in Práxis Educativa
De pesquisador a militante na educação pública: organizações sociais,ocupações estudantis, cultura juvenil e educação histórica em uma entrevista comRafael Saddi
Main Text
Introdução
O texto que segue foi produzido a partir de uma entrevista realizada com o professorRafael Teixeira Saddi, na qual se entrelaçaram reflexões sobre a sua trajetóriapessoal, familiar e acadêmica - elaboradas com e para além dos ordenamentos formaisdo ofício do historiador - às experiências por ele recentemente vividas.
O fio condutor da narrativa aqui produzida passa essencialmente pelas suasponderações sobre as ocupações estudantis nas escolas públicas de Goiás nos anos de2016 e 2017, que ocorreram como forma de protesto contra a entrega dessas escolas àchamada “gestão compartilhada” com as organizações sociais. Saddi publicou nas redessociais um texto intitulado Dando Nome aos Bois, no qual denuncioua forma como essas organizações aprofundariam tanto o processo de perda de autonomiae qualidade do ensino público a partir da adoção do critério da “eficiência”, quantoa precarização das condições do trabalho dentro das escolas. Denunciou também osmecanismos de favorecimento econômico e os vínculos políticos partidários dessasorganizações ditas filantrópicas e sem fins lucrativos. A produção dessa pesquisa eos dados por ela apresentados levaram o professor a um comprometimento radical com omovimento estudantil de ocupação das escolas. Essa convivência ilumina suasreflexões sobre o protagonismo político e a cultura de uma juventude, em suaspalavras, trabalhadora, proletarizada, terceirizada, marginalizada, que vem seapresentando sob uma nova forma de organização marcada pela horizontalidade,radicalidade e autonomia e que desafia a compreensão nos moldes formulados atéaqui.
A partir do impacto da experiência vivida nos últimos anos, Saddi compartilha conoscoa reformulação de seus problemas de pesquisa, inquietado pela convicção de que temosde “resolver os nossos próprios holocaustos” sem abrir mão dos critérios pelos quaisformulamos e disputamos sentidos para o passado e para o presente por meio dotrabalho profissional do historiador.
Com Mestrado e Doutorado em História pela Universidade Federal de Goiás (2004 e2009), atualmente é professor adjunto do Instituto de História dessa mesmainstituição, onde leciona disciplinas ligadas à teoria, à metodologia, aosfundamentos e ao método de ensino em história. Também atua como professor noPrograma de Pós-Graduação em História na linha de Movimentos Sociais e Educação. Suatrajetória intelectual é marcada por sua preocupação em investigar a relaçãoestabelecida entre teoria da história e ensino de história pelos pesquisadores dachamada Metodologia da Educação Histórica e analisar de que modo a relação entrehistória e vida se articulam, evidenciando a didática da história como área dopensamento histórico que investiga o aprendizado histórico. Nesse sentido, valedestacar a sua participação, desde 2012, como membro do corpo editorial daRevista de Teoria da História e Revista de EducaçãoHistórica.
Como especialista em Didática da História, Saddi tem publicado diversos artigos,proferido cursos e palestras. Entre os seus trabalhos recentes, vale destacar suaparticipação nos livros: Educação e Anarquismo: uma perspectivalibertária1; O Ensino de História:aprendizagens, políticas públicas e materiais didáticos2; Escritos Revolucionários sobre a Comuna deParis3 e EducaçãoHistórica na Era da Globalização4.Por último, vale destacar que a sua atividade como professor extensionista emprojetos de formação de professores da Rede Municipal de Goiânia pode ajudar-nos acompreender a natureza de seu envolvimento com as lutas da escola pública emGoiás.
Todo o quadro anteriormente apresentado justifica nossa alegria em entrevistá-lo etornar público o resultado dessa conversa. Em um momento de tantas incertezas emarcado por tentativas revisionistas de avaliar os sentidos do passado que legitimamretrocessos e violências no presente, aqui se cruzam a densidade do pesquisador, ocomprometimento do intelectual-professor e, acima de tudo, uma profundasensibilidade resistente de um homem que se destaca por sua inserção nas lutas, nasangústias e nas esperanças do nosso tempo.
Alessandra Izabel de Carvalho: Professor Rafael, uma entre as muitasdimensões importantes de uma entrevista é a possibilidade de o entrevistado contar asua própria história. E interessa-nos muito que você nos conte um pouco de você, dasua biografia, da sua trajetória; enfim, da sua história.
Rafael Saddi: Bom, eu sou extremamente tímido, muita gente não sabe.Então eu tenho muita dificuldade para falar da minha vida por traumas e experiênciastraumáticas do passado, por coisas que tenho dificuldade de interpretar e de colocarsentido e significado. Então, eu não produziria jamais uma boa história sobre mim,mas rapidamente consigo pensar pelo menos alguns elementos que acho que sãomarcantes para a minha formação.
O primeiro fato é que sou filho de um ex-sargento do Exército, e ele participou doGolpe Militar e esteve na Guerrilha do Araguaia, como militar. Quando nasci, ele játinha abandonado o Exército, isso justamente depois da guerrilha. Ele saiu daGuerrilha do Araguaia, passou alguns meses lá e pediu licença. E, logo depois, elepediu desligamento, não voltou mais para o Exército. Foi quando ele entendeu que oprojeto que ele apoiava era um projeto extremamente cruel. Meu pai abandonou oExército já em 1972 e, depois, participou de todo o processo. Ele se envolveu com aIgreja Católica, com a Teoria de Libertação e, em seguida, participou de todo oprocesso de Fundação do PT. E aí começou a apoiar o Movimento Sem Terra, movimentona época antes de ser MST. As ocupações em Goiás, nós tivemos as primeiras ocupaçõesde terras assim, já vinculado ao movimento. Então, eu acho que isso foi marcante,né? Eu fui criado com peso na formação de uma figura que teve uma mudança muitobrusca na vida, na sua forma de compreensão do mundo. A forma como ele criava agente, eu e meus irmãos, era a de um sargento, de um ex-sargento que teve umaformação dentro do Exército. Mas um sargento que abominava aquilo que a instituiçãoque ele tanto honrava estava fazendo no país.
Ele não comentava muito sobre a Guerrilha do Araguaia, a não ser em certos momentosmuito pessoais ele soltava alguns comentários. Era realmente algo que deixou umtrauma nele. Ele dizia assim: “Olha, eram jovens, eram muito jovens, muito malarmados e o Exército ia com tudo para cima desses meninos, meninos idealistas”.Claro, essa interpretação também está marcada, envolve uma memória. É uma memóriaposterior, não quer dizer que é bem isso porque é uma interpretação que também tentaadquirir a importância desses movimentos maiores, maduros, mas implicava numaprodução de sentido humanista. Meu pai era um cara muito humano. Entrar em contatocom isso daí foi muito pesado. Então a nossa formação foi a de um soldado, de umsargento do Exército que achava que a formação tem de ser rígida, mas que também erapreocupado com as questões sociais e achava que as pessoas tinham de se engajar paratransformar as injustiças e lutar contra as injustiças.
Uma vez ele me levou, devia ter uns seis anos, para o Hospital de Urgências, o HUGOlá de Goiânia, que era um absurdo, uma situação horrível, povo chegando acidentado,pessoal muito pobre, sofrido, muita violência, descasos, pessoas jogadas no chão. Eme pegou criança e foi lá para a porta à noite e ficamos lá na madrugada. E eudizia: “Pai, vamos embora!”. Não conseguia ver aquilo. E ele: “Não, você vai ver,porque é assim que o povo brasileiro vive, é isso aí que eles fazem com o povo. Issonão devia existir, mas existe”. Eu me lembro com terror disso. E, hoje, imagino queessas coisas me marcaram muito e as coisas que passei recentemente acho que temmuito a ver com isso, com esse tipo de formação que não considero positiva. Porque émeio do choque, não considero tão positivo, porque deixa um trauma, mas era a formadele, o jeito dele e eu compreendo completamente. Muito humano, muito honesto, muitopreocupado com os valores, com a formação de valores, uma pessoa incrível assim. Masum soldado, um sargento, um homem rígido que nos formava e que falava: “Olha, vocêaguenta a chuva, se a gente põe o corpo na chuva, aguenta a chuva, o homem tem deser superior ao tempo”. Muito viril; enfim, bem estranho, pelo menos estranho, né?Não dá para positivar esse tipo de relação e nem para negar.
Um outro aspecto que acho importante da minha trajetória de vida, da formação, que euacho importante é que, na adolescência, como ele era muito rígido, eu comecei a meenvolver com os punks, por conta da música, e, depois, com osanarquistas, os anarcopunks. E, adolescente, comecei a ler umaliteratura que questionava tudo e qualquer tipo de autoridade e comecei a ter muitastensões, a questioná-lo na forma de ser. E acho que é uma postura que aprendi naadolescência, mas que também sempre permaneceu pelo fato de eu ser extremamenteincomodado com as divisões e a hierarquia entre os seres humanos. Não consigo, nãoconsigo estar numa posição onde me colocam como superior e também me incomoda muitoas posições superiores de outras pessoas, que agem como se fossem superiores aoutros seres humanos. Esse é um princípio que eu carreguei da adolescência, dosanarquistas com os quais me identificava. Não quero, o anarquista é aquele que nãoaceita, não quer ser nem o dominador nem o dominado. Isso se formou na adolescência,na época radical, mas é algo que ficou em termos de valores. E aí, maisrecentemente, acho que quando entrei para o curso de História, fui buscarautonomamente e pesquisar processos de rupturas.
Então, a minha dissertação de Mestrado e a tese de Doutorado foram sobre a RevoluçãoCubana, não foi sobre Didática da História e nem Teoria da História, que é o campoque fui depois que terminei a Pós-Graduação. Mas ali estava justamente essa procurade entender esses processos de ruptura e, especialmente, pensar por que a RevoluçãoCubana, na medida em que via os documentos, como ela foi perdendo todo umextraordinário, um momento de transformação incrível que se criou a partir de 1959.Rapidamente os guerrilheiros que viveram na pobreza, que enfrentaram um Exércitointeiro, se unificaram com os camponeses, criaram vários projetos sociais deeducação, fizeram a reforma agrária. Como, em pouco tempo depois da tomada de poder,eles foram ocupar, começaram a ocupar as mansões dos antigos burgueses que saíram deCuba, começaram a ficar com os grandes carros, foram se burocratizando e isso meincomodava muito. Foi uma das coisas que tive interesse em pesquisar no Mestrado,que tem a ver com essa formação e aí acho, aí tem outros detalhes para terminarporque já estou falando demais. Falei que tinha dificuldade de falar da minhahistória e já estou contando as historinhas.
Acho que teve momentos marcantes da história, um deles foi quando eu vivi umaexperiência de muita pobreza e miséria, de fome, de sentir uma vida miserável. Queessa é uma parte da história que eu não gosto de contar muito porque não tenhoainda, não consigo ainda colocar significado. Mas o que levei disso, pelo menos oque consegui perceber na prática, foi uma fala de um catador do Rio Grande do Sulque me disse assim: “Olha, tu é o que tu vive”. Então ali eu senti isso mesmo. Agente é... Hoje me incomoda muito toda teoria que tenta separar a vida, o que agente vive daquilo que a gente é. Porque como vivi situações de classe média esituações de miséria, vi que a gente se torna um ser humano dependendo das condiçõesem que a gente está inserido. Toda a subjetividade é transformada. Eu me endurecimuito, modifiquei a forma de falar, modifiquei a forma de pensar, de me entender nomundo, tudo é realmente incrível. E, ao mesmo tempo, essa experiência me deixouvários traumas que eu não consigo abordar ainda. Tenho pesadelos até hoje de certascoisas que eu vivi. Mas ela me deixou com mais desprezo em relação a certasestruturas que a gente vive dessa sociedade. Por exemplo, por eu simplesmente ser ummiserável, me tornei realmente um desclassificado e as pessoas que me conheciam nãome tratavam com respeito. Ninguém trata com respeito um desclassificado. Você é umnada, um ninguém. Então, logo depois, me tornei professor universitário, foi muitorápido esse processo, e me tornei alguém a ser respeitado, a ser ouvido, a ter ummonte de gente que te trata bem. Eu criei uma ojeriza ao modo como as pessoas sãotratadas pela condição de onde elas estão. Não que ser professor universitário é umagrande coisa, mas a gente tem um meio pelo menos que nos respeita. Bom, é isso.Falei até demais [risos]. Vocês queriam mais informação educacional, assimmais...
AIC: Se você quiser nos falar...
Robson Laverdi: O que você quiser falar, sinta-se livre.
RS: Não, acho que é isso.
Rosangela Petuba: Bom, Rafael, professor Rafael, é um prazer recebê-lopara essa entrevista. Você tem uma atuação acadêmica no campo do Ensino da Históriae da atuação militante em coletivos estudantis contra a privatização da educação queganhou repercussão nacional, sobretudo nas redes sociais. Tal atuação te levouinclusive à prisão em 2016 ao tentar acompanhar, como observador, o processo dedesocupação da Secretaria de Educação de Goiás, cujo prédio estava ocupado pelomovimento estudantil que protestava contra as políticas privatistas de educação peloGoverno de Goiás. O ato autoritário gerou inclusive uma nota na ANPUH5. Gostaríamos que você nos contasse um poucodesse processo, tanto do ponto de vista do episódio, sobretudo dos seusdesdobramentos, como você revisita essa luta hoje?
RS: Então, foi e está sendo muito difícil para mim ainda, assim emtermos pessoais, lidar com isso porque essa experiência da prisão fez com que coisasantigas que não estavam resolvidas voltassem, né? Porque, na verdade, no anopassado, eu fui preso duas vezes e fui detido uma vez. Os estudantes tinham ocupadouma escola e já estavam lá há mais de um mês. Houve uma decisão do Governo dedesocupar a escola, e a Polícia Militar entrou de madrugada nessa escola que eradiferente das outras, os meninos eram do Ensino Fundamental, não eram do EnsinoMédio, eram menores ainda...
RP: Eram crianças...
RS: Eram crianças. E aí a polícia entrou de madrugada, cinco, seis horasda manhã, enquanto os meninos estavam, a maioria, dormindo, eles dividiam avigilância e não deu tempo de eles se organizarem; a polícia chegou agredindo todomundo. Chegou batendo nos meninos e tirando-os da escola à força. Os meninosavisaram e, quando vi uma mensagem no Facebook dos meninos falando o que aconteceu,falando que tinha gente machucada lá, aluno machucado, fui para lá. Quando cheguei,lá tinha muita tensão. O que interessa é que eu e as outras pessoas que estavamapoiando os alunos falamos assim: “Vamos entrar nos carros, os apoiadores, vamosdividir os alunos agredidos nos carros, vamos ao Ministério Público denunciar e aoIML para mostrar que realmente aconteceu a agressão”, porque a polícia já estavanegando, inclusive intimidando os jornalistas que estavam entrevistando os alunos.Os alunos entraram no meu carro, foram vários carros, mas havia o meuespecificamente, e uma outra professora veio me seguindo com outro carro levandooutros alunos. A gente saiu da escola e, quando entramos numa rua, quatro carros àpaisana nos pararam: “Saiam, mãos na cabeça!”, com a arma na nossa cara gritando:“Dançou, hein professor, agora a gente te pegou”. Aí fomos levados para a delegacia.A nossa sorte foi que o pessoal percebeu e viu que a gente ia ser preso e já chamouadvogado e todo mundo. E tinha uma jornalista lá que foi muito importante nessemomento, ela era do maior jornal de Goiás, se sensibilizou e estampou: “Professoresda UFG estão detidos agora”. E isso fez com que eles, na hora lá, recuassem. Sóassinamos e saímos, só fomos detidos, não ficamos presos.
Um mês depois teve essa prisão em função dessa ocupação da Secretaria de Educação, emque os apoios estavam na porta, eu também fui para a porta. Os meninos avisaram: “Agente ocupou a Secretaria e está cheio de polícia aqui, a polícia está chegando” etal. E aí eles organizaram uma espécie de armadilha para mim, me chamando paraacompanhar o processo. Eu vi um aluno ser agredido e eles falaram: “Oh professor, ouvocê sai daqui de perto ou vamos te levar preso”. Eu falei: “Daqui não vou sairporque eu estou vendo e registrando o que vocês estão fazendo”. Passou um pouco e umoutro policial me disse: “Professor, o senhor poderia, nós vamos retirar os alunos,não vai acontecer nada com eles, eles não vão ser presos, a gente gostaria que osenhor acompanhasse para garantir, para acompanhar o processo e ver que não fizemosnada com os alunos e que eles estão bem, que não há agressão sobre eles” e tal.Respondi: “Faço questão de ir”. E, quando eu entrei, o comandante da operação disse:“Professor, olha bem para cada aluno”; os alunos detidos sentados no chão; “olha bemcomo eles estão, conferiu tudo?”. Conferi. E eu achando que iam liberá-los agora. Aíele disse: “Então, senta igual a eles que você está preso”. E fui levado preso.Nesse momento, os policiais passavam e perguntavam: “Você é o professor da UFG deHistória?”. Ou seja, já tinham um processo de marcação com a minha pessoa quandocomecei a pesquisar sobre a OS [organização social] e nas pesquisas eu identificavaa máfia que aquilo era, um conjunto de articulações.
As OSs eram empresas organizadas por membros do próprio Governo Estadual e com váriosprocessos de fraude de licitação, de roubo, de desvio de dinheiro público, dehospitais públicos. É isso que eles não admitiram, a produção de pesquisa, naverdade. Então eu não me entendia ali como militante naquele momento. Eu já militei,mas eu não me entendia como militante, me entendia como pesquisador, como professorque começou a apoiar as ocupações, mas, como apoiador, pois não havia liderança.Como você lida com um movimento sem cabeça? Um movimento começa, uma escola foiocupada, de repente outra e, no estado todo, tinha aluno querendo ocupar sua escola.Eles mesmos decidiam e ninguém sabia quando uma escola seria ocupada. Não existiauma organização que fosse capaz de fazer o que foi feito, de dirigir esse processo.Isso eles não conseguiam entender.
A repressão não consegue imaginar um movimento espontâneo, e acham que é preciso teruma cabeça muito inteligente por trás disso. Tem de ser um professor e, se for umprofessor de universidade, então isso explica mais coisas ainda. Então eles tentaramconstruir uma liderança, e eles acabaram conseguindo fazer isso. Fiquei colocadocomo um, fui estampado numa foto de jornal: “Líder das invasões das escolas tentapassar por bom moço”. Lá se falava que eu era financiado pelo PT [Partido dosTrabalhadores], que tal deputado “deve bancar ele”, “deve não”, falavam que bancavae eu nem conheço deputado, nunca fui filiado a partido nenhum, não tenho vínculo como PT. Mas eles tentaram aproveitar esse ambiente da destruição da imagem do PT paraassociar. Então, tentaram criar e fabricar uma liderança, não foi só comigo, masacho que fiquei mais exposto por conta da universidade, por conta da titulação, porser doutor, isso deu mais visibilidade sem dúvida nenhuma a mim do que a outrosestudantes que tiveram um papel muito mais ativo na organização do movimento ou depensar o movimento. Mas também não fiquei de fora do processo, o movimento foi meengolindo, na medida em que a repressão aumentava, mais engajado eu me sentia noprocesso, de ter de contribuir mais, mas sempre como apoio, jamais como direção.Então, entrei como pesquisador, mas, no final, saí como militante mesmo.
Então, eu acho que foi esse processo que a repressão conseguiu fazer. Como que euavalio esse processo? Eu poderia dizer que é muito difícil a relação entre a ideiade militância e a ideia de um trabalhador acadêmico. Infelizmente, o imaginárioacadêmico construiu uma fronteira, um muro, uma barreira que impõe ou você émilitante ou você é pesquisador. Acho que nesse momento que a gente está vivendo nopaís, a gente paga caro por essa separação. Porque vejo a gente muito despreparadopara lidar com a questão política. Na minha própria experiência com as ocupações, euestava extremamente despreparado, não esperava esse tipo de repressão, imaginavaque, ainda mais sendo professor universitário, o Estado ia me resguardar. Eu não eramais o desclassificado, achava que agora eles iam me respeitar. E, para mim, estámuito claro que não há respeito pela universidade, não é porque você é professoruniversitário que você será poupado, pelo contrário. Acho que a construção delessobre o professor universitário, qualquer professor, especialmente dasuniversidades, é a de um inimigo a ser combatido, e eles já vem com um discursomuito pronto e claro que você é um doutrinador, é um militante, um agitador. Coisaque não é verdade, pois há tempos há uma separação entre essas duas coisas. Acho umerro essa separação, a política não se separa do nosso trabalho, nós somos sereshumanos por completo, então nós não precisamos ter essa separação. Enfim, acho que éisso.
RL: Penso que agora a gente pode falar um pouco mais sobre as OSs.Estamos mergulhados numa realidade em que a educação vive um processo dramático dedestruição pelas vias do pensamento e das práticas neoliberais, privatização,retirada de direitos, precarização das relações de trabalho, sobretudo sobre osprincípios básicos de autonomia e de liberdade nos processos de formação cidadã.Nesse âmbito, estabelece-se o desafio do combate às chamadas Organizações Sociais. Apartir da sua leitura de mundo mais ampla, como prática acadêmica e política, comovocê lê as OSs, a princípio derrotadas em Goiás, como que você vê esse processo?
RS: Bom, as Organizações Sociais são, na verdade, uma invenção dogoverno FHC. E vieram justamente com esse processo neoliberal de destruição, detransferência do público para o privado. Trata-se da destruição mesmo do estado debem-estar social para um estado gerencial. A crítica dos inventores da OS é que oEstado é muito burocrático, muito lento, muito custoso, não é eficiente. Então aideia é criar eficiência, esse é o discurso ideológico dos defensores das OSs. Umoutro elemento que eles apontam é o fato de que o mundo do mercado é mais eficiente;as empresas têm um controle de qualidade, um controle dos gastos que o setor públiconão tem, que o público é muito mais corrupto. Então é um discurso bem fantasioso,uma chave de interpretação da realidade bem fantasiosa. O papel que a gente teve lá,que o movimento teve e que fez muito bem aos professores e aos estudantes, foidesconstruir isso que é vendido.
Bom, qual é a análise que eu faço? Para começar não há separação. A OS não tem umcaráter bem privado, ela não é uma organização privada, totalmente privada, ela éuma forma jurídica nova. Então, eu tinha muito cuidado de lidar com ela. Não seiainda se o termo “privatização” é o melhor termo para definir a OS, embora oprocesso, em longo prazo, sim. Mas a OS em si é uma forma mista porque aadministração da OS é uma organização privada, legalmente sem fins lucrativos, entãoela não é uma empresa privada do tipo comum, ela não é a PPP (Parceria PúblicoPrivada), não passa por uma empresa que vai explorar a escola podendo obter lucroscom ela. Mas ela é uma organização privada sem fins lucrativos. Então, efetivamente,o que ela cria? Cria um conselho administrador com membros do Estado participandojunto a esse grupo privado. Tem um pouco de misto na sua forma jurídica. Veja, onosso trabalho é como que a gente vai decifrar isso, como que efetivamente issofunciona e, sobretudo, como isso funciona para a educação?
Na minha opinião, pautada nas pesquisas que fiz, nem mesmo o discurso privatista quedefende que o privado funciona melhor que o público pode ser considerado no caso daOS, porque, se, por acaso, a empresa privada faz um controle de gastos maior do queo público, o que não é verdadeiro, mas supondo que fosse, isso se daria logicamentepelo fato de que, se ela não fizer isso, vai perder o lucro. Então a empresa tem dese preocupar em economizar nos materiais que compra, e a lógica da OS é o contrário,ela não tem que economizar porque recebe um dinheiro público, e ela não pode terfins lucrativos com esse dinheiro. Então, como que ela vai ter fins lucrativos naverdade? Efetivamente, como ter fins lucrativos com esse dinheiro público?Superfaturando os materiais. Então, logo é o contrário de criar um tipo deeficiência e de controle de gastos. A lógica é o contrário, a única forma de a OSganhar é justamente por meio de modos ilegais, já que ela não pode ter lucros.
Então, você só tem duas opções, ou é realmente uma sociedade beneficente, compostapor pessoas extremamente caridosas que querem por bondade trabalhar, administrar umaescola sem pensar em nada, sem nenhum ganho pessoal, que está doando seu trabalho,ou é uma forma ilegal de desvio de dinheiro público, uma forma de roubar dinheiropúblico. E isso se faz de duas formas, superfaturando na hora da compra de materiaisou contratação de empresas que, em muitos casos, são empresas dos próprios laranjasdas OSs. Ou elas fazem isso via recursos humanos, porque a OS passa a contratarpessoas de fora, pessoas privadas. Então, como ela não usa o servidor público,contrata o professor e o cara passa a ser um professor de contrato privado da OS, ochefe dele é a OS, o patrão dele é a OS. Então quem perde é ele, é uma precarizaçãocompleta do trabalho, não tem mais estabilidade nenhuma, ele não tem mais o direitoque o servidor tem, ele não tem mais a carreira do servidor público que, por piorque seja, por conta de lutas, ainda teve umas garantias frente a essa condução domundo privado. Esse professor não tem nada disso e ainda é uma forma da OS auferirlucros porque daí você tem, como na saúde, milhões de contratos fantasmas,duplicação de folha de pagamento, sem contar a coisa do apadrinhamento político. Aquestão do poder está focada mais em quem administra. Quem passa a administrar asescolas passa a ter um conjunto de cargos na sua mão e a oferecer empregos. É opoder de negociar questões políticas para o cargo e também colocar parentes eapadrinhados. É o que tem acontecido em hospitais e em todos os lugares. Então vocêtem precarização do trabalho, desvio de verba pública e uma concepção de educaçãoterrível que é a concepção da eficiência.
Para a OS legalmente se manter, renovar os seus contratos, ela tem umas metas queprecisa atingir, que são índices educacionais. Como eles atingem esses índices? Taiscomo o IDEB e um conjunto deles. São índices quantitativos nem um pouco preocupadoscom a qualidade da educação; não são qualitativos, são quantitativos que imprimem aideia de como, por exemplo, não reprovar aluno, não ter evasão, aumentar número dealunos na sala. Como eles fazem isso? Controle sobre o trabalho. A OS tem umconjunto de trabalhadores privados, os professores são privados e esses professorestêm de alcançar os índices das escolas. O professor que é servidor público ainda temuma autonomia maior, ele pode dizer: “Não, não é assim que eu trabalho, soufilósofo, vou ensinar filosofia da seguinte forma”. Agora, se ele trabalha para aOS, ou ele trabalha da forma dela ou está despedido. Em todos os aspectos, se nóspensarmos nos usos dos recursos públicos, em racionalidade, em condições do trabalhoou em questão educacional, saímos perdendo. Esse é o projeto. Não é só um projeto emGoiás, acho que em muitos aspectos Goiás é um laboratório do que vêm pelo Brasil.Assim como a repressão, e muitos sociólogos de lá apontam isso, que em váriosmomentos eles fazem determinada repressão em Goiás e, depois, aplicam em outrosestados. Embora seja uma invenção brasileira, o termo OS foi inspirado na Inglaterraonde, num momento da década de 1970, houve um processo de privatização profunda. E,depois do modelo da Charter Schools dos Estados Unidos, que é umfracasso completo, né?
Para terminar, qual o futuro que a OS apresenta como projeto? O que esses caras têmpara a educação? Todo esse projeto foi pensado, articulado e está nas cartilhas doBanco Mundial. Tem uma cartilha de 2014 que chama “Professores Excelentes”. Eu digoisso porque o Governo de Goiás contratou o Banco Mundial para dar assessoria naelaboração dos editais gerais. Então, quando a gente pensa: “Ah, é paranoia”; não,não é paranoia. Não é teoria da conspiração. O Banco Mundial assessorou o Estado deGoiás na elaboração de como pensar a OS. Nessa cartilha do Banco Mundial de 2014, aanálise que fazem da América Latina é que o problema da educação, o principal, nãotem só um problema, são vários, mas o principal problema é a formação dosprofessores que é ruim. Olha só o absurdo. Ou seja, a culpa é dos professores. Qualé o maior empecilho que temos para resolver o problema da formação dos professores?Esse problema que é o próprio professor, ou, ainda, a organização dos professores,os sindicatos dos professores. Esse é o maior problema, segundo o Banco Mundial,porque a gente reclama demais, que lutamos tanto. Então ele fala assim: “A maiorforça social organizada na América Latina é a da categoria dos professores”. Está lána cartilha. E essa organização dos professores barra qualquer reforma na educação.Qual o projeto que eles apontam? O que nós precisamos para melhorar a situação daeducação? Acabar com a estabilidade do servidor para poder cobrar mais desseprofessor, para criar mecanismos de controle maior desses professores. É exatamenteo que a OS vai fazer. O projeto da OS faz exatamente isso. Ele consegue controlaressa força de trabalho. E aí o que que acontece? O professor não precisa mais daformação especializada, nós não precisamos de um historiador para dar uma aula dehistória, nós não precisamos de um filósofo pra dar aula de filosofia, nãoprecisamos de cientista social, não precisamos de um biólogo. Se eu tenho apostilase elas são facilmente manuseáveis, posso contratar qualquer pessoa que seja capaz deaplicá-la. É a precarização do trabalho do professor que está na OS, mas como estoudizendo, é um projeto maior, não tenho dúvidas, e pretende chegar a isso. Nós nãoprecisamos de um intelectual, de um professor intelectual.
Agora estou citando uma pesquisa da Fundação Lemann feita junto à Fundação Itaú, queé um exercício que antecede um pouco a elaboração da Reforma do Ensino Médio. Nessapesquisa, eles analisaram como os estudantes saem do Ensino Médio, quais asqualidades que eles têm, o que eles acham da escola pública. Na pesquisa, elesentrevistaram estudantes de escola pública; entrevistaram os que acabaram de sair,aqueles que entraram no Ensino Superior via ENEM; entrevistaram os professores dasuniversidades, dos cursos desses estudantes; e entrevistaram também os empregadores,aqueles que foram para o mercado de trabalho, alguns empregadores de jovens,recém-saídos do Ensino Médio. A pesquisa chegou à seguinte conclusão: os professoresuniversitários falam que os alunos não sabem ler e não sabem escrever. E elestraduzem para: “Olha aí, está vendo? O português na escola pública é deficitário, oaluno da escola pública não dá conta de escrever e ler, não consegue executar umatarefa básica”. Usam a fala dos professores das universidades para reforçar a ideiade que o que precisamos são aulas de português. E usam a fala dos empregadores paradizer que o egresso da escola pública não sabe mandar um e-mailformal, tem muita gíria, do modo como ele se veste, porque eles usam brinco, elesusam cabelo isso e aquilo. Esse é um problema para os empregadores. Esse cara agente não quer. A gente quer o quê? Um cara que fala formalmente e que conseguemandar um e-mail, que execute tarefas. Ah, outra coisa, os jovensde hoje não são humildes, a escola tem de ensinar que eles têm de respeitar,obedecer. Então, qual é o projeto? Eles precisam de um intelectual para formar essecara para esse mercado de trabalho? Não precisa e ali está claro, eles falam dematemática e português que é o fundamental, mas, na verdade, o que eles estãofalando é de uma formação técnica. Eles precisam executar tarefas nesse ambiente detrabalho. E como eles pensam que nós professores, especialmente das humanidades,estamos formando os jovens? Que nós temos incentivado essa identidade culturalsubalterna em todos os aspectos, em termos de gênero, em termos de diversidadesexual, em termos de respeito às identidades afro-brasileiras, étnico-raciais.Então, nós estamos cumprindo um papel, na percepção deles, que precisa ser barrado,um papel subversivo. A OS vem junto nesse contexto que, logo depois, acabarespaldando o Escola Sem Partido, está tudo ligado, na minha opinião.
AIC: Você já falou bastante sobre as ocupações, mas vale a penaaprofundar um pouco mais a reflexão. As ocupações estudantis foram importantes naconjuntura política de 2016. Você possui uma atuação viva nessa dinâmica conformevocê já nos relatou. Gostaríamos que você analisasse isso que foi, na verdade, umaocupação política; sobretudo fizesse uma retomada histórica dessa questão, tentandoperceber marcos de transformação na cultura juvenil e no Movimento Estudantil, sefor possível.
RS: Vejo na juventude de hoje uma diferença muito grande de outrosmomentos. Na minha opinião, existe uma tensão geracional. As ocupações escancararamisso, especialmente na tensão com o próprio professor. As ocupações retiraram oambiente institucional da escola, assim como as ocupações das universidades. E nesseretirar, desarticular a instituição, construiu-se um ambiente extraordinário. Querdizer, o diretor não manda mais. Os alunos passam a decidir como eles querem aescola, que aula eles vão ter. Então você tem uma outra escola. É uma escola nãoinstitucionalizada. Os cargos burocráticos param de funcionar momentaneamente. Mesmoque momentaneamente, a ocupação implica uma interrupção dessa estrutura educacionalburocrática. E isso gerou tensões profundas com a estrutura burocrática, mas tambémcom os professores.
Nesse movimento, esses meninos não aceitavam de modo algum a ideia de hierarquia. Nãofoi algo que foi discutido, assim muito profundamente, sobre como vamos nosorganizar. Não, é assim e pronto. E se alguém chegasse e falasse: “Olha, gente, temde pensar uma estrutura mais burocrática; não vou dizer mais burocrática, mas criarum comitê para consertar determinadas coisas, sejam as relações, sejam algumasatividades”. Isso era absurdo para os meninos. Isso era recebido de forma assim:“Cara, aqui não. Isso não existe aqui e não vai existir”. Daí que você vê que é umasensibilidade política muito distinta dos movimentos anteriores, das juventudes queestavam mais vinculadas a um projeto, a uma tradição da esquerda, um pouco mais dospartidos, mais formalizada. Acho que a juventude mais partidária percebe, nas suasvárias correntes, que ela não consegue mais organizar ou participar dos movimentosdessa outra juventude sem reconhecer essas novas formas horizontais de organização.Algumas vertentes dessa juventude de alguns partidos têm colocado claramente isso,que participaram da luta, mas que não concordam com essa forma de organização, masque, se não aderissem, ficariam fora do processo, perderiam o trem da história.
Um outro elemento, além da horizontalidade, é a questão da autonomia. Acho que osindicato dos professores estaduais de lá atuou de forma muito negativa com relaçãoaos meninos. Não conseguiu dialogar com os alunos; foram muito precipitados, e osmeninos rapidamente reagiram: “Não queremos e não aceitamos que vocês integremaqui”. Então não é uma crise só com os partidos políticos, mas uma crise também emrelação a outras instituições tradicionais, como o próprio sindicato. Queriamautonomia e havia, assim, uma preocupação muito grande com aquilo que decidiam: “Oque se decide aqui tem de ser respeitado”. E ninguém vai usar essa luta para outracoisa. Não significa o fato de que essas pessoas não podem participar do movimento ede organizações políticas para além daquele movimento, inclusive de partido; nãosignifica nada disso, jamais isso. Significa que as organizações que estão foradesse movimento têm de respeitar as decisões que são tomadas aqui com todomundo.
Outro elemento que também me chamou muito a atenção, que eu tinha visto já em 2013,no movimento pelo transporte, e que foi expresso, é que o “não tem arrego” dosmeninos aqui expressa esse caráter intransigente, muito intransigente, que é típicodo adolescente, mas que foi transportado para o movimento. É isso e pronto, e nósvamos até o fim. Eu sinceramente nunca tinha visto isso, a não ser em 2013.Geralmente a gente tem uma pauta e a gente negocia, senta com o Governo paradiscutir: “ Então, não dá isso, o que vai dar?”. No entanto, nas ocupações, nãotinha nem com quem dialogar, não tinha nem com quem sentar. É assim, nossa posiçãoestá clara, fora OS, o que nós queremos é isso, o que nós vamos dialogar sobre isso?Então, as vezes que foi chamado ao diálogo era desce e senta com todo mundo e “nósestamos aqui para dizer: ‘Olha, nós só vamos desocupar quando essa pauta foralcançada; se não for, não tem porque a gente conversar’”. Então, assim, sem issotudo que aconteceu nas escolas, não se teria barrado as OSs. A Secretaria Estadualtentou e conseguiu cooptar certos setores organizados tradicionais da juventude queestão vinculados a entidades estudantis. Fez acordo e desocupou algumas escolas, masa intransigência foi o que possibilitou também dizer: “É assim ou não passa, não temOS ou nós vamos continuar”. E foi isso. Desocuparam à força a maioria das escolas,com polícia batendo, ou com reintegração de posse e com a possibilidade imediata dapolícia. Chegou e: “Nós vamos prender todo mundo se não sair”. Desocupou. O que osmeninos fizeram? Ocuparam de novo. Ocuparam a Secretaria da Educação, foram presos.Ocuparam de novo. A intransigência desses meninos foi uma coisa incrível ecaracterística desse movimento. Ele não é um movimento ponderado, razoável e oinimigo não sabia lidar. Não sabe lidar ainda com o movimento que não tem chefe paravocê conversar e não tem também uma razoabilidade para abrir mão de determinadascoisas e ganhar outras, não tem acordo, não tem conchavo. Acho que essas trêscaracterísticas que são colocadas meio que explicitamente por essa molecada, não sãoà toa. O conflito é geracional, sabe, não foi articulado por nenhuma organização, éparte de uma geração que eu não consigo explicar ainda, mas que teve uma experiênciamuito diferente, por exemplo, da minha.
A minha formação de criança foi nos anos 1980 que foram marcados pela consolidaçãodas instituições democráticas. Esse apego profundo a certas conquistas e àinstituição, inclusive com o PT como uma grande referência e esperança, e, mesmo comvárias divergências, com várias forças políticas se articulando a ele. O PTrealmente conseguiu, naquele momento, confluir um conjunto de reorganização dosmovimentos, de vários setores. E essa geração não, ela foi criada com o PT noGoverno, não é o PT oposição, não era o PT de base, era um PT dentro do Governo, umPT que soava para eles, soava para todo mundo lá, para os meninos que eu tive oprazer de participar junto a eles, o PT soava como dominador, corrupto, mas, claro,de uma forma bem distinta do que a direita coloca. O que eu vejo é uma geração quefoi formada e não tem aquele apego às instituições democráticas que os anos 80produziu. Não, a democracia foi um fracasso também para eles, foi um fracassocompleto, eles cresceram já no período democrático e o que eles viram do EstadoDemocrático? Eles não acreditam nessa instituição, não acham democrática. Daí algunsexageros, vários exageros dessa juventude, por exemplo, isso aqui é ditadura, aditadura não acabou, essa democracia é a ditadura e tal. Acho que a gente tem detomar cuidado também porque é muito arriscado abrir mão de determinadas conquistas,especialmente nesse momento. Bom, mas então eu tento analisar dessa forma, como umaquestão geracional. Eu não sei até que ponto essa chave geracional dá conta.
Só para concluir, sei que estou excedendo demais. Tem um outro elemento, uma hipótesetambém, mas que percebo claramente. Desde 2013, com os movimentos pelo transporte emGoiás e no Rio de Janeiro pelo menos, ao contrário do que se construiu, ou seja, aideia de que eram estudantes de classe média, trata-se na verdade de uma juventudeque nós podemos chamar, não sei que tipo de definição, mas uma juventude que temempregos horríveis, uma juventude trabalhadora marginal, um proletariado marginal,que trabalha, por exemplo, no McDonald’s, ou em empresas terceirizadas. Não tememprego fixo, mas que está trabalhando, arruma um bico ali e, depois, sai e, depois,arranja outro; ambulantes, são jovens que tem de se virar para sobreviver e que seviram, são eles que foram para a rua. O movimento foi articulado por estudantes, masque, nas ações, se viu somar a ele essa juventude de um lumpemproletariado, umlúmpen, uma juventude marginal mesmo, que vem dos trabalhos mais precários. Lúmpenno sentido que Marx deu, uma conotação muito negativa, porque ele tem esse caráter,quanto aos desclassificados mesmo, uma juventude bem desclassificada.
A gente teve momentos em Goiânia que foram incríveis. Tinha uma menina de onze anosque era moradora de rua e participava ativamente das manifestações. E a gente teverelato assim, por exemplo, como o de um amigo meu: “Olha, eu parei o carro nosinaleiro e veio um menino me pedir dinheiro. Eu falei que não tinha e ele só viroupra mim e falou assim: ‘Não haverá paz para os ricos enquanto não houver justiçapara os pobres’ e saiu”. O meu amigo ficou extremamente assustado. Respondi que éessa molecada que está na rua, participando. Então, como eu vejo isso? Essajuventude proletarizada, marginalizada que não foi incorporada nos sindicatos porqueos sindicatos incorporaram as frações de classes mais organizadas, maisformalizadas; essa juventude, essa fração de classe está aparecendo para a luta, elaestá se colocando para a luta. Embora alguns estudantes que participaram da lutadiscordem de mim, na minha opinião, houve tensões gravíssimas entre a juventudeuniversitária e essa juventude marginalizada. E essas tensões davam-se num grau decombatividade, no grau de agressão, no grau de reação à ação da Polícia Militar, dereação aos poderes estabelecidos. Enquanto as universidades pediam um pouco mais deponderação, esse pessoal se apresentava com uma carga destrutiva de raiva muito maisforte e, ao mesmo tempo, não respeitava se tentassem barrar essa carga. Quem selevantava, por exemplo, contra a ação, a reação à autodefesa frente aos ataques dapolícia, falava: “Não, a gente não tem de se defender”, ouvia: “Então, movimento comvocê não quero fazer”. O que eu quero dizer é que a esquerda organizada tem muitadificuldade para entender esse processo com essa fração de organização que estáaparecendo para a luta. Setores organizados, assim como a juventude mesmo queautonomista, anarquista, mas vinculadas às universidades, tenderam a não compreensãodisso, ao tentar barrar esses meninos. Não barrar a participação, exatamente, masnão compreender a dinâmica deles. Acho que foi isso o que aconteceu. E quando vocêfaz isso, você deixa de perceber um potencial, um grupo que está se apresentando,que está disposto a uma luta. Assim você desarticula esse grupo ou não abre espaçopara ele, e o movimento deixa de ser algo que ele vai participar. A grande vantagemdisso é o quê? De repente a galera que estava nas torcidas organizadas, os que botamterror dentro das torcidas organizadas, de repente ela vai para a rua agora por umacausa política ou social, pelo transporte. A mesma coisa aconteceu com as escolas.Ele vai defender a escola onde ele trabalha, onde ele estuda e ele está disposto ausar toda a cultura que ele tem, toda formação que ele tem, a vivência que ele tem ea forma como ele reage às coisas, mas de uma forma agora voltada para uma questãopolítica.
Na minha opinião, se a gente não compreender essa dinâmica, não estiver disposto aconstruir junto a essas pessoas que estão aparecendo para a luta, a gente vai ficarsempre só choramingando. Acho que a minha associação à liderança não era porque eutive papel de liderança, mas foi porque o tempo todo me recusei a negar, a negar aimportância ou o papel ou o que essas pessoas estavam querendo dizer quando elasagiam. O meu trabalho, em minha opinião, foi de intelectual, foi de tentar dizer;“Olha, eles estão dizendo alguma coisa nessa forma de agir. Posso, na minhatradição, não concordar ou não estar acostumado a isso, mas não posso fechar a portapara esse tipo de manifestação; preciso compreender e agregar a isso. Como a gentepode se organizar melhor? Como posso somar a isso o que está acontecendo ao invés dejá tentar julgar, condenar? Dizer: “Não é assim, nós sabemos como é o papel da maiorparte das forças organizadas”, tanto que quem passa a ser criminalizado ou aparecercomo liderança ou expressão da luta não é um militante, não é o militante. Então, oque está acontecendo nesse país em que a militância não consegue se expressar? Elaestá com uma percepção de mundo problemática. Essa é a minha opinião. É só ver, quemque se apresentou? Eram os professores não militantes. Eram jornalistas que não sãojornalistas da mídia oficial. Uma juventude que acabou de se formar em jornalismopassou a ser considerada liderança porque eles estavam lá filmando, estavam láouvindo o que os caras faziam e divulgando, criando uma mídia independente. E ondeestava a militância organizada para compreender e participar?
RL: Em 2014, você entrevistou nosso colega aqui do DEHIS/UEPG6, o professor Luis Fernando Cerri. A entrevistafoi publicada na Revista Teoria da História, da UFG, destacando o interesse de ambospor questões de ensino e aprendizagem, Didática da História alemã, Ensino deHistória no Brasil. Na situação agora de entrevistado, como você olha para essestemas hoje, pensando sobretudo nessa experiência recente que você viveu lá emGoiás?
RS: Pois é, depois dessa experiência, ficou claro que o que a genteproduz academicamente é impulsionado mesmo pelas vivências, pelas experiências epelas carências de orientação que nós temos pela vida. Realmente houve uma mudança.Entrei um pouco em crise com a minha pesquisa e com aquilo que eu estava fazendo.Até essa experiência, a minha trajetória dentro da universidade era muito teórica,era na reflexão da Teoria da História. A minha inserção na Didática da História eraestudando os alemães, na produção desse paradigma novo na História na Alemanha quefoi produzido basicamente por teóricos da história. Depois dessa experiência, falei;“Cara, o que eu estou fazendo? O que esses caras dos anos 70 na Alemanha podemrealmente dizer sobre tanta coisa que a gente está vivendo aqui?”. Eu ainda estounesse processo de reelaboração, de redefinição, de o que eu devo pesquisar agora,como vou me reencontrar agora dentro desse campo que é amplo e muito fértil dentroda Didática da História, de quais as questões que preciso desenvolver comopesquisador. Esse é um primeiro questionamento. Enfim, o mundo acadêmico ainda estápautado mesmo, isso é muito mais claro para mim hoje, em uma lógicaeurocêntrica.
Não me tocava disso que vou dizer agora, mas existe realmente uma coisa aí, estudaros alemães me dava muito status: “Olha, o cara lê os alemães” e tal. Isso meincomodava, de alguma forma, porque, como disse, na minha formação nunca mepreocupei com isso. Na verdade, nego muito isso, essa coisa feita pela hierarquia,pela divisão, isso me irrita profundamente. Mas efetivamente, sem perceber, isso medava um certo respeito no mundo acadêmico, uma certa admiração. O fato é que, doponto de vista prático para os problemas dessa juventude, por exemplo, para osproblemas que o professor dentro da escola vive, para os problemas de ataque que agente está vivendo hoje e todas as condições sociais do trabalhador, as nossas, parao crescimento do desemprego do país, ou seja, para todo o contexto que estamosvivendo, não contribui praticamente em nada ler os alemães dos anos 70. Então, nãome interessa mais. Encerrei a pesquisa com os teóricos que eu estudava na Alemanha,não estudo mais esses teóricos. Estou reformulando as questões de pesquisa. Háalgumas contribuições? Há. Uma delas é entender, como eu estava analisando a décadade 1970, entender como eles tiveram que, no final dos anos 60 e 70, responder aproblemas que eles vivenciaram. Um problema fundamental era o problema do nazismo.Eles viveram um trauma que precisaram resolver e desempenharam um papel fundamentalquando tiveram que tornar a história relevante para a nova sociedade que nascedepois do nazismo.
Temos os nossos holocaustos e temos de resolver os nossos holocaustos. E temosholocaustos profundos no país, e isso cada vez é mais claro. O problema dacolonização que a gente viveu; a escravidão é gritante na formação do povobrasileiro, de quem nós somos, dos problemas de enfrentamento que temos ainda hoje;o problema da desigualdade em todos os aspectos, tanto econômicos quanto outrasformas. Por exemplo, a questão de gênero se dá de um modo bem específico no país,tem a ver com uma formação, de um modo como uma família europeia é estabelecida, émuito diferente. Sabe, isso é muito diferente, uma tradição europeia que constróiuma família de um modo e o modo como a família se estabelece aqui no Brasil, comoimposição. Fico impressionado, por exemplo, com o modo como a gente se relaciona como Estado mesmo. Como o Estado é sempre uma imposição para o Brasil, é formado defora, imposto mesmo, com a lei. Veja, por que não pode pegar isso aqui? A gente nãopode usar isso aqui? Porque se você usar eu corto a sua mão. É assim que se aprendeque é errado e respeita a propriedade. E assim se aprende a ter duas vidas, uma carapública e uma cara individual, privada, o íntimo, a sua religiosidade e areligiosidade que é aceita oficialmente. O que quero dizer é que temos um processoque temos de resolver, os nossos próprios holocaustos. Estou chamando de holocausto,sei que é pouco acadêmico e pouco criterioso usar esse termo, mas acho importantepoliticamente porque temos uma construção narrativa do holocausto que vemnegativamente da experiência histórica alemã. Enquanto os nossos próprios traumasconstantemente são colocados com menos negatividade, como a própria Ditadura Militarou como a própria experiência da escravidão. Estou preocupado com isso. Acho que aDidática da História pode contribuir? Pode. Como? Ela percebe que a grande questão éa própria Didática da História. O que a Didática da História fala? A história tem deser relevante para a vida das pessoas. Então, se questiono o passado, se questionoas experiências humanas no tempo, é por problemas que realmente as pessoas precisamou querem resolver. E, dentre essas questões, estão questões de emancipação,questões de emancipação da dominação. Acho que a Didática ajuda nisso. Agora osobjetos... Então, quero usar alguma coisa bem próxima da nossa realidade agora.Quero estudar a realidade brasileira. Algumas pessoas me colocaram várias questões.Falam certo, gosto da sua fala, mas os seus exemplos são todos europeus. Tenta darexemplos com os indígenas aqui, usa os mitos indígenas para falar do que você estáfalando. Faz só esse esforço. Que difícil! Que difícil!
RL: Somos colonizados…
RS: Somos colonizados. E o melhor, porque se eu for usar esse exemplo,esse cara que me fez essa provocação, foi um professor, Geraldo, lá de Goiânia. Eledizia: “Se você fizer esse exercício, você vai ver que, na verdade, não é só usar osexemplos, vai começar a pensar de modo diferente”.
AIC: Vai reelaborar.
RS: Reelaborar a sua forma de percepção.
RP: Como você já apontou na sua fala, você faz parte de um grupo deprofessores ligados ao Ensino e Teoria da História e da História do Brasil que temrecuperado a reflexão sobre os historicistas alemães. Olhando para o panorama atualdos enfrentamentos na sociedade e na universidade brasileira, o que você entende quea leitura desses teóricos historicistas pode inspirar nos nossos embates atuais?Você já delineou anteriormente uma resposta a essa questão, mas se você puderaprofundar um pouco mais, agradecemos.
RS: Então, acho que na resposta passada já coloquei a questão de que háum limite muito grande na contribuição por conta dessa experiência. O contexto a queeles estão respondendo. Agora, existe uma tradição historicista que acho que temalgo a contribuir para esse momento que a gente está vivendo. Estou querendo dizerque a gente não pode também fechar com uma postura do tipo: “Ah, então não leio maisisso, isso não acho que é importante ler”. Acho que o nosso objeto tem de estarpreocupado com os problemas que nós vivemos, que vivenciamos aqui, agora, nessemomento, na realidade que a gente vive e que é muito diferente.
Existe uma tradição que pode ser importante. Veja, especialmente para pensar apolarização na política atual. Na minha opinião, temos de estar atentos aosdiscursos produzidos hoje, inclusive a reformulação sobre o passado humano, esserevisionismo da história humana que tenta positivar a Ditadura Militar, tentapositivar, criar e destruir todas as referências dos movimentos atuais, por exemplo,o Zumbi, o Che Guevara. Se você quer destruir o movimento dos negros, então vamosdestruir os seus líderes, seus heróis históricos e tudo mais. Existe um processo derevisão da história profundo, que tem conseguido muito êxito. Isso me preocupa muitoe acho que essa formação, essa discussão dos historicistas me ajudou muito a pensaro que vou dizer agora. Muitas vezes a nossa resposta a isso, a esse movimento, émantendo também uma tradição que a história crítica criou no Brasil, mas que tambémé uma história frágil, uma história de heróis, uma história muito mitológica porparte da esquerda. E acho que o historicismo contribuiu muito foi na tradição, naideia do método, da crítica das fontes. Pensar como eu produzo uma afirmação sobre opassado. Não é de qualquer jeito. E isso serve tanto para as memórias de esquerdaquanto de direita. Acho que o historiador hoje é formado para isso. Ele pode ajudaras pessoas. Ele deve contribuir nesse debate público de como produzir afirmaçõessobre o passado de forma mais complexa. E acho que o historicismo deixou algumascontribuições, sobretudo, à crítica das fontes. Uma preocupação então, algo que nãoconsigo abandonar completamente, e eu quero dizer isso, eu não abandonocompletamente essa formação metódica. Um exemplo, a ideia de verdade, que é muitocombatida pelos historiadores e com muita razão. Mas aí os historicistas trouxeramalguma concepção de verdade que não é tão tosca como disseram que eles falaram. Nãoé assim. O documento diz a realidade e eu reproduzo o documento. Pelo contrário, oscaras sabiam que existiam um processo de imaginação, que havia uma narrativaconstruída e que o elemento estético atua. No entanto, eles estavam preocupados emdizer o seguinte: “Olha, existe”, não é qualquer coisa do passado que eu digo que éverdadeira, a gente tem indícios, a gente tem fontes, a gente tem um modo de trataressas fontes para dizer: “Olha, eu posso dizer que isso aconteceu e posso dizer queisso não aconteceu”, não se pode dizer qualquer coisa sobre o passado.
Então, o meu medo do relativismo, que o historicismo na minha opinião ajuda aresolver, é o fato de que, se a história for ponto de vista, então tudo é aceito,inclusive a narrativa tosca que esses caras estão trazendo para a história. Na minhaopinião, o método ainda é importante. Nós falamos, espera aí, que fonte? Quaisfontes? Como você está lendo essas fontes? Como você compara com outras fontes? Quetipo de crítica de documento você faz? Essa fonte realmente é verdadeira? Ainda maisno momento de hoje. Ela tem credibilidade ou ela foi fabricada em outro momento paradizer que a Dilma fez isso ou que o Zumbi fez aquilo ou que o Che Guevara fez aquilooutro? Então, acho que isso é uma contribuição. O limite é claro. O limite dohistoricismo é até político. O historicismo contribuiu para a formação do Estadoalemão. Produziu uma narrativa histórica que buscava legitimação do Estado alemão.Inclusive muitos historicistas atuaram para a produção desse Estado alemão. É obvioque essa ideia de neutralidade, a história como ela realmente é, não existe nem paraeles. Acho que a gente tem de tentar trazer as várias contribuições para tentarproduzir algo mais complexo, algo melhor que responda as nossas necessidades.
RL: Acho que já estamos indo pra uma última questão. E, na verdade, estaúltima questão é mais um espaço que a gente sempre gosta de abrir porque, quando agente faz uma entrevista, de alguma maneira, os entrevistadores jogam essesdispositivos temáticos para o entrevistado trabalhar. Entretanto, às vezes, oentrevistado também tem vontade de colocar coisas que não foram perguntadas, nãoforam citadas e não foram mencionadas. Então, para finalizar, a gente gosta dedeixar a palavra livre. O que a gente não te perguntou, o que a gente não mencionouaqui, o que você poderia ou gostaria de falar, de contar, de registrar que não foitocado?
RS: Bom, na verdade, o que eu queria mais é perguntar, poder ter umespaço para poder perguntar [risos]. Então, já que é um espaço meu, eu gostaria deperguntar para vocês: o que assim mais preocupa vocês? Foram-me elencadas váriasquestões. Com o que, na verdade, vocês estão mais preocupados, querendo saber,porque eu vou falando aqui, falando, falando, mas o tempo inteiro me dá esseincômodo. Algo do diálogo mesmo. Qual é a preocupação de vocês? Por que essasperguntas que vocês perguntaram? São tantas temáticas, né? O que mais incomodavocês, com o que vocês estão mais preocupados? Estou fazendo perguntas difíceisiguais vocês fizeram pra mim [risos].
AIC: Primeiro, a ideia de a gente conversar com você e fazer essaentrevista era saber o que você pensa sobre os temas que foram abordados. Contudo,ao longo das suas respostas, e isso foi muito interessante, você se desconstruiupara mim, ao menos, a imagem que eu tinha antes. Porque eu conhecia o Rafael que vemaqui, que dialoga e é muito próximo do Cerri. E, de repente, o Rafael aparece namídia como uma referência naquele momento das ocupações. Depois soubemos que vocêhavia sido preso. E foi um bururu aqui nessa universidade porque você, como eudisse, é muito próximo. Que salto foi esse, que salto é esse daquele rapaz que vinhaaqui falar sobre Didática da História e, de repente, está lá, super envolvido comesse turbilhão de fenômenos sociais que estão acontecendo no país. Então, acho queessa foi uma primeira questão para a gente decidir conversar com você; estávamoscuriosos para saber quem é o Rafael. No entanto, a gente queria ir além da discussãoteórica, porque a discussão teórica está nos seus textos, na sua produçãohistoriográfica. Então, a gente queria conhecer exatamente essa pessoa que semostrou aqui, com as suas opiniões, as suas certezas e, sobretudo, com todos os seusquestionamentos.
RS: Certo.
RP: Bom, o lugar que eu me encontro hoje é o lugar da militante domovimento docente e em um momento muito difícil. Então o que me atraiu napossibilidade de discutir com você é justamente essa cisão que parece que a genteopera entre estar na luta e continuar sendo acadêmico e continuar produzindo, atépor uma questão física de tempo e de espaço. A luta te consome e você não tem tempo.Uma das perguntas que fiz para você é uma questão que eu me coloco porque souprofessora de teoria há muitos anos e tenho certa paixão pelos historicistas.Entretanto, pergunto-me, hoje, para que serve tudo o que eu sei no nível deenfrentamento que estou tendo de fazer. A universidade que eu conheci estádesaparecendo e para que serve tudo o que nós construímos, se nós não conseguimosfazer a frente necessária nesse processo de destruição. Então, é meio angustiante eeu achei muito bacana essa sua fala de que realmente o que a gente aprendeu, o que agente ensina, mas daí não é só a discussão do que a gente aprende, mas também do quea gente ensina, ela vai operacionalizar e vai servir para algumas coisas e paraoutras não. E a gente tem de achar um jeito de produzir conhecimentos novos e usar oque a gente já sabe. Quando o Robson e a Ale falaram vamos entrevistar o RafaelSaddi, eu falei: “ Vamos que eu quero mesmo fazer uma pergunta de teoria da históriapara ele”, mas era esse embricamento mesmo. O que tem esses caras a nos ensinar e,na verdade, o que nós temos a ensinar para essa juventude, como você colocou aqui?São questões importantes e eu adorei.
RS: Legal.
RL: Acho que eu vou ter de falar também [risos]. É a primeira vez quecomo entrevistador eu sou entrevistado [risos].
RP: É a subversão do processo, hein?! Estão anarquizando o negócioaqui!
RL: Você veio anarquizar a nossa vida, no bom sentido.
RP: Como que é que a gente vai publicar essa entrevista depois?
RL: Nós vamos ter de reinventar o conceito de entrevista coletiva.Assim, várias coisas, eu propus inicialmente ao Cerri, à Alessandra e à Rosangelasobre essa entrevista por várias razões. Vamos começar pelas questões, digamos, queme tocam muito profundamente. Se há uma coisa que eu observo no mundo de hoje e tema ver um pouco com aquilo que você expôs, é essa espécie de impermeabilidadegeracional. E como historiador que gosta muito de entrevista, eu gosto muito daHistória Oral, gosto muito do diálogo, tenho observado muito que as entrevistascriam um vácuo, um momento de olhar no olho e se colocar numa dinâmica aprendiz deescutar a formulação do outro. Eu me sinto hoje talvez moldado por essa geração.Prefiro muito mais ouvir a sua fala do que ler o seu texto, porque a energia dareflexão falada, televisionada, apresentada, parece-me que toca mais. Nós vamosdepois, de fato, publicar a sua entrevista em texto, mas como entrevistador e quaseobsessivamente apaixonado pela entrevista, pela possibilidade que a entrevistatem.
Então, ouvir você formulando sem, de alguma forma, os esquadros da nossa formação émuito interessante, porque, quando a gente se propõe a trabalhar um problema numartigo ou num texto ou num paper para Congresso, nosso olhar estáali, estou olhando para o estado da arte, estou vendo quem que vai me escutar, vouver quem que vai me ler. Entretanto, numa entrevista, nós somos pegos peloimproviso, na entrevista nós somos pegos por uma situação de que a nossa formulaçãotem de vir de algum lugar que a gente desconhece e que esse lugar é o lugar de sereconstruir. Na fala, na produção da memória e da experiência, a gente sereconstrói. Como um admirador também, no sentido de acompanhar as suas postagens nainternet, de lê-los, de perceber a construção de sentido que você faz nesse diálogocom o contemporâneo. E aí evidentemente que propor uma entrevista com você era ouvirtête-à-tête, como uma entrevista mesmo, né? Ontem os estudantes do DCE7 perguntaram-me se a gente podia abrir para queeles pudessem assistir a esta entrevista. Conversei primeiro com a Alessandra, econcordamos que numa entrevista nós criamos esse vácuo, esse momento de olhar noolho da outra pessoa, essa coisa um pouco mais pessoal, mais personalizada. Então euacho que quando a gente resolveu te entrevistar, e no meu caso isso muito, queria teouvir mesmo. Quer dizer, como é formular sem, de alguma forma, as regras do campo,com mais liberdade. Ainda que trabalhando com um europeu constantemente, RaymondWillians, que é um autor que eu gosto muito, e todos os dilemas que também é ver apartir de um olhar europeu, de uns galês, digamos assim, tenho paixão pelos sentidosalternativos como de uma realidade adversa, de algo que não existe e passa aexistir. Isso do ponto de vista, seja do mundo, da vida, como nós falamos aqui, e aAle acentua como que uma entrevista pode ser um ato criativo e alternativo. Entãodar registro, dar forma, dar existência a uma memória dessa experiência, cativou-mebastante e é, por isso, que a gente provocou isso.
RS: Maravilha.
AIC: É isso? Mais alguma pergunta, professor Rafael? [risos].
RS: Não, estou satisfeito, estou muito satisfeito. Eu gostei dasrespostas [risos].
AIC: Nós agradecemos.
RS: Não, é eu que agradeço. E realmente vocês têm razão, eu jamaisimaginaria o que sairia daqui.
RP: Mas você ficou à vontade, né?
RS: Fiquei muito à vontade, muito mesmo.
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Author
Alessandra Izabel de Carvalho
Universidade Estadual de Ponta
Grossa, Brazil
Author
Robson Laverdi
Universidade Estadual de Ponta
Grossa, Brazil
Author
Rosangela Maria Silva Petuba
Universidade Estadual de Ponta
Grossa, Brazil
Author
Danusa de Lourdes Guimarães da Silva
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná, Brazil