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Mon, 10 May 2021 in Praxis educativa
Fazer experiência pela professora dos anos iniciais do EnsinoFundamental no contexto das atuais políticas educacionais
Resumo
Neste artigo, apresenta-se uma discussão sobre as condições de que dispõemprofessoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental para fazerexperiência no espaço escolar, fragilizado por políticasconservadoras, e sobre o desenvolver profissional por meio dessa experiência.Pressupostos de John Dewey e Jorge Larrosa fornecem apoio para a perspectivacompreensiva que identifica a formação docente como um processo sucessivo defazer experiência. Os procedimentos de coleta, análise einterpretação de dados aproximam-se dos princípios da entrevistacompreensiva, proposta por Kaufmann. Foram realizadas 13entrevistas com professoras da rede pública de ensino. Os resultados apontam ocenário de docência dessas professoras marcado pelo sentimento de luta peladignidade do seu trabalho: ao mesmo tempo que pressões e restriçõescaracterísticas do espaço escolar em que atuam as incomodam, também desvelamoportunidades para se afirmarem profissionalmente.
Main Text
Introdução
Em pesquisa realizada com professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental,constatou-se que boa parte dos saberes profissionais dessas docentes está encravadana prática, no chão da escola; entretanto, ao adentrar a prática pedagógica e ocotidiano escolar vivenciado por elas, tempo em que acontecimentos, cenas ecircunstâncias vêm à tona em seus relatos, um cenário pouco propício ao processoformativo docente se descortina (BATISTA,2017). Nessa direção, algumas políticas públicas educacionais da últimadécada, das quais podemos destacar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e asavaliações em larga escala (tais como o Sistema Nacional de Avaliação da EducaçãoBásica - SAEB, a Prova Brasil e a Provinha Brasil), marcadas pelo nítidotensionamento entre as crescentes prescrições que invadem as escolas de EducaçãoBásica, o trabalho e a formação docentes impõem-se como pano de fundo para adiscussão aqui estabelecida.
Decorrentes dos avanços tecnológicos e científicos, da globalização, das novasconfigurações do mundo do trabalho e das relações sociais, a sociedade contemporâneavem passando por profundas transformações, que fazem emergir uma série de novasdemandas para a escola e para todos os que fazem parte dela. Outros modos deformação, de atuação e de interação passam a ser exigidos na/pela sociedade. Asregras políticas e econômicas, derivadas do modo como o atual sistema capitalista seestrutura globalmente e gestadas nos grandes organismos internacionais com oobjetivo de ditar a direção que os países devem seguir para não ficarem à deriva daeconomia global, trazem decorrências para as políticas internas (ALMEIDA, 2008). Nesse diapasão, a escola éatingida pela onda reformista, que busca adequá-la às necessidades hegemônicas.
De acordo com Nörnberg (2020), nas últimastrês décadas, vimos observando gradativa mercantilização da educação, inserida naspolíticas educacionais reformistas. Para a autora, ao longo desse tempo, a formaçãode professores passou a ser alvo preferencial dessas políticas. Pacotes didáticos,treinamento docente, currículos padronizados e controle das práticas de ensino pormeio de avaliações de larga escala são alguns mecanismos pelos quais as políticasconservadoras fazem uso, sob o argumento de que são necessários para elevar aqualidade da educação. No entanto, de acordo com a autora, quando essas mesmaspolíticas conservadoras não alcançam as metas projetadas, não se faz uma avaliaçãocrítica sobre elas, mas responsabilizam e culpabilizam os docentes pelo fracassodessas políticas.
Preocupados com essa lógica de mercado que tem invadido a educação, autores comoBall (2002, 2011), Freitas, L. C. (2012) e Ravitch(2011) alertam para efeitos nefastos que o controle sobre a escola e seusatores têm acarretado para a educação e para o trabalho do professor. Ball (2002)argumenta que as tecnologias políticas da reforma da educação nãosão simplesmente veículos para a mudança estrutural das organizações, mas são tambémmecanismos para “reformar” professores e para mudar o que significa ser professor.As análises de Freitas, L. C. (2012) estruturam-se em torno da ideia de que oprincípio de mercado vigente no mundo contemporâneo é pouco produtivo para amelhoria da qualidade da educação, pois não é seu interesse promover uma reformaeducacional na qual a qualidade prevaleça sobre os aspectos administrativos ereguladores. Ravitch (2011), por sua vez, denuncia os resultados das reformas demercado no sistema escolar dos Estados Unidos nas últimas décadas, afirmando queelas contribuíram para agravar a crise da educação pública americana e corromper osvalores educativos. De forma geral, esses estudos assinalam que o princípio domercado e a regulação do governo são fortes entraves ao desenvolvimento doconhecimento profissional, levando, inevitavelmente, ao enfraquecimento daprofissionalização do magistério.
As análises aqui empreendidas buscam articular, pelo viés daexperiência, o processo contínuo de formação docente deprofessores dos anos iniciais do Ensino Fundamental e o contexto mais prescritivocom que eles se deparam nas escolas em que atuam. Pressupostos teóricos de Dewey eLarrosa fornecem apoio para a perspectiva compreensiva que, por sua vez, identificaa formação docente como um processo: a) de reconstrução e de reorganização daexperiência que aumenta o sentido desta e a aptidão do professor para dirigir ocurso das experiências posteriores (DEWEY,1971, 1975); b) relacionado às possibilidades de atribuição de sentido oude falta de sentido àquilo que lhe acontece (LARROSA, 2011, 2014). Com perspectivas próprias, esses autoresproblematizam o papel formativo da experiência, discorrendo sobre seus elementospossibilitadores e impossibilitadores.
Larrosa (2002) provoca-nos a pensar aexperiência do ponto de vista da formação e da transformação da subjetividade, emque o sujeito da experiência é “[...] um espaço onde têm lugar os acontecimentos”(LARROSA, 2002, p. 24). Ele é visto paraalém de um agente ativo (aquele que pratica a ação), mas, sobretudo, como alguém quesofreu uma ação (o sujeito passional, receptivo e aberto), todavia sem serconsiderado passivo. Para Larrosa (2011, p. 22), “[...] a experiência não pode sercaptada desde a lógica da ação, valendo-se de uma reflexão do sujeito sobre si mesmocomo sujeito agente, mas desde uma lógica da paixão, desde uma reflexão do sujeitosobre si mesmo como sujeito passional”. Nesse ponto, Larrosa (2011) quer chamaratenção para o princípio de receptividade, de abertura; enfim, para esseprincípio de paixão que é o que faz com que se descubra, naexperiência, a própria fragilidade, aquilo que escapa ao nosso saber e ao nossopoder. Contudo, Dewey (1971) diz-nos que aexperiência se dá a partir de dois fatores combinados entre si: condições objetivase condições internas. “Uma experiência é sempre o que é por causa de uma transaçãoacontecendo entre um indivíduo e o que, no momento, constitui seu ambiente” (DEWEY, 1971, p. 44-45). Na visão de Dewey, aexperiência depende tanto do desejo, da atitude e do propósito de cada um (condiçõesinternas) quanto das circunstâncias ambientais (condições objetivas). Nesse sentido,a experiência não é algo que se passa apenas no interior do indivíduo, em umaperspectiva solipsista, mas é permeada inteiramente pelaalteridade, isto é, ocorre a partir da relação com elementosexteriores ao indivíduo.
Desse quadro teórico, pode-se depreender que alguns elementos conferem certadistinção entre as compreensões de Dewey(1971) e de Larrosa (2002, 2011)acerca do fazer experiência pelo sujeito. Enquanto, para Dewey, a experiência ocorrea partir da combinação de condições internas e objetivas do sujeito, em um movimentode interação entre ambas; para Larrosa, o fazer experiência tanto pode implicar aação e o fazer algo, quanto o ser interpelado, o padecer e o sofrer por algo, nãorequisitando, necessariamente, condições internas a priori.
Importa sublinharmos premissas comuns a esses dois autores: para Dewey e paraLarrosa, uma experiência educativa subentende mudança na condição do sujeito, e amudança somente terá significação quando o sujeito refletir sobre as consequênciasda experiência, sobre aquilo que ele fez com a experiência e sobre aquilo que aexperiência fez com ele. Na visão desses autores, o que mais importa é a qualidadeda experiência que se tem, uma experiência que, relacionada à postura de reflexão,tende a resultar em algum tipo de saber que permitirá ao sujeito uma melhorapreensão da realidade que o circunda.
Trazendo para o universo da formação de professores, trabalhamos, neste estudo, com anoção de que a produção de experiências (o fazer experiência) pelosprofessores acontece a partir da combinação de condições internas (capacidade dereflexão, abertura e interesse) e de condições objetivas existentes no ambienteescolar (recursos institucionais, equipe gestora, legislação, relação entre ospares, espaços de trocas), sem desconsiderar, contudo, as possibilidades doacontecimento da experiência a partir do princípio da paixão.
Com efeito, este artigo propõe uma aproximação a tais condições, a fim de identificaraspectos relacionados às possibilidades e às impossibilidades para o acontecimentode experiências na prática pedagógica de professores. Em consonância com os autorescom os quais dialogamos para desenvolver a noção de experiência, vale esclarecerque, quando utilizamos a expressão fazer experiência, não nosreferimos apenas à postura ativa dos sujeitos de fazê-la acontecer, mas também aoato de sofrer e padecer aquilo que os alcança. Neste estudo, o fazerexperiência estabelece-se relacionado ao exercício da docência e àprópria autonomia docente.
Assinale-se que, no material empírico, ganham espaço as condições ambientais quemarcam o dia a dia dos professores nas escolas, o que nos leva a compreender taiscondições como dimensão destacada, associada ao processo de formação e de construçãode seus saberes docentes. Referimo-nos a condições relacionadas à estrutura quecompõe o ambiente escolar, capaz de inibir ou potencializar a capacidade dosdocentes de fazer experiências. Vale destacar que, na seara das condições ambientaisque têm caracterizado o espaço escolar, é visível a percepção de um processo deburocratização dos sistemas educacionais, que atinge a formação e o trabalho doprofessor, em muito devido à crescente efetivação de políticas na prática.
Com base no quadro apresentado, os questionamentos a seguir se impõem e sãobalizadores da discussão que propomos: quais são as condições de que os professoresdos anos iniciais dispõem no espaço escolar para fazer experiências e aprender aprofissão por meio delas? Até que ponto essas condições afetam o seu trabalho e assuas possibilidades de aprender pela experiência?
Metodologia
Este estudo é de natureza qualitativa, uma vez que parte do pressuposto de que aspessoas agem em função de suas crenças, suas percepções, seus sentimentos e seusvalores, e que seus comportamentos seguem a ordenação de um sentido, de umsignificado que não se dá a conhecer de modo imediato, necessitando ser desvelado(ALVES, 1991).
Os procedimentos de coleta, análise e interpretação dos dados empíricos buscam umaaproximação com os princípios da entrevista compreensiva (KAUFMANN, 2013), que procura o estreitamentoentre a construção da teoria e a pesquisa empírica, no sentido de evitar que opesquisador caia na armadilha do dualismo entre teoria e empiria. O propósito deKaufmann (2013) é que o método possacolocar em evidência a construção de uma teoria a partir dos dados advindos do campoempírico, movimento no qual o trabalho de campo deixa de ser tomado como merainstância de verificação da teoria para se tornar lugar de seu nascedouro, como bemassinalaram Glaser e Strauss (1967) em suaobra clássica The discovery of grounded theory. Tendo em vista essepropósito, o autor põe em xeque alguns pressupostos estabelecidos no âmbitocientífico, como o da impessoalidade e da formalidade na situação de entrevista,sem, contudo, deixar de apontar para a importância de que o pesquisador fique atentoem honrar o método e suas diretrizes.
Kaufmann (2013) defende que, nas interaçõesem campo, os dados mais profundos são revelados em situações de maior intensidade,mas, especialmente, de maior naturalidade. Assim, o tom que se busca durante arealização das entrevistas se aproxima mais de uma conversa entre iguais do que, porexemplo, de um questionário administrado de cima para baixo. Na medida em que oestilo interativo vai ganhando corpo, a conversa em torno do tema vai fluindo. Éimportante considerar, ainda, que, na entrevista compreensiva, o entrevistadorprecisa estar ativamente envolvido nas questões para provocar o envolvimento doentrevistado.
Para adentrar as questões que se encontram em tela, procuramos assegurar ao estudo acomposição de uma amostra intencional de docentes do magistério do primeiro segmentodo Ensino Fundamental. Com efeito, localizamos professores cujas trajetórias deformação e de atuação profissionais correspondessem à imagem de docentescomprometidos com a educação e com o processo de ensino e de aprendizagem, exitososem suas práticas pedagógicas e reconhecidos como tais no espaço escolar, sobretudopelos seus pares profissionais.
Foram feitas entrevistas em profundidade com 13 professoras dos anos iniciais doEnsino Fundamental, em uma amostra constituída integralmente por mulheres. Todasformadas em Pedagogia, com atuação mínima de quatro anos nesse segmento de ensino evinculadas à rede pública de ensino (Federal, Estadual e Municipal) . Por essemotivo, quando fizermos referência aos sujeitos participantes da pesquisa, a palavra“professor” será flexionada para o seu feminino.
Este artigo é produto da pesquisa desenvolvida pela primeira autora em seu trabalhode tese (BATISTA, 2017), sob orientação dasegunda autora, professora Menga Lüdke. O projeto não foi submetido a um Comitê deÉtica, por não ser exigência do Programa de Pós-Graduação na época. Aodesenvolvermos a pesquisa, procuramos considerar atentamente os princípios éticosque norteiam o trabalho que envolve a participação de seres humanos. As convidadas aparticipar do estudo eram professoras com longa experiência de trabalho com os anosiniciais do Ensino Fundamental, tema central da pesquisa. Sua participaçãoconsistiria basicamente em conceder entrevistas sobre sua experiência, que seriamgravadas caso elas autorizassem. As informações obtidas com as entrevistas seriamanalisadas ao longo dos trabalhos da pesquisa e, eventualmente, alguns de seustrechos poderiam estar presentes em futuras publicações, como ilustrações de pontosindicados pelas análises. Asseguramos a todas as convidadas que guardaríamos estritosigilo em relação às participantes da pesquisa e às instituições nas quaistrabalhavam. Todas concordaram com a gravação das entrevistas e com a publicaçãoeventual de alguns trechos e aceitaram nosso convite, o que consistiu em fatorfundamental para o bom desenvolvimento do estudo.
As professoras entrevistadas são identificadas, na sequência do trabalho, por nomesde flores. Essa foi, talvez, a forma que encontramos de prestar uma homenagem aessas professoras, protagonistas pela qualidade das reflexões que nos proporcionarame que, esperamos, tenham sido conduzidas à altura neste estudo. Compartilhar suashistórias conferiu-nos o valor de desenvolver uma pesquisa construída a partir davoz, do sentimento e do agir do professor da escola pública.
O contexto das políticas educacionais e a autonomia docente
Ao longo das entrevistas, foi possível compreender que o fazerexperiência pelas professoras não se circunscreve apenas internamente(reflexão, abertura e interesse), mas é dependente e fortemente influenciado pelascondições objetivas existentes. Importa esclarecer que a expressão fazerexperiência por nós adotada não se refere apenas à postura ativa dasprofessoras de fazê-la acontecer, mas também ao ato de sofrer e padecer aquilo queas alcança.
Encontramos no depoimento a seguir um “pano de fundo” que indica a relevância dosquestionamentos em tela.
Percebemos que o “sistema” funciona de modo a inculcar a posição de subordinação doprofessor em relação às instâncias superiores, de tal forma que a força e aconfiança necessárias para que ele possa “nadar contra a correnteza” parecem ficarneutralizadas. Gostaríamos de lembrar aqui o bordão de Florestan Fernandes, um dosmais importantes sociólogos brasileiros que completaria 100 anos em 2020: “contra asideias da força, a força das ideias”. O quadro em tela remete a Ball (2002) ao afirmar que as mudanças ocorridasnas escolas interferem na subjetividade do professor e no significado do que é serprofessor, isto é, a reforma da educação também “reforma” o professor. Nessediapasão, Oliveira (2020) chama atenção paraestratégias que estão no bojo das políticas conservadoras que acenam, ao fim e aocabo, para a naturalização de certos comportamentos, atitudes e valores, tornandoaceitável aquilo que não seria aceitável.
Curiosamente, para a Professora Verbena, o grande papel da prática pedagógica docenteé resistir a imposições externas, quando compreendidas como impeditivas aodesenvolvimento do “bom trabalho”, na expressão de Lantheaume (2012, p. 375). Segundo a autora, a astúcia do professormobiliza a engenhosidade para que ele faça um bom trabalho, surgindo como umacapacidade pessoal para encontrar soluções originais para problemas novos.
Esse quadro remete à necessidade de conhecer-se mais de perto o contexto das escolasem que atuam as professoras entrevistadas e as estratégias de que dispõem ou queprecisariam dispor para que possam seguir em frente, fazendo experiências eaprendendo a profissão. Temos no depoimento da Professora Dália elementos queretratam bem a dinâmica interna da escola de Educação Básica, marcada, sobretudo,por algumas mudanças que têm afetado o trabalho do professor:
A Professora Dália discorre sobre o atual contexto prescritivo que tem assolado asescolas, enfatizando alguns de seus efeitos perversos, como a exclusão dos alunosque mais precisam e o “ataque” à autonomia do professor e ao currículo. Ela afirmaque o ranqueamento dos estabelecimentos escolares e as avaliações em largaescala têm acontecido de maneira a excluir quem mais precisa.Expressa-se, assim, a postura crítica da professora frente ao contexto prescritivoao qual o seu trabalho está submetido. Para além de afetar o professor, Dália mostraque essas medidas afetam os alunos que mais precisam. Disso decorre certodistanciamento entre as medidas (ranqueamento e avaliações em larga escala) e oprincípio da equidade (entendido como participação e atenção prioritária aos gruposexcluídos). Parece paradoxal, pois, de acordo com Gajardo (2000), a equidade é um conceito quase sempre presente nodesenho de políticas e de programas que pretendem assumir as atividades de reformaeducativa como tarefas estratégicas.
Como ficam então os alunos que mais necessitam? A preocupação da Professora Dáliamantém forte ligação com o que Freitas, L. C.(2012) denomina “corrida para o centro”. Segundo o autor, as avaliaçõesem larga escala, a divulgação pública do desempenho da escola, as recompensas e assanções são capazes de gerar a “corrida para o centro” em termos de desempenhodiscente, prejudicando os extremos da curva. Isso porque os professores tendem a seconcentrar naqueles alunos que estão mais próximos da média e, com isso, aqueles comalto desempenho e com baixo desempenho ficam à deriva (FREITAS, L. C., 2012).
O “ataque à autonomia do professor e ao currículo”, expresso no depoimento daProfessora Dália, é evidenciado quando o sistema educacional brasileiro passa aperseguir padrões de desempenho e patamares a serem alcançados, balizando aqualidade da educação por indicadores externos a ela. Segundo Freitas, L. C. (2012), quando isso vira realidade, é necessárioque seja exercido controle sobre os conteúdos a serem ensinados, sobre os resultadosa serem obtidos e, como consequência, sobre a “aula” do professor. O resultadodisso? Drástico. Com a capacidade de decisão afetada e a competência profissionalposta em xeque, o professor é levado a realizar atividades prescritas, contribuindopara que possa ser identificado mais como técnico do que como intelectual daeducação. Ao afirmar que hoje os professores não trabalham o currículo deforma adaptada à realidade da sala de aula, mas a partir das matrizes geradoraspara que o conteúdo seja dado e a escola tenha um bom posicionamento noIDEB , a Professora Dália coloca-nos diante de uma ambiência queintimida o processo de formação (docente e discente) baseado na/pelaexperiência.
As reformas educacionais em curso no Brasil parecem ilustrar um cenário preocupante.As avaliações em larga escala, os Projetos de Lei que buscam instituir a “Escola SemPartido”, a Medida Provisória que impõe a reforma do Ensino Médio (n° 746/2016) e adefinição de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) são alguns exemplos. Apesarda variedade de vertentes e de reformas, as avaliações em larga escala ocuparamlugar de destaque nas entrevistas. Referimo-nos a algumas voltadas para os anosiniciais do Ensino Fundamental, como o Sistema Nacional de Avaliação da EducaçãoBásica (SAEB), a Prova Brasil e a Provinha Brasil, além de outras que estão naesteira das iniciativas advindas do âmbito das Secretarias de Educação (Municipal eEstadual).
O SAEB e a Prova Brasil são avaliações desenvolvidas pelo INEP. O SAEB, aplicado pelaprimeira vez em 1990, foi a primeira iniciativa brasileira, em escala nacional, paradiagnosticar o sistema educacional brasileiro em profundidade. A Prova Brasil,criada em 2005 a partir da necessidade de se tornar a avaliação mais detalhada, demodo a oferecer dados para cada município e escola participante, funciona comocomplemento à avaliação já feita pelo SAEB. Ambas as avaliações focam na qualidadedo ensino oferecido pelo sistema educacional brasileiro a partir de testespadronizados e questionários socioeconômicos. São aplicados no 5º e 9º anos doEnsino Fundamental, com o objetivo de avaliar as habilidades em Língua Portuguesa(foco em leitura) e em Matemática (foco na resolução de problemas). No questionáriosocioeconômico, os estudantes (e seus responsáveis) fornecem informações sobrefatores de contexto que podem estar associados ao desempenho (BRASIL, 2009b). Emsuma, o SAEB, inicialmente, não permitia uma visão clara da realidade de cada redede ensino, menos ainda de cada escola; a Prova Brasil vem para suprir essalacuna.
Com a implementação do Ensino Fundamental de nove anos, houve a necessidade deverificarem-se as habilidades desenvolvidas pelas crianças na Alfabetização(letramento inicial) e suas habilidades iniciais em Matemática. Assim, em 2007, foiinstituída a Avaliação de Alfabetização “Provinha Brasil”. Composta pelos testes deLíngua Portuguesa e de Matemática, a Provinha Brasil é aplicada para criançasmatriculadas no 2º ano do Ensino Fundamental das escolas públicas. A Provinha Brasilsurge para atender ao compromisso do Ministério da Educação (MEC) com uma das metasdo Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), que prevê que todas as criançassaibam ler e escrever até os oito anos de idade. Foi também nesse contexto que o MECcriou o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).
Em conformidade com suas proposições, as avaliações em larga escala apresentam comoobjetivo a verificação das habilidades que os alunos conseguiram desenvolver em umdeterminado período da escolarização para, a partir daí, oferecer aos professores eaos gestores escolares um instrumento que permita acompanhar, avaliar e melhorar aqualidade da aprendizagem dos alunos, além de balizar o processo de organização depolíticas educacionais informadas que visem à melhoria dos resultados deaprendizagem (BRASIL, 2009b). Entretanto, alguns estudos (SILVA; CAFIERO, 2011; CALDERANO; BARBACOVI; PEREIRA, 2013) mostram que a efetivação dessaspolíticas de avaliação, na prática, é distorcida. Nesse ponto, atemo-nos à ProvinhaBrasil. Apesar da afirmação do MEC de que “[...] gestores municipais e estaduais deeducação acreditam que a Provinha Brasil é eficaz quanto ao diagnóstico do nível dealfabetização das crianças” (BRASIL, 2010a, n.p.), a análise a seguir mostradistorção.
Como assinalam as autoras, os efeitos desses instrumentos têm resvalado no professor,sobretudo quando se observa a responsabilização que lhe é conferida pelos resultadosalcançados por seus alunos. A distorção nas proposições legais é grave, a ponto deinculcar no professor a ideia de que a sua competência é chancelada pelas avaliaçõesexternas. “É como se o professor precisasse de um aval externo para dizer que otrabalho que faz é bom. Não se nega a importância desse aval, mas será que ele podeser o critério final, considerando as bases em que é feito?” (CALDERANO; BARBACOVI; PEREIRA, 2013, p. 14).
Sobre isso, a Professora Lírio traz o desconforto vivenciado por uma colega durantereunião pedagógica em sua escola, na qual foram apresentados os resultados da ProvaBrasil:
Essa cena, notadamente desmoralizadora do trabalho do professor, revela um cenárioque mina suas possibilidades de fortalecer a autoconfiança para que, a partir daí,tenha condições de propor alguma mudança na escola ou mesmo de colocar-se em umapostura de fazer valer argumentos que revelem as contradições desse tipo deavaliação. Em um esforço para resguardar sua autoestima, o professor acabadesconsiderando e ignorando a política de avaliação externa, como se ela nadadissesse (CALDERANO; BARBACOVI; PEREIRA,2013). Outros podem assumir a postura de confrontar aquilo que os afeta com oque pensam ser, de fato, a sua responsabilidade profissional, para desse confrontotentar extrair algo novo.
Com efeito, estamos diante de um cenário em que a escola se preocupa majoritariamenteem maquiar o seu contexto para sair-se bem nas avaliações externas, fazendo um“jogo” perigoso que estimula o individualismo entre os professores. Oliveira (2020) alerta para o fato de que aspolíticas de avaliação têm enfraquecido os projetos políticos pedagógicos dasescolas como espaços de construção coletiva, pela necessidade de alcançar as metasde resultados e de elevar o IDEB. A autora diz, ainda, que a escola já não pensasobre si e o seu entorno, mas gasta a maior parte de seu tempo e sua energia paramostrar-se.
Assumimos a ideia de que o tipo de situação relatada pela Professora Lírio revela aexperiência do pior (BATISTA,2017), expressão que estamos usando para designar uma experiência queestá associada a contextos desfavoráveis, como, por exemplo: turmas numerosas,alunos com necessidades educacionais específicas, falta de diálogo na escola entreos pares, mecanismos de controle sobre o trabalho docente. Trata-se de situações emque as circunstâncias podem, de um lado, conspirar contra o processo de aprendizagemprofissional das professoras; por outro, ser-lhes úteis, funcionando paradesencadear aprendizagens docentes, servindo de âncora para a atribuição de sentidoàs ações.
Retomando a ideia de que a experiência depende das condições internas e externas(DEWEY, 1959, 1971), é possível encontrarna situação relatada pela Professora Lírio evidências que podem ser interpretadascomo relacionadas à “experiência do pior”. Em primeiro lugar, a escola(representada, nesse caso, pela direção e pela coordenação), ao demonstrarpublicamente interesse nos escores (condições externas e objetivas), estimula acompetitividade entre os professores, desconsiderando os bons professores e as boaspráticas ao focalizar apenas os resultados, tal como ocorreu com a colega daProfessora Lírio que, a seu ver, é possuidora de competência profissional. Silva e Cafiero (2011, p. 230), ao analisaremalguns impactos de políticas na prática, afirmam que “[...] as classificações ourankings, seja entre as escolas, seja no seu interior, entre asdiversas turmas de alunos, cria uma reputação de excelência dentro e fora dasescolas que afasta ou atrai professores, criando mecanismos ocultos de competição”.Essa é, sem dúvida, uma condição externa (objetiva) que enfraquece a autoconfiançado professor (condição interna), podendo inibir a sua capacidade de experienciar, nosentido de tentar promover mudanças no ambiente de trabalho. A cena relatada pelaProfessora Lírio, em especial a exposição à qual a professora foi submetida, podetambém ter comprometido a sua condição interna se, a partir dali, passou a cultivarformas grosseiras de sentir, de pensar e de agir (comunicar).
Ainda sobre a cena relatada pela Professora Lírio, que aponta efeitos perversos dacultura da performatividade (BALL, 2002), recorremos a uma passagem do trabalho de Ravitch (2011):
Essa passagem remete a Dewey (1959, 1971,1979) em sua defesa de que a mais importante atitude a ser formada é a dodesejo de continuar aprendendo (pelo que parece, a atitudeadotada pela Sra. Ratliff).
Com esses questionamentos, Dewey explicita que a experiência educativa deveria fazeralgo para preparar uma pessoa para experiências posteriores de qualidade mais amplae profunda, pois esse é o sentido próprio de continuidade e de reconstrução daexperiência (DEWEY, 1971). Hoje, contudo,temos vivido um “real” na escola que nos coloca distantes do ideal propugnado porDewey. As necessidades postas pelas reformas educativas para a Educação Básicaafastam cada vez mais as possibilidades de a escola e de o professor impulsionar oaluno para o desejo de continuar aprendendo. Sobre isso, aProfessora Lírio apresenta uma experiência que nos permite conhecer o mal-estar queas avaliações externas podem causar nos alunos e, também, no professor.
Esse relato é rico em elementos que nos permitem entrar em contato com algumasdimensões do sofrimento das crianças ao se submeterem a uma avaliação. É um tipo deteste diferente do que estão acostumadas a fazer na escola, em nível de atividadesacima de suas condições reais, criando certo sentimento de incapacidade e abalandosua confiança no trabalho do professor. A interpretação aponta para um sofrimentoque é, também, do professor. Ao ressentir-se com o fato de que não podefazer nada (Professora Lírio) diante das dificuldades das crianças parafazer o teste, e até mesmo diante da condição de ser muito sofrido paraelas, a Professora Lírio assume o mal-estar que a acomete.
Essas considerações permitem certa aproximação com o desconforto que é, para umprofessor comprometido com o seu trabalho, ver-se diante de uma situação em que sesente compelido a orientar seus alunos a fazerem as questões que saibam ou amarcarem a opção que considerem ser a melhor (Professora Lírio). Comouma forma de minimizar esses efeitos negativos, a Professora Lírio, em determinadoano letivo, encontrou um caminho. Embora ela mesma reconheça não ser o melhor,talvez por representar uma estratégia de fuga e não propriamenteuma solução para reafirmar o sentido de seu trabalho (LANTHEAUME, 2012), julgou necessário trilhá-lopara que seus alunos não desanimassem com os estudos.
A Professora Sempre-Viva, tal como a Professora Lírio, também associa a suaexperiência com as avaliações em larga escala ao mal-estar que causa a ela e a seusalunos, sobretudo pelo descompasso que existe entre o teor desses instrumentos e osobjetivos de aprendizagem trabalhados na escola. Nesse sentido, ela também foilevada a adotar determinada prática, mesmo não sendo totalmente favorável a ela.
Ao reconhecerem que foi uma perda de tempo (Professora Sempre-Viva)ou que foi constrangedor treinar os alunos (Professora Lírio),essas professoras confirmam que existe um abismo entre a vontade política daspropostas do MEC e os impactos sobre sua ação. No caso em tela, percebe-se a pressãoque determinada reforma educacional pode provocar na prática do professor,levando-o, muitas vezes, a agir de forma contrária às suas convicções,comprometendo, dentre outras coisas, a luta histórica pela profissionalização domagistério (FREITAS, H. C. L., 2002).Percebe-se que o fortalecimento da profissionalidade docente talvezesteja atrelado à insubordinação sugerida pela Professora Verbena, o que, por suavez, tem relação com a autoconfiança do professor em sua própria formação e notrabalho que desenvolve junto aos alunos.
Apesar de as Professoras Lírio e Sempre-Viva serem conhecedoras do que representa umaboa educação, parece que, sob circunstância adversa à qual estavam submetidas, nãotiveram condições de pautar suas práticas na ideia de que uma boa formação émuito mais do que saber fazer uma prova (RAVITCH, 2011), e menos ainda no princípio de propiciar a seusalunos experiências que os preparem para experiências posteriores de qualidade maisampla e profunda (DEWEY, 1971). Trata-se,pois, de uma evidência que confirma que a pressão exercida pelo sistema (asprofessoras sentem-se compelidas a fazer algo que alivie os alunos da tensão querepresenta fazer uma avaliação do MEC) é prejudicial a abordagens pedagógicas quelevem o aluno a se envolver de forma autêntica com a aprendizagem. Disso podemdecorrer ações docentes que rompam com as convicções construídas e com os princípiospedagógicos até então valorizados pelo professor, como ocorreu com as ProfessorasLírio e Sempre-Viva. É certo que o rompimento com determinadas convicções pode darorigem a experiências formativas, representando, assim, ganhos para o profissional.Entretanto, treinar os alunos para os testes padronizados representou uma práticaestranha a elas, uma prática sem significado, uma vez que consideram, elas mesmas,não ter havido ganho para a aprendizagem dos alunos, nem tampouco para si.
A apropriação que as Professoras Lírio e Sempre-Viva fizeram dos instrumentosexternos de avaliação distancia-se da perspectiva das demais professorasentrevistadas, cujas ações rejeitam certas apropriações (tal como a adoção de“treinos”) que possam restringir aquilo que julgam necessário ser aprendido pelosalunos e, sobretudo, que possam afastá-las dos princípios pedagógicos construídos aolongo de suas carreiras e por elas valorizados. A Professora Cravina ilustra bem oraciocínio que é representativo da maioria das professoras entrevistadas. Aodiscorrer sobre cobranças advindas da Secretaria de Educação, ela apresenta umdiscurso exaltado:
Esse depoimento veio à tona quando a professora, em uma fala ressentida, denunciavaque as políticas verticalizadas não contemplam aspectos importantesrelacionados à aprendizagem do aluno. A Professora Cravina citou, então, o trabalhode psicomotricidade que fazia com seus alunos para desenvolver o princípioespaço-temporal, considerado por ela um aprendizado de base que acriança carrega por todo o seu processo de escolarização. Acumulando mais de 30 anosde docência e reconhecendo a imprescindibilidade de trabalhar determinados aspectos,ainda que lamentavelmente não caibam nas políticas educacionais, a professora nãoabre mão desse trabalho. O cumprimento de metas fica em segundo plano.
Apesar de as professoras não se colocarem contrárias às avaliações externas, épredominante entre elas a insatisfação com a forma como se dá esse tipo de processoavaliativo. A concepção que elas têm do que seja uma boa educação e do papel doprofessor no processo educativo as leva a considerar que as avaliações externas nãotêm sido favoráveis à melhoria da qualidade do ensino. Cada uma delas, no entanto,lida com essas questões a seu modo, de acordo com sua formação, característicasprofissionais e pessoais, experiências e valores, fatores que impulsionam o quepensam sobre uma boa educação. Os extratos a seguir são bastanterepresentativos:
Apesar do caos promovido pelo contexto prescritivo que assola a escola, essasprofessoras dão demonstrações de que realizam o exercício de confrontar asestruturas que as afetam com aquilo que acreditam ser o papel que devem desempenharcomo docentes. Esse exercício que é, acima de tudo, reflexivo, parece ser, paraelas, verdadeira fonte de conhecimentos profissionais. A capacidade de asprofessoras avaliarem e manterem-se fiéis aos princípios pedagógicos por elasvalorizados, ou mesmo reconstruí-los, está relacionada às deliberações reflexivas eà coragem de agir. O relato a seguir é ilustrativo desse movimento:
Como se vê, não é apenas a experiência que o professor vivencia no espaço escolar,mas a deliberação reflexiva sobre ela que lhe permite criar estratégias para mantera sua dignidade profissional frente ao contexto adverso que assola o seu cotidianoescolar. Por meio da atividade reflexiva, o professor pode defender ou se confrontara estruturas que afetam o contexto em que está inserido; pode adaptar a sua práticaou rejeitar essa possibilidade. Importa destacar a disposição reflexiva do docentecomo condição essencial para que ele possa, pouco a pouco, consolidar a sua docênciaem bases sólidas. Sobre isso, Dewey (1904)aponta que a inclinação à subserviência intelectual dos professores, que nãodemonstram uma independência intelectual, pode ser mais uma das dificuldades paraque se mantenham em permanente evolução sobre como ser professor, para além da suacapacidade imediata de ensinar. Se o professor possui independência intelectual,será capaz de avaliar as imposições que lhe são direcionadas, buscando encontrar umcaminho que melhor responda às suas próprias expectativas e demandas. Casocontrário, corre o risco de ser capturado pelas adversidades do cotidiano e, dessaforma, ter a sua experiência subjetivada como vivência, em outras palavras, como umaexperiência mais imediata e pré-reflexiva.
Nessa direção, vale notarmos que a forma como as professoras entrevistadas pensam aspolíticas ou percebem a sua influência em seu trabalho tem relação, também, com omodo pelo qual são tocadas ou se deixam tocar por aquilo que lhes passa. Portanto,tem relação com experiências singulares, como ensina Larrosa (2014). Ainda que possam receber as mesmas influências, aexperiência é, para cada uma, a sua. Para o autor, se a experiência é o que nospassa, cada um faz ou padece sua própria experiência, e isso de um modo único,singular, particular, próprio.
Para Dewey (1971, p. 84), “[...] os indivíduosprocedem caprichosamente toda vez que são levados pela compulsão externa ou quando,obrigados ou acostumados a obedecer, agem de acordo com o que mandam fazer, sem terum fito próprio nem perceber o alcance daquilo que estão fazendo, sobre outrosatos”. A atitude caprichosa valoriza atos momentâneos, desprezando as associações denossa atividade pessoal com as forças do ambiente. Assim, pode-se compreender que asatividades caprichosas, indicando a heteronomia, apontam talvez para a incapacidadede o sujeito dirigir experiências singulares que favoreçam a aquisição de novosconhecimentos, melhorando as suas aptidões, bem como a capacidade de resistir ao quelhe é imposto. Desse modo, por mais que os sistemas educacionais possam transformaras normas profissionais relacionadas ao ofício de ser professor (LANTHEAUME, 2012), de tal forma que o ato,mesmo depois de praticado, não é visível para o professor, ou ele não é levado aperceber a conexão entre o ato e seu resultado (DEWEY, 1959), as professoras em tela dão demonstrações de que têmconseguido, em alguma medida, desviar-se das “armadilhas”, resistindo aosconstrangimentos que se lhes apresentam no contexto escolar.
Até aqui foram apresentadas circunstâncias que apontam para um “regime” que tolhe aautonomia do professor, o que gera dificuldades (ou mesmo impossibilidades) de sepensar em um projeto de formação docente que o coloque no centro do processo.Importa destacarmos que, neste estudo, o entendimento de autonomia coaduna-se comContreras (2002). Para o autor, aautonomia docente é constituída pela combinação de aspectos pessoais (compromissosmoral e ético) e sociais (relações sociais e valores que as guiam). Nessacompreensão, não faz sentido afirmar que uma pessoa é ou não autônoma, mas que hásituações em que ela pode agir de maneira autônoma. Dessa forma, a atitude autônomado professor está vinculada à consciência de sua insuficiência e parcialidade, desua solidariedade e sensibilidade na lida com os seus pares. Na perspectiva deContreras (2002), a autonomia distancia-se da autossuficiência e aproxima-se mais daideia de emancipação.
As circunstâncias acima relatadas pelas professoras remetem a mecanismos deexpropriação do docente de sua tarefa de buscar soluções para questões educacionais,ou mesmo da tarefa de transformar a própria prática pedagógica em objeto deinvestigação (STENHOUSE, 1984), de aprenderpor meio de uma formação clínica (DEWEY, 1904) em espaços de cultivo do ensino e dapesquisa (TEIXEIRA, 1966), éalgo que afeta diretamente o seu processo de afirmação e de desenvolvimentoprofissionais. Ademais, afetam o seu processo de fazer experiência.
As políticas educacionais, portanto, impondo padrões e cerceamento à autonomiadocente, podem gerar efeitos perversos, ao mesmo tempo que podem provocardeliberações reflexivas e processos potencialmente formativos para as professoras.Nesse diapasão, acresce-se ao estudo as políticas de ciclos (formas não seriadas deorganização da escola) que emergiram nos discursos das professoras e nos permitiramaprofundar as análises sobre as condições de que elas dispõem para fazer experiênciae aprender por meio dela.
Barretto e Sousa (2005, p. 660), ao buscaremesclarecer sobre usos e sentidos do termo “ciclo” na educação brasileira, afirmamque ele já teve outros significados, bem como sua ideia básica já esteve presente empropostas que receberam outras denominações. Todavia, a denominação ciclo comoalternativa de organização escolar não seriada surge no Brasil em meados dos anos de1980. A justificativa para a organização escolar em ciclos pode assim serrepresentada:
Com a organização da escolaridade em ciclos , espera-se minimizar a evasão que éfruto de sucessivas reprovações, assegurando a possibilidade de permanência do alunoao longo do Ensino Fundamental, na tentativa de superar o caráter seletivo daescola. Entretanto, a ênfase nesses objetivos varia no tempo e no contexto de umamesma rede de ensino (BARRETTO; SOUSA, 2005),fazendo com que a política de ciclos assuma características singulares nas redes deensino (MAINARDES, 2010), indo desdeestruturas que rompem radicalmente com o modelo seriado, com características maisprogressistas àquelas que rompem parcialmente com tal modelo, tendo como objetivo aredução das taxas de reprovação.
Ao analisarem pesquisas sobre a implementação de políticas de ciclos, Mainardes e Stremel (2011, p. 54) concluemque:
Como vemos, no Brasil, a escola organizada em ciclos presentifica-se ancorada a umapolítica pública que busca se justificar com o discurso de inclusão social dapopulação marginalizada da vida escolar. Contudo, a reestruturação da escola nessesmoldes implica muitos aspectos que requerem especial atenção, dentre os quaisdestacamos os que dizem respeito aos professores: a compreensão que eles têm sobre oseu trabalho, sobre a escola e seus alunos.
No seio do debate sobre os ciclos, ganha destaque o Bloco Pedagógico, políticapública criada pelo MEC para instituir o regime de progressão continuada nasescolas, introduzido em escolas da rede pública de ensino. As DiretrizesCurriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de nove anos - Resolução Nº 7, de14 de dezembro de 2010 (BRASIL, 2010b) - reconhecem os três anos iniciais como cicloda alfabetização e letramento, recomendando, portanto, que não haja interrupçãonessa etapa.
A proposição é assegurar aos alunos de seis a oito anos de idade, durante os trêsprimeiros anos de escolarização no Ensino Fundamental, o aprendizado dos conteúdosde forma sistêmica. Nesse sentido, a garantia da alfabetização na “idade certa” épleiteada a partir de uma concepção de aprendizagem que considera as fases deintrodução (1º ano), aprofundamento (2º ano) e consolidação (3º ano), sem o prejuízoda reprovação do aluno nesse período que compõe o Bloco Pedagógico. Trata-se de umapolítica que busca garantir a alfabetização e a numeralização ao aluno por meio daprogressão de aprendizagens, o que requer, inevitavelmente, organização eplanejamento por parte da escola e dos professores responsáveis pelo BlocoPedagógico. Um aspecto delicado, que tem causado desconforto entre algunsprofessores, é a não repetência do aluno.
Contradizendo as expectativas, de forma geral, o Bloco Pedagógico tem encontradodificuldades para alcançar os objetivos pretendidos. Almeida (2008) observa que a permanência do aluno na escola, graças àausência de reprovação ao longo dos ciclos do Ensino Fundamental, não lhe assegurauma aprendizagem efetiva.
Ao explanar sobre danos que essa política de progressão continuada pode causar àaprendizagem dos alunos da Rede Municipal de Ensino, a professora expõe a suapercepção sobre a principal mudança operada nas escolas:
O depoimento da Professora Eufrásia é uma espécie de denúncia direcionada a algumascolegas (também à diretora da escola) que se sentem desobrigadas do trabalho deavaliar e de acompanhar o avanço do aluno. Parece que a falta de compromissoassinalada pela Professora Eufrásia tem relação direta com a concepção que essasprofissionais possuem sobre o seu trabalho, sobre a escola e os alunos, um tantodistante, por exemplo, da perspectiva de avaliação como processo. Sendo o princípionorteador do Bloco Pedagógico a aprendizagem do aluno, e, portanto, a ênfase naprogressão de aprendizagens, essa política impõe ao professor atarefa premente de organizar e planejar sistematicamente o processo de ensino e deaprendizagem, para um acompanhamento sistêmico que permita conhecer avanços edificuldades de seus alunos; algo que, de acordo com a visão da Professora Eufrásia,não tem acontecido em sua rede de ensino.
Na visão dessa professora, a situação vivenciada demanda uma ação coletiva no sentidode tentar minimizar efeitos negativos da implementação da política de progressãocontinuada em sua escola. Assim ela faz: procura a diretora e expõe asituação caótica, a fim de forjar a abertura para um diálogofranco que envolva toda a equipe pedagógica da escola. Para surpresa da ProfessoraEufrásia, a diretora demonstra falta de clareza em relação ao contexto que assola aescola. Associar o baixo nível de proficiência dos alunos à ideia de que são “filhosdo Bloco Pedagógico” é desconsiderar o conjunto de fatores que concorrem para osucesso ou o fracasso de suas aprendizagens. E mais, esse tipo de postura dificultaque os professores saiam de seus lugares (mexam-se) e encontrem caminhos parasuperar os problemas detectados, pois, assim como a diretora, parece ser maisconveniente atribuir o caos ao sistema. Sobre esse assunto, vale registrarmos oalerta feito por Barretto e Sousa (2005):
Como podemos observar, na política de ciclos, é premente que os professorescompreendam a sua reponsabilidade profissional em proporcionar aos alunosaprendizagens essenciais para que tenham condições de fazer uma “leitura de mundo”,de modo a exercer a sua cidadania na vida em sociedade. Por isso, a importância deque o docente considere em sua prática pedagógica o princípio da progressãode aprendizagens.
A Professora Cravina, por sua vez, apresenta um discurso sobre o Bloco Pedagógicoque, em princípio, pode colocá-la ao lado das colegas da Professora Eufrásia:Parece que nós viramos babá de luxo! No dia em que falaram que não seriamais permitido reprovar, eu disse: “Babá de luxo! Estudei e fiz concurso paraser babá de luxo” (Profa. Cravina). Segundo Ball (2002), políticas dessa natureza contribuempara retirar o valor do professor e a sua autonomia, levando-o, inclusive, areformar a sua noção do que significa ser professor. Acresce-se a isso a análisefeita por Barretto e Sousa (2005) sobre apercepção dos professores acerca da impossibilidade de reter os alunos ao término deum ano letivo:
Em nossa interpretação - que se difere da percepção dos professores mencionada nacitação acima - a impossibilidade de reter o aluno ao término de um ano letivodeveria ser vista pelos professores não como prejuízo ao aluno, mas podendorepresentar ganho em seu processo de aprendizagem. O problema, a nosso ver, não seassenta na não reprovação, mas naquilo que não se está conseguindo garantir ao alunono período mais demorado em que ele passa nos ciclos. A possibilidade de o alunoficar um tempo mais prolongado no ciclo sem que seja despertado para o estigma dareprovação, dá ao professor a condição de realizar um trabalho pedagógico que possaser considerado inclusivo.
O depoimento da Professora Cravina remete-nos à ideia de “chicote da reprovação” - umrecurso que todo professor pode lançar mão para fazer valer o seu papel docente defazer o aluno aprender (ROLDÃO,2007). Contudo, talvez a ideia de castigo, implícita na de “chicote dareprovação”, possa ser relativizada em alguma medida. O desabafo que a ProfessoraCravina faz tem relação com a sua convicção de que quem melhor sabe o momento parapromover ou reter um aluno é ela, a professora que acompanha o dia a dia do aluno eque está equipada pedagogicamente para tomar decisões desse tipo.
Essa professora, quando associa a progressão continuada ao professor “babá”, aqueleque acompanha a criança, mas não tem poder de decisão (autonomia para decidir) sobrequestões voltadas para o seu desenvolvimento, expressa o seu senso crítico, suapreocupação com a aprendizagem dos alunos. Apesar de não ter autonomia parainterferir na política de progressão continuada, percebemos que a crítica e apreocupação podem promover experiências de aprendizagem para os seus alunos, mastambém para ela.
A defesa da Professora Cravina pelo direito de reter alunos que não se encontremaptos para prosseguir é justificada por acreditar que esse tipo de medida evita quesejam excluídos e marginalizados. Desse modo, para seguir-se por um caminho, ajustificativa é a exclusão, mas, para justificar o caminho diverso, a exclusão étambém evocada. Na visão da Professora Cravina, políticas que retiram do professor aautonomia de que precisa para fazer o trabalho que considera ser o melhor para seusalunos prejudicam a qualidade das aprendizagens.
Como podemos notar, ao referirem-se às políticas relacionadas à progressãocontinuada, no caso em tela, ao Bloco Pedagógico, a Professora Cravina fazassociação com o surgimento do professor “babá”; e a Professora Eufrásia, com oincentivo à falta de compromisso docente. Ambas, porém, cada qual com perspectivaspróprias, expressam o seu senso de comprometimento com a educação, o que parecepreveni-las da possibilidade de caírem em armadilhas que afetem negativamente a suaautonomia e, consequentemente, o trabalho que querem desenvolver na escola. O quedepreendemos é que a maior satisfação com a profissão docente não está associada àposse do “chicote da reprovação”, nem à ideia de “lavar as mãos”, mas, acima detudo, à preservação da autonomia docente. Para Contreras:
Logo, se o papel dessas professoras está comprometido com fazer o alunoaprender (ROLDÃO, 2007) eincluí-lo, no momento que, por ventura, são expropriadas do poder de decisão sobrequestões didático-pedagógicas (por exemplo, reter ou não um aluno em um anoescolar), ocorre uma ruptura que interfere diretamente no exercício docente, nonível de satisfação com a profissão e, consequentemente, em sua autonomia.
Estamos diante de um cenário que acena para a autonomia do professor como algoprecioso, embora sua concretização se dê, de fato, pela construção coletiva (já quecompreendemos a autonomia docente como uma combinação entre aspectos pessoais esociais), quando aos sujeitos são respeitados espaço e tempo para a reflexão e atroca entre os pares, assim como sua capacidade de resistir ao que lhe é imposto defora.
Do quadro apresentado sobre a política de ciclos, depreendemos que o exercício dadocência dessas professoras e sua própria autonomia, apesar de ocorrerem em contextode verticalização (já que o funcionamento da rede de ensino é algo estabelecido),acabam por forjar um espaço com potencial formativo. As possíveis situações dedominação e de conflito que caracterizam o espaço escolar, ao mesmo tempo quecolocam em xeque a autonomia dessas professoras, servem de impulsos para elas oporemsuas convicções pedagógicas ao sistema e se afirmarem profissionalmente. Nessemovimento, as experiências feitas pelas Professoras Cravina e Eufrásia exemplificamuma autonomia conquistada.
Quanto às condições objetivas, as orientações são para não reter os alunos. Há,porém, alunos que não foram alfabetizados, há colegas e gestores cujas concepçõespedagógicas divergem do ponto central da proposta da política de ciclos, conforme osdepoimentos das professoras entrevistadas. Não lhes faltam convicção pedagógica,desejo de fazer o que consideram “certo”, valorização da autonomia e a vontade decrescer profissionalmente. Com base na combinação desses fatores, as professorasdesenvolveram experiências formativas que estão vivas em suas memórias porqueacrescentaram significado às suas aprendizagens como profissionais.
Algo preocupante desse cenário é a exclusão do professor nos processos de elaboraçãode políticas educacionais como as aqui explanadas. Afinal, a sua capacidade não temsido reconhecida. Isso tem sugerido tentativas de controle e de intervenção sobre otrabalho docente. Essa tendência tem ganhado força nos últimos anos, inclusiveinsinuando afirmações infundadas de que o professor dos anos iniciais do EnsinoFundamental é malformado e mal preparado.
Com efeito, a tensão entre a autonomia docente e a prescrição do trabalho leva apensar nas relações, no cotidiano, na prática; enfim, na experiência do professor. Oque justifica, hoje, o encurtamento da possibilidade de o professor agir a partir desua experiência reflexiva e criativa? Seria a noção de que ele é encarado como umprofissional malformado, mal preparado, que não dispõe de tempo para o seuaprimoramento devido à baixa remuneração que o obriga a ter dupla jornada detrabalho? São questionamentos que ressaltam como as novas exigências se concentramem iniciativas a guiar, apostilar e padronizar a prática do professor, abafando suaspossibilidades de criação. Observe-se que nos referimos a verbos que arriscamcercear o campo de autonomia, de criação e de experimentação necessários para que oprofessor possa construir a sua própria prática, a sua própria experiência, produzirsubjetividade singular ao dialogar com aquilo que vem de fora e ao resistir ao quelhe é imposto de fora. Felizmente, encontramos práticas pedagógicas que tentamsubverter a lógica em vigor (de cerceamento da autonomia do professor), como foipossível extrair ao longo do contato com as nossas entrevistadas. A maioria dasprofessoras da pesquisa mostra-nos que circunstâncias adversas, apesar de inibidorase de cobrar delas um esforço maior, não têm sido impeditivas para que possam extrairdelas aprendizagens, seja para fortalecer práticas já consolidadas, seja para forjarsuas mudanças. Ao fim e ao cabo, por meio da deliberação reflexiva e da coragem deagir, as professoras vão, no exercício de suas práticas, aumentando seu repertóriode saberes e consolidando sua docência.
Considerações finais
Nos dias de hoje, sob a óptica mercadológica dominante, é compreensível a ideia dogerenciamento de um sistema educacional por meio de indicadores de resultados e quese criem instrumentos para diagnosticar as habilidades que os alunos desenvolveramem um determinado período de escolarização. Esse tipo de medida auxilia naelaboração de políticas educacionais que visam à obtenção de resultados consideradospositivos na aprendizagem. Assim sendo, como foi indicado neste texto, um dos pontosmais notáveis na política educacional nos últimos anos tem sido o aumento e oimpacto da performatividade e, em consequência, daresponsabilização dos professores (BALL, 2002,2011; FREITAS, L. C., 2012; FREITAS, H. C.L., 2002; NÖRNBERG, 2020). No Brasil, não temsido diferente. Nos últimos anos, temos assistido a reformas educacionais quedesqualificam o trabalho do professor, mantendo-lhe condições de trabalhodeficientes, o que, muitas vezes, o obriga a atividades em desacordo com seusprincípios. Essa assertiva pode ser ilustrada a partir de experiências relatadaspelas nossas entrevistadas, que, dentre outros aspectos, apontam para a indução apráticas pedagógicas de treinos e de repetições para que os alunos se saiam bem nasavaliações externas e a escola fique bem classificada.
Considerando que as análises aqui empreendidas buscaram articular, pelo viés daexperiência, o processo contínuo de formação docente deprofessoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental e o contexto mais prescritivocom que elas se deparam nas escolas em que atuam, partimos da ideia de que aexperiência não se processa exclusivamente no interior do sujeito, mas há elementosfora dele que a despertam e a alimentam, como é o caso, neste estudo, da estruturaque compõe o ambiente escolar. Como componentes dessa estrutura, estão os recursosinstitucionais, a equipe gestora, a implementação de políticas educacionais, arelação entre os pares, os espaços de trocas profissionais na escola e asprescrições advindas das políticas educacionais conservadoras de avaliações em largaescala e de ciclos. Ao mesmo tempo que as professoras da pesquisa reconhecemelementos que interferem em seu trabalho e ameaçam esvaziar a experiência de seusentido, elas demonstram postura crítica que resiste à alienação e à dominação.Reafirmamos, neste estudo, aquilo que é destacado por Dewey e Larrosa: a importânciade condições sob as quais o professor (em permanente formação) seja tocado esensibilizado, podendo extrair das circunstâncias físicas e sociais tudo que possacontribuir para a construção de experiências válidas, dando continuidade ao processode crescimento profissional.
Ao buscarem força onde não têm, expressão utilizada por uma dasprofessoras entrevistadas e presente indiretamente no discurso de outras, asprofessoras dão claras demonstrações de realizarem o exercício de confrontar aquiloque as afeta pelo sistema com o que acreditam ser suas responsabilidadesprofissionais. Nesse movimento, compreende-se que as professoras fazem as suasopções, buscando coerência entre as convicções pedagógicas que desenvolveram aolongo de suas carreiras e aquilo que o ambiente lhes impõe. Percebemos que elascaminham contra a busca de controle e de redução do poder de decisão do professor,uma lógica que é emanada das reformas educacionais e atinge o espaço escolar. Elasdemonstram capacidade crítica e vontade de aprender pelas experiências, apesar doesforço que isso representa.
Os resultados apontam que o cenário de docência dessas professoras é marcado pelosentimento de luta pela dignidade do seu trabalho: ao mesmo tempo que pressões erestrições características do espaço escolar em que atuam as incomodam, tambémdesvelam oportunidades para se afirmarem profissionalmente, ainda que esse movimentorequeira delas esforço constante.
Utilizando a linguagem da “experiência”, é possível dizermos que estamos diante de umquadro que acena para a “experiência do pior” (BATISTA, 2017), que pode ser profícua para o acontecimento deexperiências ou apenas subjetivada como algo sem aproveitamento. As circunstânciasadversas relatadas pelas professoras desvelam cenas que remetem para a experiência,que “[...] é sempre impura, confusa, demasiado ligada ao tempo, à fugacidade e àmutabilidade do tempo, demasiado ligada a situações concretas, particulares,contextuais, demasiado vinculada ao nosso corpo, a nossas paixões, a nossos amores ea nossos ódios” (LARROSA, 2014, p. 39). Assituações conflituosas, que os mecanismos de controle têm imposto à organizaçãoescolar, funcionam para as professoras entrevistadas, cujas práticas pedagógicas seencontram fundamentadas e alicerçadas na autonomia, como um “nicho” para ofazer experiências formativas.
O conjunto de elementos internos e externos, positivos e negativos, que entram noemaranhado de situações por vezes conflituosas que cercam como um nicho o trabalhodo professor, não o impedem de desenvolver experiências formativas em seucrescimento profissional. Dentro desse nicho, forças em direções opostas convergempelo espírito crítico e pela autonomia segura do professor, em reações construtivas,frente a questões que desafiam a unidade e o próprio trabalho efetivo do corpodocente da escola. Como ocorreu no episódio relatado por uma de nossasentrevistadas, sobre o constrangimento sofrido pela colega cujo reconhecido bomtrabalho sofreu um processo de “invisibilização”, devido aos baixos resultados dealguns alunos, na atual perspectiva de ranqueamento das escolas pelos seusresultados. Exemplos como esse foram numerosos nas entrevistas reunidas pelapesquisa, indicando experiências vividas pelas 13 professoras do grupo investigadoque vão consolidando a base sobre a qual se assenta sua identidade profissional.Assinalamos, contudo, que tais situações acenam para a presença de um cenáriomarcado pela sobrevivência do trabalho docente, que tem sido visto e sentido, pelasprofessoras da pesquisa, como uma luta constante. Uma luta pela sobrevivência dotrabalho do professor como sujeito autônomo da própria prática.
Resumo
Main Text
Introdução
Metodologia
O contexto das políticas educacionais e a autonomia docente
Considerações finais