito insatisfatório em alfabetização que dados de avaliaçõesexternas evidenciavam, pediu que eu a ajudasse a encontrar uma forma de atuar paramelhorar a qualidade do ensino e da aprendizagem nas escolas. É claro que logo aceiteicolaborar propondo a criação de um projeto... além de meu interesse e compromisso com aalfabetização e letramento, das ideias que queria muito testar na prática, consideroLagoa Santa como minha segunda cidade, uma cidade em que tenho vivido grande parte deminha vida, desde a infância. De início, pensamos em atuar em duas escolas em que osresultados eram os mais baixos. Mas, pensando melhor, propus que não fazia muito sentidomelhorar apenas duas escolas: que relevância tem uma, duas escolas funcionando bemquando o que temos é uma enorme quantidade de escolas públicas neste país demandandoqualidade de ensino e uma multidão de crianças a que vem sendo negado o direito deaprender a ler e a escrever? Eu tinha a hipótese de que seria possível trabalhar comtodas as escolas de uma rede municipal. Então decidimos: vamos trabalhar com toda a redee conseguir qualidade para todas as escolas da rede, com base no princípio que se tornounosso lema: ler e escrever é um direito de toda criança. Não só das crianças de uma ououtra escola. Como atingir todas as escolas? E muito mais do que atingir, como envolvertodas as professoras, diretoras, pedagogas, todos os profissionais de todas as escolas?Não conseguiríamos isso com um projeto do tipo "formação continuada"... com estudo detextos, com sugestão de atividades... beneficiam professores, não beneficiam nem mesmoescolas, muito menos redes de ensino. Decidimos tentar um projeto que envolvesse toda arede, todas as escolas, todas as professoras, e que fosse um projeto construído portodos. E assim construímos o projeto Alfaletrar, assim chamado para associaralfabetização e letramento, visando à qualidade do ensino e da aprendizagem, um projetode formação de rede.
Magna do Carmo Silva: Professora, gostaria que falasse um pouco sobre aideia de formação de rede.
Magda Soares: O objetivo do projeto era, e é, avançar na qualidade daaprendizagem das crianças e, para isso, era preciso agir sobre o ensino. Uma primeiradecisão foi que isso não se faria por meio de formação continuada dos professores,porque, como disse, esse tipo de ação sobre o ensino está muito preso ao formato decurso. Além disso, o professor em exercício já está formado, e o que é preciso não écontinuar a formação dele, é propiciar, quando ele já está inserido na docência,condições de analisar sua prática, refletir sobre sua prática, identificar a razão porque algo está dando certo e algo não está dando certo, achar caminhos para orientarcrianças com características diferentes. Por isso prefiro usar, em vez de "formaçãocontinuada", a expressão "desenvolvimento profissional". O projeto Alfaletrar não sebaseia em um curso, não é formação continuada, é apoio permanente aos professores em suaatuação nas salas de aula, refletindo sobre os desafios que a prática cotidiana traz, eassim desenvolvendo-se profissionalmente. Uma outra decisão foi que esse desenvolvimentoprofissional deveria acontecer em toda a rede, envolver todos os professores de todas asescolas, por isso é uma formação de rede, ou seja, um desenvolvimento profissional detodos os professores da rede. Para isso, o projeto se realiza por intermédio de umNúcleo de Alfabetização e Letramento, componente da Secretaria Municipal de Educação,formado por uma representante de cada escola, eleita pelas colegas, para que sejamreconhecidas como representantes delas. Um questionamento que surgiu na época daconstituição do Núcleo foi: por que não as pedagogas, que exercem nas escolas o papel deorientadoras pedagógicas? O principal motivo é que as pedagogas trabalham nas escolascom todas as áreas do conhecimento, e como alfabetização e letramento são áreas que,atualmente, têm o suporte de teorias cognitivas e linguísticas que professores na áreada linguagem precisam conhecer para melhor compreender e definir suas práticas, eraimportante que constituíssem o Núcleo professores que se dedicassem somente àalfabetização e ao letramento no apoio aos professores.
Magna do Carmo Silva: Nesse contexto, as professoras do Núcleo continuavamcomo regentes na sala de aula?
Magda Soares: No início, as professoras do Núcleo permaneciam em sala deaula para estarem, elas também, vivenciando o ensino e refletindo sobre ele. Aos poucos,porém, as demandas a elas por parte dos professores foi crescendo muito: o Núcleo sereúne uma vez por semana, durante toda uma tarde, o que é nele discutido é levado aoprofessores de suas escolas, que recorrem a suas representantes nas dificuldades, nasdúvidas. As representantes vão frequentemente às salas de aula propor encaminhamentos,frequentemente sentem a necessidade de assumir a sala de aula e demonstrar para aprofessora o que tínhamos praticado no seminário do Núcleo, em que sempre vivenciam,entre elas mesmas, as práticas que são sugeridas. Com tanto trabalho, ficou difícil paraelas permanecer na regência das salas e ao mesmo tempo desenvolver a orientação dosprofessores, então, a partir de um certo momento, as representantes passaram a sededicar apenas ao Núcleo e à orientação na escola.
Magna do Carmo Silva: Quando estavam em sala de aula, em qual momento asprofessoras do Núcleo orientavam as colegas de sua escola?
Magda Soares: Era muito difícil, elas tinham de aproveitar brechas detempo.
Janair Cassiano: Na verdade, era como se ela estivesse apenas dando umrecado para as colegas. A maior atribuição de quem participou nessa época do Núcleo,como é o meu caso, era com a minha sala de aula, então era pouco o tempo para conversarcom as colegas. Assim, a mudança no ensino começava na própria sala de aula daprofessora que representava a escola no Núcleo. A orientação se dava quando as outrasviam que a prática podia ser diferente e os resultados também. Mas sendo responsável poruma turma, a gente não tinha tempo de planejamento com as colegas, tempo para conversarcom as professoras. A gente tinha que atuar na nossa sala, ajudar na sala delas e aindater bons resultados na aprendizagem de todas as crianças. Por isso foi necessário que asprofessoras representantes no Núcleo não se mantivessem em sala de aula.
Renata Jatobá: E como foi a organização da rede para a atuação do Núcleo? Otrabalho do Núcleo se deu em toda a rede?
Magda Soares: A organização da rede é em ciclos; no caso de alfabetização eletramento, o ciclo de introdução: maternal, infantil I e infantil II; o ciclo básico:1º ao 3º ano; o ciclo de consolidação: 4º e 5º anos. Nos dois primeiros anos de atuaçãodo Núcleo, o projeto foi implantado no Infantil I e II, crianças de 4 e 5 anos, e nosprimeiros e segundos anos. Dois anos depois, ampliamos para o maternal, 0 a 3 anos, eterceiros anos. Um ano depois foram incluídos os quartos e quintos anos. A implantaçãoprogressiva possibilitou mais segurança e garantiu a continuidade, um dos princípios doprojeto. Estamos em processo de implantar um projeto para os anos finais do EnsinoFundamental, 6º ao 9º ano. É difícil trabalhar de forma integrada com os professoresdesses anos, porque os horários não coincidem, e por isso ainda estamos tentando definircomo constituir um Núcleo das séries finais, com professores de várias disciplinas. Aorganização em ciclos só funciona se houver, realmente, uma continuidade dentro de cadaciclo e de um ciclo para o outro. Para isso é preciso que haja continuidade nosobjetivos de ensino, de modo que cada professora se posicione em um contínuo, sabendo oque veio antes e dando continuidade a esse antes, ao mesmo tempo que sabe o que vemdepois, e se organiza para que os alunos cheguem em condições para esse depois.Continuidade é um dos princípios básicos do projeto Alfaletrar.
Renata Jatobá: O projeto Alfaletrar dá uma enorme importância àsbibliotecas. Qual o papel desses espaços na proposta de vocês em Lagoa Santa?
Magda Soares: Uma das primeiríssimas providências, na implantação do projetofoi montar bibliotecas em todas as escolas, com ênfase em acervos de literaturainfantil. Como trabalhar alfabetização e letramento sem ter bibliotecas nas escolas? Foium grande esforço inicial, pois as escolas não tinham bibliotecas, como, aliás, amaioria das escolas públicas brasileiras, lamentavelmente. Visitamos todas as escolas deLagoa Santa para verificar se havia bibliotecas: muitas não tinham, algumas tinham, mascom apenas livros didáticos, aqueles que não estavam mais em uso, já substituídos poroutros, por novas escolhas pelo PNLD; não tinham livros de literatura infantil. Asbibliotecas, também, eram lugares com várias funções: para colocar alunos "de castigo",lugar para lanche dos professores, para reuniões... Após essa diagnose, com o apoio doprefeito e da secretária de educação, foram reformadas as bibliotecas que existiam ecriadas bibliotecas nas escolas em que não existiam. Na ocasião, discutimos muito comotornar as bibliotecas um ambiente agradável, acolhedor, atraente para as crianças, e asprofessoras organizaram muito bem o espaço: almofadas, tapetes, estantes à altura dascrianças, mesinhas para leitura, etc. As crianças logo adotaram as bibliotecas comoespaço preferido: crianças escapam da sala de aula para ir para a biblioteca, vão paralá na hora do recreio, retiram livros para ler em casa. Hoje, todas as escolas têmbiblioteca, com acervos bastante grandes, graças ao PNBE, às compras que a secretaria deeducação faz anualmente, a doações de editoras. Não há ainda possibilidade de admissãode profissionais de biblioteca na rede de Lagoa Santa, então são professoras que sãocontratadas para responsabilizarem-se exclusivamente pelas bibliotecas, organizam oacervo e coordenam as atividades, com a orientação das professoras do Núcleo.
Renata Jatobá: Os seminários do Núcleo são sempre relacionados com asdificuldades apresentadas nos resultados obtidos nos diagnósticos aplicados pelomunicípio?
Magda Soares: Não, a discussão dos resultados dos diagnósticos é feita apósa aplicação das provas diagnósticas, que acontecem três vezes no ano, e essa discussãofrequentemente leva à identificação de habilidades que revelam dificuldades deaprendizagem ou de ensino, então essas habilidades, as possíveis causas dasdificuldades, os suportes teóricos para o desenvolvimento delas são analisados noNúcleo. Para além dessas discussões a partir da análise dos resultados dos diagnósticos,que ocorrem em três momentos do ano, os seminários do Núcleo têm uma certa sequência,mas com temas sempre relacionados com a prática: os temas ou vêm da prática para oNúcleo, ou vão do Núcleo para a prática. Este quadro aqui (mostra uma planilha) é umlevantamento dos temas que discutimos, estudamos, levamos para as escolas, desde 2007,quando começamos, até o primeiro semestre de 2016: quantos temas na área daalfabetização e do letramento já discutimos! E ainda há muito a discutir. E também émuitas vezes necessário retomar questões já discutidas, porque se torna necessárioaprofundá-las, ampliá-las, pois os professores vão se desenvolvendo e demandando sempremais ampliação de seus conhecimentos.
Magna do Carmo Silva: Como são realizados os diagnósticos na rede?
Magda Soares: Os diagnósticos, no princípio, no meio e pouco antes do finaldo ano letivo, têm o objetivo de acompanhar a aprendizagem e o ensino, de modo quepossamos estar sempre verificando se estamos atingindo as metas que orientam o projeto,o acompanhamento é um dos nossos princípios. As provas diagnósticas são elaboradas pelasrepresentantes no Núcleo com a colaboração dos professores da rede. É elaborada umaprova para cada ano, desde o Infantil I até o 5º ano, de modo que todos os alunos decada ano respondem a mesma prova. Os resultados são representados em gráficos, de modoque temos condições de acompanhar cada turma, cada ano, cada escola e toda a rede. Nosencontros do Núcleo e nas escolas, é feita a análise, também, de avaliações externas:Proalfa, que é a avaliação do estado de Minas Gerais, Provinha Brasil, AvaliaçãoNacional da Alfabetização (ANA), como um olhar externo que confrontamos com nosso olharinterno. Mas a nossa preocupação principal é o acompanhamento da aprendizagem dos alunose do desenvolvimento profissional dos professores. Não nos orientamos pela tão comumhoje "obrigação de resultados" ... A nossa rede, como cada rede, tem suascaracterísticas, e procuramos não nos inserir em uma "competição" nacional, em crescerem indicadores nacionais... o que procuramos é uma educação de qualidade para ascrianças e os professores do município.
Renata Jatobá: Como se consegue construir uma rede de ensino com práticasque apontem para a qualidade no processo de ensino e nos resultados das crianças?
Magda Soares: O projeto não veio de cima ou de fora, foi construído pelosprofessores da rede, com a coordenação do Núcleo. Por isso os profissionais seenvolveram com o projeto e se sentem responsáveis por ele. O primeiro momento do projetofoi a definição de metas a serem alcançadas, em cada ano, garantindo continuidade eprogressão. Eu fiz uma primeira proposta de metas, para termos de onde partir,discutimos essa proposta no Núcleo, as professoras foram sugerindo alterações,inclusões, mudanças de um ano para outro. Vocês não imaginam quanta discussão tivemospara chegar à primeira versão em 2007; dois anos depois, em 2009, rediscutimos, com basena experiência vivida, e fizemos novas mudanças; recentemente, em 2014, outra revisãodas metas. Vocês estão aqui em 2016 e a quarta edição das metas está sendo impressaagora. É que, à medida que vamos vivenciando o processo das crianças e dos professores,algumas metas nós retiramos ou alteramos, outras acrescentamos. Estamos sempre avaliandoas metas e sua adequação a cada ano. As metas, ou objetivos, são as mesmas em cada ano,assim as escolas caminham na mesma direção, os professores se sentem como umacoletividade em busca dos mesmos resultados. A autonomia dos professores foi respeitada,cabendo a eles construir o caminho em direção aos objetivos, de acordo com as condiçõesde seus alunos, que são sempre singulares. Não temos um material único para a rede, cadaprofessor cria seus procedimentos, seu material, e há frequentes trocas entre osprofessores, sobretudo nas exposições anuais em que apresentam à rede o que fizeram, oque as crianças fizeram. Há uma solidariedade entre os professores e um compromissoassumido com a aprendizagem das crianças.
Renata Jatobá: Eu queria saber como fazer para que um processo como esse dêcerto em uma rede grande. Fica difícil pelo quantitativo.... Mas, penso que é necessáriofazer algo.
Magda Soares: Eu acho que pode dar certo, sim. É um desafio e vale a penatentar. Toda rede grande é dividida em setores que ganham diferentes nomes, aqui na redemunicipal de Belo Horizonte são as Regionais. Penso que se poderia trabalhar comrepresentantes das regionais; cada representante criaria, em sua regional, um núcleo quepoderia funcionar como o nosso Núcleo funciona, sob a orientação da equipe pedagógica daregional. Para manter a igualdade na rede, um Núcleo poderia ser constituído comrepresentantes das regionais. Essa é apenas uma ideia, talvez um sonho. Cada realidade édiferente, cada município tem suas características, vai depender de vários elementos queprecisam ser pensados na organização de um projeto. O que considero ser fundamental éque cada município tenha seu projeto de busca de qualidade de ensino.
Magna do Carmo Silva: Professora Magda, o que vocês fazem, e que denominamde Desenvolvimento Profissional, penso que seria o que em outras redes chamamos deFormação de Professores. Seria o equivalente... então, penso que no Núcleo se daria oDesenvolvimento Profissional das professoras que participam dele e, em seguida, elas vãopara as escolas e fazem o desenvolvimento profissional das professoras? Não tem, então,um momento em que todos estejam juntas com você?
Magda Soares: Não, é inviável esse momento coletivo, pelo número deprofessores da rede. E também considero que, pelo menos no quadro de nosso projeto,teria pouco resultado. Se você reúne grande número de professores pode fazer o quê? Umapalestra. A nossa proposta é estar trabalhando com os professores lá, na sala de auladeles, com os alunos deles, observando e discutindo o que que estão fazendo, trocandocom colegas na escola, trocando entre as escolas. É o que chamo de desenvolvimentoprofissional dos professores. Desenvolvimento é um processo, é contínuo. O quepretendemos é que a cada diagnóstico da aprendizagem e do ensino possamos rever nossotrabalho, nossas metas e o próprio currículo do que queremos ensinar. De vez em quandoas professoras do Núcleo coordenam oficinas sobre diferentes temas. As professoras darede se inscrevem nas oficinas, coordenadas por colegas do Núcleo, e, assim, têm aoportunidade de se aprofundar mais em tema sobre o qual têm dúvidas ou querem sabermais. É o que funciona, porque palestra eu não acho que funcione para mudar prática... Oformato de apoio permanente e de oficinas atende ao que as professoras estão enfrentandona realidade na sala de aula.
Magna do Carmo Silva: Eu percebi que o itinerário pedagógico em Lagoa Santaé baseado, eu suponho, nos componentes curriculares. O que os professores precisam saberpara atuar junto às crianças na área de língua portuguesa?
Magda Soares: Elas precisam dominar os conceitos e os conhecimentos sobrealfabetização e sobre letramento, como integrar alfabetização e letramento. Éalfabetizar e letrar ao mesmo tempo, mas sabendo que são necessários métodos diferentespara ensinar cada uma dessas facetas. Um dos princípios do projeto é a integração doscomponentes, que são desenvolvidos sempre a partir de um texto, sua leitura einterpretação. Nós discutimos muito como escolher textos, narrativos, informativos,poéticos para as crianças, obedecendo ao nível de complexidade adequado, desde omaternal; e discutimos os tipos de perguntas que é possível fazer, sobre o texto, a umacriança de dois anos, de três anos, de cinco anos, de oito anos e assim por diante.
Magna do Carmo Silva: Isso acontece já na Educação Infantil?
Sim, desde a creche trabalhamos com leitura de histórias. A Educação Infantil é uma faseem que é fundamental ampliar o léxico da criança e desenvolver operações cognitivas decompreensão e interpretação, tanto da linguagem oral quanto da linguagem escrita que elaouve pela voz da professora. Na Educação Infantil, enriquecer o vocabulário das criançasde forma sistemática e bem fundamentada é de enorme importância. Mas essa é uma área malcompreendida, a do vocabulário. Porque quando se pretende ampliar o vocabulário dascrianças, há mil e uma alternativas para usar, umas mais adequadas que outras, adepender da idade da criança. Há palavras que a criança deve incorporar a seuvocabulário ativo, outras a seu vocabulário passivo: atuamos de uma forma se o objetivoé que as crianças conheçam a palavra e passem a usá-la, de outra forma se o objetivo éque compreendam a palavra quando a ouvem, falada ou lida, mas não atuamos para quepassem a usá-la, porque é própria do vocabulário passivo. Não se trata de simplesmenteperguntar: você sabe o que significa esta palavra? Há muitas opções de atividades quepodem ser desenvolvidas para a criança aprender novas palavras e passar a usá-las. Já noEnsino Fundamental, são importantes atividades que levem as crianças a refletir sobre aspalavras, a formação com prefixos e sufixos, sinônimos e as diferenças de sentido entreeles, palavras compostas, etc.
Magna do Carmo Silva: Vocês desenvolvem consciência fonológica na EducaçãoInfantil?
Há muita incompreensão sobre atividades de consciência fonológica na Educação Infantil.No entanto, quando se trabalha com parlenda, o que é muito frequente na EducaçãoInfantil, se está desenvolvendo consciência fonológica, se a professora vê a parlendanão só em sua função lúdica, mas também em seu aspecto fonológico, destacando naparlenda as rimas, a divisão em palavras, se a professora não só recita a parlenda comas crianças, mas também escreve a parlenda, levando a criança a compreender que o que agente escreve são os sons que falamos, que esses sons são segmentados na escrita empalavras. Por exemplo, na atividade com parlendas, levar as crianças a falar só o começoda parlenda, a dividir as palavras da parlenda em sílabas... É lúdico e leva a criança aprestar atenção no som das palavras, em sua representação por letras. O mesmo pode serfeito com frases de uma história lida e interpretada, de um poema. E há muitos jogoslúdicos para desenvolvimento da consciência fonológica, para a segmentação de palavrasem sílabas, jogos com rimas... Para aprender a ler e escrever, o primeiro passo é que acriança perceba que escrevemos os sons das palavras, não seu significado, e que essessons podem ser segmentados, que é o que faz a escrita; para isso jogos de consciênciafonológica são essenciais. O importante é que haja integração entre leitura,interpretação, consciência fonológica, escrita, todas as atividade integradas em voltade um texto e de forma sistemática.
Magna do Carmo Silva: Professora Magda, já que tocou no tema dasistematização, gostaria que explicasse um pouco como foi pensado este princípio noprojeto.
Magda Soares: Este é outro princípio do projeto: sistematização. É muitofrequente a improvisação nas escolas públicas. A cada dia a professora improvisa o quefazer, sem sequência em relação ao que fez antes e ao que vai fazer depois. Já vi emescolas uma caixa cheia de matrizes de atividades onde as professoras escolhiam qualdelas usar na sala de aula, sem relação com o que fizeram na véspera e o que farãodepois. A continuidade do processo de aprendizagem, e portanto do processo de ensino, éfundamental: não só de ano para ano, mas, em cada ano, a continuidade das atividades emfunção da progressão da aprendizagem. A sistematização se orienta pelas metas e sebaseia no conhecimento do processo cognitivo da criança e na natureza do objeto deconhecimento, a língua escrita. O processo cognitivo da criança segue passos, e a línguaescrita é um objeto muito complexo, que precisa ser aprendido em uma certasequência.
Renata Jatobá: Professora Magda, o seu novo livro "Alfabetização: umaquestão de método"1 traz um pouco essa discussão.Seria nessa perspectiva?
Magda Soares: Uma constatação interessante é que em todas as áreas deconhecimento é reconhecido que quem vai ensinar precisa conhecer o objeto deconhecimento de seu ensino: quem vai ensinar matemática, precisa saber matemática, quemvai ensinar geografia, precisa saber geografia e assim por diante. Mas quem vai ensinaralfabetização só precisa saber ler e escrever! No entanto, a língua escrita é um dosobjetos mais difíceis de se ensinar! Geralmente se pensa que alfabetização não é um"conteúdo", é só a aprendizagem de um "código", quando é um sistema de representaçãobastante abstrato. Nesse meu novo livro, proponho que a alfabetização tem váriasfacetas, a criança, e também o adulto analfabeto, tem de aprender esse sistema abstratode representação, tem de aprender a usá-lo como leitor e como produtor de textos, tem desaber responder às demandas sociais e pessoais de comunicação por escrito. Paraexemplificar, vou destacar o que é preciso saber para trabalhar a faceta linguística daalfabetização: é preciso compreender a língua escrita como um sistema de representação,não como um código; é preciso conhecer bem as relações fonema-grafema na ortografia doportuguês; para isso, é preciso saber o que é fonema, é preciso conhecer as estruturassilábicas do português, e estou citando apenas alguns tópicos. E é ainda preciso sabercomo relacionar o desenvolvimento cognitivo da criança com a aprendizagem desse objetolinguístico complexo que é a língua escrita, a importância de desenvolver consciênciafonológica e fonêmica, o conhecimento das letras... É disso que trata esse meu novolivro. Um bom exemplo da extensão do que é preciso conhecer para orientar a aprendizagemda língua escrita é que eu planejei inicialmente o livro para abranger alfabetização etambém letramento (referindo-se ao seu livro Alfabetização: a questão dos métodos), mas,quando comecei a escrever, vi que, se fosse cumprir o projeto nessa extensão, escreveriaum livro de um tamanho inadmissível... restringi-me então às teorias que fundamentam afaceta linguística da alfabetização e sua implicação para o ensino, para responder àquestão dos métodos para alfabetizar. Não me parece possível discutir métodos dealfabetização sem analisar o objeto que se ensina (a língua escrita), sem conhecer osprocessos cognitivos e linguísticos de interação da criança com esse objeto. Incluir nolivro também teorias e práticas da formação leitora e da produção de textos, como tinhainicialmente previsto tornou-se impossível, se só a faceta linguística ocupou quase 400páginas! Minha conclusão no livro sobre a questão dos métodos de alfabetização é que aresposta não deve ser buscada em optar por um método, mas em alfabetizar com método,entendendo-se por isso que quem alfabetiza precisa conhecer o objeto e o processo dacriança na apropriação desse objeto.
Magna do Carmo Silva: É um trabalho muito minucioso o de acompanhar aconstrução do conhecimento do que a criança está fazendo, ver o professor lidando comesse conhecimento e se formando enquanto docente, na prática mesmo, e refletindo sobre aação dele... deve ser uma experiência gratificante! Acho que é isso que dá condições deo professor criar os caminhos da ação. Não é esse o objetivo? Penso que a autonomiadocente, de agir virá como resultado dessa experiência. Penso que o professor, que estána sala de aula, mesmo com a turma muito heterogênea, vai perceber que já adquiriuconhecimentos para agir: Eu posso! Então, eu acho que esse tipo de desenvolvimentoprofissional das professoras, que vocês promovem aqui em Lagoa Santa, faz com que elastenham essa autonomia, que é o que as capacita para saber compreender, avaliar o aluno,acompanhar...
Renata Jatobá: Pelo que eu percebi, vocês são muito cuidadosas no sentido deque o acompanhamento da aprendizagem é fundamental. A participante do Núcleo atua com acriança também, além de estar junto aos professores para tirar dúvidas, construir emconjunto. Daí o sentimento de pertencimento do professor, ser o ator ativo do processocom ajuda. Porque o professor em geral sente estar sempre sozinho. Percebo que aqui nãotem esse sentimento de "eu me sinto só"; há dificuldades, porque é normal, mas noconjunto o coletivo vai construindo alternativas. Por exemplo, quando a gente viu, noencontro do Núcleo ontem, a análise de dificuldades do quinto ano em algumas estratégiasde leitura, a discussão foi: o que vamos fazer para resolver isso? Quer dizer, aavaliação é propositiva, porque o professor vai pensar sobre as dificuldades, procuraentender por que o aluno não chegou aonde se esperava que ele chegasse. Ele é novato?Ele não está na rede desde o começo? Não estamos trabalhando adequadamente essasestratégias de leitura? São muito difíceis para alunos de quinto ano? Eu acho que essapostura de reflexão, de compreensão, para então decidir ações, faz a diferença.
Janair Cassiano: Algo importante neste processo é que o professor sejaescolhido de acordo com seu perfil para trabalhar com esta ou aquela turma. Lá naescola, eu estou conseguindo fazer isso. Analisamos quando uma turma não está indo bem,se é a professora que não tem perfil para esse ano, e já colocamos outra pessoa. Elasmesmas, quando fazem o planejamento, reconhecem o que não deu certo e falam que vãofazer diferente da próxima vez. Então, já assumiram essa ideia de que é preciso ir seaperfeiçoando, ou percebem quando não estão dando certo na turma e conversamos em buscada melhor solução.
Gilmara Duarte: Eu penso que em turma de alfabetização precisa ficar quem quer seespecializar nisso, quem sabe e gosta de alfabetizar. Não dá para ficar uma pessoa quenão entende como se alfabetiza porque não vai poder ajudar as crianças. Então nósajudamos muito nisso... ajudamos a definir qual turma cada professora vai assumir.Vejam, as professoras novatas não deveriam assumir turmas de alfabetização porque elasprecisam ter experiência em alfabetizar para poder atender os alunos. Uma pessoa queacabou de chegar na escola e que não tem experiência pode ter muitos problemas na turma.Se for novata na escola mas tiver experiência com alfabetização, então pode dar certo,se tiver apoio e se integrar ao grupo, trocar ideias e se empenhar...
Magna do Carmo Silva: Penso que aceitar essa proposta tem a ver com pensarde forma diferente o cotidiano escolar. Eu fiquei impressionada, ontem, quando vocêsfalaram sobre colocar no tempo de ensino tudo que é preciso desenvolver em alfabetizaçãoe letramento. O exemplo que vocês deram: precisa trabalhar a alfabetização e os textosde forma integrada. Todos os elementos que envolvem ambos. Bonito de se ver....
Magda Soares: Isso é o que a gente chama de Alfabetização e Letramentointegrados. Mesmo na Educação Infantil a professora vai trabalhar as letras, vaitrabalhar consciência fonológica, sempre com base em texto, contando uma história paraas crianças, lendo uma história para as crianças. Ao ler a história, ela aponta letras,a letra do nome de cada um no texto; depois, faz a leitura, na leitura desenvolve, desdeos pequenininhos, a compreensão oralmente, as estratégias básicas de leitura... Mas,para pensar nessas atividades, discutimos muito, e continuamos sempre discutindo, quaisas estratégias de leitura, quais são as ações cognitivas que você tem que desenvolver nacriança, desde os três, quatro anos ou até menos que isso, mas sempre a partir do texto.Por exemplo: você escolhe um texto, uma história, faz a leitura, discute, trabalha acompreensão; do texto, tira uma frase, não inventa uma frase... leva as crianças asegmentar a frase do texto em palavras e depois a segmentar palavras em sílabas. Parachegar aos fonemas, usamos muito um procedimento que chamamos "das casinhas", que levaas crianças a confrontar palavras e sílabas que se diferenciam apenas por um fonema. Emsíntese, trabalhamos basicamente com sequências didáticas: partimos de um texto e de suainterpretação, e no texto e a partir dele desenvolvemos os conceitos e as habilidadesque são objetivos de aprendizagem naquele momento.
Renata Jatobá: Então, percebi que o importante no projeto é o professorconhecer o objeto e o processo de aprendizagem do que ele vai ensinar para entender o"como", o "porquê" e o "para quê". Nesse processo, o que seria mais importante para oprofessor saber no processo de alfabetizar e letrar?
Magda Soares: O importante é entender os processos cognitivos e linguísticospelos quais as crianças aprendem e como você tem que agir para desenvolver essesprocessos (com apoio em psicologia cognitiva, em conhecimentos linguísticos), e conhecero objeto de conhecimento, porque a língua escrita, a compreensão de textos, a produçãode textos são objetos muito complexos e em grande parte convencionais. O professorprecisa ter esses conhecimentos para compreender os processos de aprendizagem e, assim,definir suas ações de ensino, suas ações de intervenção diante de dificuldades dascrianças. Se você não entende por que uma criança está enfrentando dificuldades, como éque vai atuar? Agora, o "como fazer", e isso foi uma comprovação que eu tive trabalhandoaqui em Lagoa Santa com professoras, se há o conhecimento dos processos, elas sabemmuito bem definir o que fazer. Temos as metas, discutimos as características dos objetosde conhecimento das metas, os processos cognitivos e linguísticos para que as criançasse apropriem desses objetos. A partir desses pressupostos, a professora sabe o que fazere ela, com sua vivência de sala de aula e de contato com as crianças, sabe muito melhordo que eu o que fazer. Elas passam a entender a sua prática, a avaliar as atividades jáconhecem e a produzir elas mesmas atividades adequadas para orientar as crianças eatingir as metas. É claro que esse processo de desenvolvimento profissional é lento. Porexemplo, para compreender como se dá o aprendizado da língua escrita, no início, asprofessoras perguntavam: qual é a diferença de alfabetização e letramento? O que é umacoisa e o que é outra? Qual é a relação de uma coisa com a outra? Como é que a gente fazalfabetização e letramento de forma integrada na sala de aula? A partir daí, fomosdiscutindo os componentes da alfabetização e do letramento, a natureza de cada um, osprocessos cognitivos e linguísticos subjacentes a cada um. Periodicamente discutimos oque é preciso retomar, porque ainda não se sentem completamente seguras ou porque hánovatas no Núcleo ou nas escolas, ou o que é que é preciso incluir, porque a práticaestá exigindo, o que é necessário aprofundar. É um processo constante.
Magna do Carmo Silva: Professora, a senhora acha que os cursos de Pedagogiatêm preparado o professor para ser ou ter um perfil alfabetizador?
Magda Soares: Vejo hoje com clareza que há uma grande distância entre aformação de professores para a Educação Infantil e as séries iniciais do EnsinoFundamental nas Faculdades, nos Cursos de Pedagogia, e o que é a prática real dessesprofessores nas escolas públicas. Na formação inicial, o que se consegue, no máximo, sãoum ou dois semestres para discutir alfabetização, em geral nenhum para discutirletramento - para a formação de crianças leitoras e produtoras de textos. O foco maiornos cursos de Pedagogia tem sido os fundamentos da educação. Este é o grande problema: aausência de articulação teoria e prática. Estudo dos fundamentos talvez ajudem osfuturos professores a compreender e avaliar as práticas de educação na sociedade, nãopropriamente o ensino nas escolas, não têm ajudado a atuar no quadro dessa compreensão eavaliação. A articulação entre teoria e prática é mesmo difícil: como a teoria pode setraduzir em prática e como a prática pode confirmar ou contrapor-se à teoria? É odesafio das respostas a essas perguntas que tenho enfrentado, vindo de uma vidaacadêmica para esta imersão na realidade de escolas públicas. Descubro que é a partir deuma situação real que buscamos o apoio das teorias, e que estas ou iluminam a situaçãoou se mostram insuficientes para compreendê-la, e então é necessário corrigir teorias,construir novas hipóteses... Vejo a insuficiência de uma formação inicial, e também deformações continuadas, se não estiverem intimamente associadas a práticas reais nocontexto real em que se desenvolvem aprendizagem e ensino. Reconheço que, nesses 10 anosde imersão nas práticas de ensino em escolas públicas, tenho aprendido muito mais do queensinado... Esse meu último livro (referindo-se ao livro "Alfabetização: uma questão demétodos") parece um livro teórico, mas eu não o teria escrito se não tivesse ficadotodos esses anos buscando relações teorias-práticas, identificando que teorias sãofundamentais para compreender as exigências da prática. Basicamente, são as práticas quenos exigem teorias... é por meio delas e para elas que vamos refletindo, com aparticipação e auxílio das professoras, sobre as relações teorias-práticas. Mais umaspecto é preocupante na formação de professores nos cursos de Pedagogia, eu acho queJanair e Gilmara vão concordar comigo. São futuros professores que vão ensinar o queeles mesmos só aprenderam, quando aprenderam, na educação básica. Vão ensinar, porexemplo, produção de texto, mas elas mesmas não sabem produzir textos, porque, em geral,não lhes foi ensinado. Não lhes foi ensinado como produzir textos de diferentes tipos egêneros, diferentes estruturas, não lhes foi ensinado construir textos coerentes ecoesos; o próprio conhecimento das estruturas linguísticas e suas convenções é ensinadocomo uma gramática descontextualizada do uso. Muitas não são leitoras, não lhes foi dadaoportunidade de se formarem leitoras, e como formar crianças leitoras se as formadorasnão são elas mesmas leitoras? Em meu entender, a providência mais urgente atualmente, naeducação brasileira, é repensar a formação de professores nas licenciaturas e, no que serefere a esta etapa que é o alicerce de tudo, a Educação Infantil e as séries iniciaisdo Ensino Fundamental, repensar e reformular os cursos de Pedagogia.
Magna do Carmo Silva: Professora Magda, agradecemos imensamente pelaoportunidade de podermos compartilhar a sua experiência e aprender um pouco sobre aconstrução desse projeto em Lagoa Santa. Esperamos poder voltar para continuar a trocarexperiências.
Renata Jatobá: Agradeço muito a oportunidade. Com certeza, voltaremos aLagoa Santa para aprender muito mais!
Magda Soares: Eu é que agradeço por terem vindo. Estou muito feliz em tê-lasaqui e voltem sempre que puderem e quiserem. O que eu quero mesmo é que as ideias queestamos tentando colocar em prática aqui possam servir de inspiração para muitosmunicípios e professores.
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Author
Magna do Carmo Silva
Universidade Federal de Pernambuco, Brazil
Author
Renata Araújo Jatobá de Oliveira
Rede Municipal de Ensino do Recife, Brazil
Université Lumière Lyon 2