Wed, 16 Apr 2025 in Revista de História Regional
Raízes que saciam a fome: o papel da mandioca (Manihot spp.) na dinâmica colonizatória da América Portuguesa no século XVI
Resumo
A mandioca (Manihot spp.) foi um dos principais alimentos incorporados à dieta dos colonizadores europeus na América Portuguesa, desempenhando papel essencial na adaptação às novas condições ambientais e alimentares. Este artigo investiga como os saberes indígenas sobre o cultivo, o beneficiamento e o consumo dessa raiz foram apropriados e ressignificados no contexto colonial, especialmente entre os séculos XVI e XVII. Ao focar nas formas de preparo, nas técnicas para eliminação de toxinas e na divisão social do trabalho - com destaque para o papel das mulheres -, buscamos compreender a mandioca não apenas como recurso agrícola, mas como elemento central na construção de uma cultura alimentar híbrida. A análise se fundamenta em fontes quinhentistas, como crônicas, relatos de viagem e tratados coloniais, permitindo interpretar as dinâmicas de troca de saberes entre indígenas e europeus, bem como os impactos desse alimento na economia e na sociedade da América portuguesa.
Main Text
Introdução
Com a chegada dos europeus ao Novo Mundo, no século XVI, a busca por alimentos e formas de subsistência impulsionou o interesse pela natureza e pelas práticas culturais das populações indígenas. Entre os elementos que despertaram a atenção dos colonizadores, destaca-se a mandioca (Manihot spp.), raiz de amplo uso entre os povos nativos da América do Sul. Em um contexto marcado pela dificuldade de adaptação de produtos europeus - como o trigo (Triticum spp.) - aos solos tropicais, a mandioca tornou-se não apenas uma alternativa viável de alimentação, mas também um objeto de observação, apropriação e reelaboração1.
A expansão marítima europeia e o avanço do mercantilismo motivaram um conjunto de práticas de exploração e classificação do mundo natural. Os relatos de viajantes, cronistas e missionários, repletos de descrições botânicas, agrícolas e alimentares, serviram como instrumentos para o entendimento - e controle - das novas terras. Nesse processo, os saberes indígenas sobre o cultivo e o beneficiamento da mandioca desempenharam papel fundamental na formação de sistemas alimentares coloniais e na construção de uma nova paisagem agrária2.
Longe de ser apenas um recurso alimentar, a mandioca representa uma chave interpretativa das dinâmicas de contato cultural entre colonizadores e indígenas. O domínio indígena sobre suas variedades - incluindo as espécies venenosas -, os modos de preparo que garantiam a segurança no consumo, e as formas coletivas de produção e distribuição, revelam uma sofisticada tecnologia alimentar. Esses conhecimentos foram, progressivamente, apropriados e adaptados pelos europeus, que passaram a depender da mandioca para sua própria sobrevivência e para a consolidação dos núcleos coloniais3.
Este artigo propõe-se a investigar a apropriação dos saberes indígenas sobre a mandioca na América portuguesa, com ênfase nos processos de cultivo, beneficiamento e consumo. A partir de fontes do século XVI, como relatos de viagem e descrições coloniais, busca-se compreender como esses conhecimentos foram interpretados, utilizados e, muitas vezes, descontextualizados pelos colonizadores. Serão abordadas as técnicas de extração do veneno, a fabricação de alimentos como farinhas, beijus e cauim, o papel das mulheres nesses sistemas de produção e os debates europeus sobre a classificação dos novos alimentos.
A raiz com feição de inhames e batatas
Ao longo de toda sua existência, o ser humano se preocupou em observar, descrever e classificar o seu meio, a fim de representar plantas e animais que compartilhavam com ele um mesmo espaço. Na Europa, a área do conhecimento dedicada a compreender e atingir um maior número de informações acerca da natureza foi denominada, primeiramente, de Filosofia Natural, depois de História Natural e, por último, de Biologia, quando, finalmente, a natureza passou a ser organizada em classes, grupos e espécies.
Entre os séculos XV e XVI, os europeus baseavam seus estudos em um método conhecido como “chave universal”. Através dessa lógica de investigação, era possível enxergar na natureza os sinais que haviam sido deixados pela mente divina, ordenando as classificações que poderiam refletir a harmonia presente no cosmos. Ou seja, era possível que o ser humano analisasse, defendesse e divulgasse o que encontrara, pois esse era o objetivo da grande busca naturalista daquele momento4.
O interesse em entender a natureza e a sua dinâmica aumentou extraordinariamente com a invasão dos europeus ao Novo Mundo e a descoberta de plantas, animais e populações completamente diferentes do que eles conheciam até então. Os viajantes quinhentistas acreditavam que elementos do Novo Mundo estariam interligados com os do Velho Mundo e, por isso, relacionavam-nos entre si5. Esse método, conhecido como comparativo, está presente em suas descrições.
Ao compararem uma planta da América com as da Europa, o viajante tornava o exótico familiar, fazendo com que, não apenas o novo se projetasse sobre o conhecido, mas o conhecido também se anexasse aos descobrimentos ultramarinos6. Dessa forma, a semelhança desempenhou um papel construtor no saber da cultura ocidental até o final do século XVI, proporcionando tanto o conhecimento das coisas visíveis quanto das invisíveis7. Foi essa lógica que permitiu aos colonizadores analisarem as novas espécies com base em seus conhecimentos da filosofia natural do Velho Mundo e descreverem uma natureza inóspita que se apresentava diante dos seus olhos8.
Ao descrever a mandioca, os cronistas frequentemente a comparavam com raízes e tubérculos do Velho Mundo, como o inhame e a batata. Pero Vaz de Caminha9, por exemplo, ao encontrar plantações de mandioca, erroneamente as identificou como inhames, devido a sua semelhança. Em sua carta, o escrivão português afirmou que os indígenas: “[…] não lavram, nem criam, [...] nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam.”
Estudos recentes comprovaram que, dentre todas as espécies, apenas o Discorea trifida, mais conhecido como cará-doce, foi confirmado como nativo do continente americano10. As demais variedades do inhame foram todas trazidas da África e introduzidas na América do Sul pelos colonizadores europeus ainda no início do século XVI11. A falta de contato prévio com os indígenas e a similaridade entre as espécies provavelmente contribuíram para que Caminha tenha cometido tal equívoco12. De qualquer forma, ainda que indiretamente, podemos dizer que mandioca aparece desde o primeiro documento da colonização europeia.
Colonizadores e viajantes posteriores puderam observar com mais calma a raiz tão utilizada pelos nativos americanos e logo perceberam que se tratava de uma espécie nova que eles nunca haviam visto antes. As comparações e associações, entretanto, continuaram sendo muito recorrentes. O cronista português Pero de Magalhães Gandavo13 escreveu que: “estas raízes a cabo deste tempo se fazem mui grandes à maneira de inhames de S. Tomé, ainda que as mais delas são compridas, e revoltas de feição de corno de boi.”. O referencial escolhido nesse caso, para explicar o tamanho e a forma que a mandioca podia adquirir, não foi uma planta, mas sim o chifre de boi, animal que também era familiar aos europeus.
Gabriel Soares de Sousa14 utilizou ainda mais comparações para descrever a raiz. Para o senhor de engenho português, a mandioca era uma raiz com feição dos inhames e batatas, variando de tamanho conforme a terra em que era plantada e o cuidado empregado em seu cultivo. Sua rama era comparada pelo colonizador com os ramos de sabugueiros, enquanto suas folhas e galhos apresentavam a mesma feição das de uma parreira. Apenas em uma rápida descrição, Sousa conseguiu utilizar quatro elementos conhecidos na Europa: o inhame, a batata, o sabugueiro e as parreiras.
A estratégia do método comparativo permitiu aos colonizadores descreverem, de forma aproximada, espécies que conheciam há pouco tempo. Esse método, amplamente utilizado no século XVI, dependia da acumulação contínua de informações, onde cada semelhança era construída com base em outras, resultando em um saber em constante expansão15. As descrições quinhentistas, detalhadas e repletas de exemplos, ilustram bem essas questões.
Ao migrarem, as sociedades humanas têm o hábito de reproduzir condições próximas às de suas áreas de origem, mantendo suas tradições e culturas, inclusive em relação à alimentação e atividades praticadas16. Por isso, os colonizadores não apenas observaram e valorizaram o que lhes era familiar na natureza do Novo Mundo, mas também tentaram introduzir plantas do Velho Mundo na colônia.
Durante os primeiros anos de colonização na América portuguesa, o cultivo do trigo (Triticum spp.), um cereal amplamente consumido na Europa e adaptado a climas temperados, enfrentou dificuldades devido aos climas equatorial úmido, tropical, tropical litorâneo e tropical semiárido, encontrados na região do atual nordeste brasileiro17. Segundo Ambrósio Fernandes Brandão18, um senhor de engenho português, a sua colheita lhe gerou muito trabalho porque o cereal não amadureceu todo de uma vez.
Outros vegetais europeus também não obtiveram o sucesso esperado imediatamente, levando os colonizadores a buscarem substitutos semelhantes. A mandioca, em particular, tornou-se o principal substituto do trigo. No entanto, antes de seu uso, os colonizadores precisavam aprender a identificar e diferenciar suas duas espécies: a mandioca mansa (Manihot esculenta) e a mandioca brava (Manihot utilissima), esta última potencialmente perigosa devido ao alto teor de ácido cianídrico.
Manihot esculenta e Manihot utilissima
As raízes e os tubérculos apresentam, com frequência, substâncias venenosas em seus tecidos de armazenamento como uma forma de evitar seu consumo e manter sua sobrevivência em condições naturais. Nesse sentido, a Manihot utilissima conseguiu resistir bem aos insetos e animais, desmotivados a escavar suas raízes, mas não aos nativos americanos que descobriram como torná-las comestíveis19. Utilizar plantas silvestres implica um conhecimento de técnicas exploratórias refinadas que vão muito além da simples coleta de espécies. Nativa da América do Sul e tida por muitos como a mais antiga das espécies de alimentos cultivadas neste continente, a mandioca já havia sido domesticada muito antes da chegada dos europeus. Quando os primeiros colonizadores desembarcaram no Novo Mundo, a raiz já estava presente nas terras baixas da Amazônia e da selva úmida, e seguia do sul do Brasil até as florestas da América Central20.
Segundo Lévi-Strauss21, poucos povos transformaram uma planta tão venenosa quanto a mandioca em alimento. Mas, os indígenas americanos não apenas transformaram a mandioca em alimento como também a tornaram uma das bases da alimentação americana. Como os nomes populares sugerem, apesar de serem parecidas, as variedades da mandioca possuem uma diferença importante: a quantidade de ácido cianídrico que apresentam. Enquanto a mandioca mansa pode ser consumida sem maiores problemas, a brava precisa de toda uma técnica em seu preparo, já que possui grandes quantidades do que foi descrito pelos europeus como veneno.
Mesmo que não soubessem que era o ácido cianídrico o responsável por tornar a mandioca um alimento perigoso, caso não fosse preparado corretamente, os colonizadores preocuparam-se em alertar quem quisesse experimentar as raízes. O padre José de Anchieta22. foi sincero ao afirmar que: “Esta mandioca tem algumas cousas notáveis: os homens que a comem crua ou bebem sua água arrebentam e morrem; [..] Os animais que bebem a água que dela se espreme morrem logo.”. O jesuíta português, Fernão Cardim, também foi bem objetivo ao dizer que quem bebe a água da mandioca só possui vida até que ela chegue ao seu estômago23.
Nestes dois exemplos, o termo “água” foi empregado pelos missionários para descrever o líquido venenoso que era extraído da mandioca a partir de técnicas e instrumentos indígenas. Como os nativos já sabiam reconhecer as duas plantas e extrair o veneno da mandioca brava a partir de uma prensa denominada tipiti, o processo de aprendizado a partir da observação mostrou-se, mais uma vez, indispensável aos colonizadores.
Esse domínio técnico e empírico por parte das populações indígenas evidencia um conhecimento sofisticado sobre botânica e alimentação, que impressionou os primeiros europeus e foi decisivo para a integração da mandioca à dieta colonial. Segundo a antropóloga Berta Ribeiro, na obra O índio na cultura brasileira (2013)24, os indígenas brasileiros foram protagonistas de uma verdadeira revolução alimentar, ao desenvolverem não apenas técnicas de domesticação, mas também de cultivo sustentável, processamento e armazenamento de alimentos como a mandioca. Para Ribeiro, a transformação de uma planta venenosa em base alimentar evidencia uma inteligência prática e uma racionalidade técnica que foram apropriadas e incorporadas ao cotidiano dos colonizadores - ainda que sem o devido reconhecimento de sua origem.
Após observarem como os indígenas americanos distinguiam as espécies de mandioca, muitos colonizadores optaram por utilizar nomes diferentes, tais como os nativos, para cada uma das espécies. Jean de Léry25 escreveu que: “Os americanos têm duas espécies de raízes, a que chamam aypi e maniot que crescem dentro da terra em três ou quatro meses, tornando-se tão grossas como a coxa de um homem e longas de pé e meio mais ou menos.”. Já Soares de Sousa26 diferenciou as duas espécies afirmando que: “Dá-se nesta terra outra casta de mandioca, a que o gentio chama aipins, cujas raízes são da feição da mesma mandioca, a rama e a folha são da mesma maneira, sem haver nenhuma diferença.”. O termo macaxeira também foi empregado por Brandão27 para descrever e diferenciar a mandioca mansa.
Com frequência os colonizadores adotavam esses termos: chamavam de aipim ou macaxeira a mandioca brava, reservando o nome “mandioca” apenas para a espécie venenosa da planta. Isso facilitava tanto a eles quanto aos seus leitores identificarem qual a variedade que estavam observando e descrevendo. Diferenciar as variedades de espécies da mandioca, entretanto, era apenas o primeiro passo. Para que pudessem adotá-la como alimento diário, os colonizadores precisavam se atentarem para o fato de como a raiz era cultivada, beneficiada e consumida. As técnicas agrícolas, formas de colheita, meios de preparo e produção de outros alimentos eram os demais pontos com os quais os colonizadores tiveram de se preocupar.
Esse processo de apropriação, como observa Berta Ribeiro28, não se deu de forma unilateral. Ao contrário, ele expõe o quanto a experiência indígena foi essencial para a constituição de práticas alimentares, agrícolas e culturais no Brasil colonial. As técnicas indígenas de cultivo e beneficiamento da mandioca não apenas garantiram segurança alimentar, como também criaram as bases de uma culinária que se tornaria profundamente enraizada na cultura brasileira. Trata-se, portanto, de reconhecer que a mandioca, muito além de um alimento, é também um legado indígena de saber-fazer, cujas raízes simbólicas e materiais continuam alimentando o país até os dias de hoje.
A arte de cultivar
Os fundamentos essenciais de um sistema alimentar são determinados pelos produtos resultantes de processos culturais, como domesticação e adaptação da natureza29. No caso da mandioca, esses processos começaram há aproximadamente 9 mil anos, explicando as grandes plantações encontradas pelos europeus ao chegarem ao Novo Mundo30. Originária da zona de transição entre a floresta Amazônica e o Cerrado, a mandioca prosperou em climas tropicais e subtropicais, com temperaturas entre 20º e 27º C. Requer solo não alagado, exposição direta ao sol e, quando essas condições são atendidas, adapta-se bem e pode ser cultivada com relativa facilidade31.
Soares de Sousa registrou que a mandioca era plantada “[...] em covas redondas como melões, muito bem cavadas, e em cada cova se met[iam] três [a] quatro pauzinhos da rama, de palmo cada um, [...]”. Sua rama “[...] arrebenta [...] dos nós destes pauzinhos aos três dias até os oito, segundo a fresquidão do tempo [...]”. O tamanho “[...] da raiz e da rama da mandioca é conforme a terra em que a plantam, e a criação que tem; mas, ordinariamente, é a rama mais alta que um homem, e a partes cobre um homem a cavalo [...]32. Segundo o senhor de engenho, a raiz poderia ser cultivada “[...] em todo o ano, não sendo no inverno, e quer mais tempo seco que invernoso, [pois] se o inverno é grande apodrece a raiz da mandioca nos lugares baixos.”.
Brandão33 chegou a justificar o nome “raiz de pau” pelo fato de a planta ser cultivada dessa forma. Léry34 também se impressionou com a forma, que sem maiores cuidados, o caule mole e frágil enterrado dava origem a grossas raízes sob a terra. Outro elemento que se mostrou muito vantajoso aos colonizadores foi o fato de a raiz da mandioca não precisar ser colhida logo após sua maturação. Isso possibilitava seu armazenamento na própria terra por vários meses. Essa prática tinha uma importância estratégica, pois devemos lembrar da dificuldade de conservar alimentos em um ambiente quente e úmido como a Mata Atlântica35. Gandavo36 demostrou isso ao afirmar que: “[...] se logo as não querem arrancar para comer, cortam-lhe a planta pelo pé, e assim estão estas raízes cinco, seis meses debaixo da terra em sua perfeição sem se danarem: e em São Vicente se conservam vinte, e trinta anos da mesma maneira.”.
A capacidade de reprodução vegetativa da mandioca, sem a necessidade de sementes, também foi uma vantagem destacada nos relatos históricos. Esta característica permitia que a raiz fosse recolocada no solo logo após a colheita, facilitando o cultivo37. Colonizadores como Léry38 observaram admiravelmente essa capacidade, descrevendo como bastava enterrar um pedaço do caule para que novas raízes se formassem em poucos meses. Além disso, os colonizadores enfrentavam preocupações com pragas, como formigas e lagartas, que causavam danos significativos às plantações, enquanto aves como a arara e o sabiá-pitanga também se alimentavam da mandioca, resultando em prejuízos nas plantações39.
Descrever técnicas de cultivo e pragas que ameaçam as plantações, demonstram o grande interesse dos europeus em conhecer a raiz do Novo Mundo. Se a mandioca se mostrou importante para os colonizadores em poucos anos de colonização, quem dirá aos indígenas que a tinham como alimento básico de suas dietas há muito mais tempo. Sua importância nas culturas americanas, sempre esteve associada a uma grande dádiva. Diversas lendas sobre a raiz explicavam sua origem. Andre Thevet descreveu que: “[..] os indígenas afirmam ser de seu grande Caraíba [...] dizendo que foi ele quem lhes ensinou a fazer e a usar o fogo, e a como plantar as raízes, a eles que antes viviam apenas de folhas e ervas [...]”40.
Não é de se estranhar que uma raiz tão importante seja considerada um presente divino. A mesma planta que podia ter suas raízes assadas ou cozidas, também era responsável por fornecer diferentes produtos, como as bebidas fermentadas, mingaus, beijus e demais farinhas de mandioca. Os produtos da terra não só foram objetos de análise dos europeus como saciaram suas fomes em diversos momentos. Como veremos, as discussões acerca do emprego desses novos elementos demonstram as tentativas europeias de justificarem seus consumos.
Produtos da terra: farinhas, cauim e beijus
Como já afirmamos, os indígenas americanos não apenas reconheciam as espécies da mandioca, mas possuíam técnicas para retirar o ácido cianídrico da mandioca brava. Para isso, eles utilizavam uma espécie de engenho trançado denominado tipiti. Segundo a antropóloga Lila O’Neale41, “em todas as descrições disponíveis de espremedores de mandioca os detalhes básicos são semelhantes.”. O tipiti caracteriza-se por finas lâminas trançadas de maneira apertada e cilíndrica. Medindo de 1,52 a 2,44 m de comprimento e 12,7 a 17,7 cm de diâmetro, o tubo possui laços em seus dois extremos. Apresentando uma abertura em um dos lados, o laço superior possibilita a suspensão da prensa por um suporte. Já o laço inferior, localizado logo após o término do tubo fechado, apresenta uma alavanca. Para utilizá-lo, basta encher o tipiti com a polpa de mandioca e esticá-lo, fazendo com que a pressão expulse todo o líquido presente ali.
Esse “líquido”, também chamado de “veneno” ou “peçonha” pelos quinhentistas europeus, trata-se do ácido cianídrico que, uma vez retirado, permite que a raiz seja utilizada sem maiores problemas. Hans Staden, ao observar a produção de farinha, relatou que os nativos: “[…] trituram as raízes sob uma pedra [...]. Estas são espremidas com um assim chamado tipiti, que é feito da casca da palmeira, para tirar o suco.”42. Observações como esta eram recorrentes porque os indígenas, geralmente, utilizavam a mandioca brava para produzir suas manufaturas, reservando a mandioca mansa para ser consumida assada.
Com a massa proveniente do tipiti, os nativos produziam seus outros alimentos. Alguns deles são as farinhas, muito descritas pelos viajantes. Duas de suas variedades principais foram apresentadas por Fernão Cardim43 da seguinte forma:
Dessas raízes espremidas e raladas se faz farinha que se come; também se deita de molho até apodrecer, e depois limpa, espremida, se faz também farinha […] Essa mesma raiz depois de curtida n’água feita com as mãos em pilouros se põe em caniços ao fumo, onde se enxuga e seca de maneira que se guarda sem corrupção quanto querem e raspada do fumo, pisada em uns pilões grandes, e peneirada, fica uma farinha tão alva, e mais que de trigo, da qual misturada em certa têmpera com a crua se faz uma farinha biscoitada que chamam de guerra, que serve aos índios, e portugueses pelo mar, e quando vão à guerra como biscoito. Outra farinha se faz biscoitada da mesma água da mandioca verde se a deixam coalhar e enxugar ao sol, ou fogo; esta é sobre todas alvíssima, e tão gostosa e mimosa que não faz para quem quer [...].
Algumas questões deste relato merecem nossa atenção. Em primeiro lugar, a mandioca utilizada neste preparo era a brava, já que foi necessário espremê-la antes de iniciar o processo. Cardim também está descrevendo a farinha de guerra e a farinha seca. A primeira era empregada pelos indígenas em suas batalhas - o que explica seu nome - e, posteriormente, adotada como alimento nas embarcações europeias devido seu maior tempo de conservação. Já a farinha seca, apesar de durar um pouco menos, era considerada mais saborosa e de maior valor.
Temos um último elemento importante: a comparação da farinha com o trigo. Cardim não fez isso por acaso. Os europeus tentaram, por diversas vezes, introduzir o trigo (Triticum spp.) na América portuguesa, mas estas tentativas não foram bem-sucedidas. Gandavo44 também relatou esta dificuldade escrevendo que: “Nesta capitania se deu já trigo, mas não o querem semear por haver na terra outros mantimentos de menos custo.”. O padre Anchieta45, também afirma que alguns ricos comiam a farinha de trigo de Portugal, o que nos sugere que sua importação à colônia era cara e estava reservado a uma pequena minoria. Por essas questões, a farinha de mandioca substituiu a farinha de trigo na alimentação dos europeus no Novo Mundo, o que deu a mandioca mais um título: o de pão da terra.
O cauim era outra manufatura indígena preparada a partir das raízes da mandioca. O consumo de bebidas fermentadas alcoólicas já era uma prática generalizada entre os povos indígenas do leste da América do Sul há muito tempo. Por conta de seu efeito embriagante, elas acabaram sendo traduzidas e registradas pelos viajantes quinhentistas como “vinho” e, com bem menos frequência, como “cerveja”. Cauim em Tupinambá e caguy em Guarani, na realidade, definem, de forma genérica, qualquer tipo de bebida fermentada alcoólica, sem considerar os ingredientes utilizados e sua forma de preparo46. No entanto, o cauim produzido a partir da mandioca é o mais descrito nas fontes históricas e, por isso, trataremos dele aqui.
Léry foi um dos europeus que mais escreveu sobre o cauim. De acordo com seus relatos, os indígenas utilizavam tanto as raízes do aipim (Manihot esculenta) quanto da mandioca (Manihot utilissima) para preparar sua bebida. Obviamente, no segundo caso, precisariam retirar o ácido cianídrico como já demonstramos acima. Léry47 afirma que depois de cortarem as raízes em rodelas finas, as mulheres indígenas ferviam-nas em grandes vasilhas de barro cheias de água. Depois que estivessem amolecidas, elas mastigavam as rodelas e a cuspiam em outras vasilhas que iria novamente ser fervida. A pasta que se formava era, finalmente, colocada para fermentar.
Além de observar o preparo do cauim, Léry também tentou reproduzi-lo. No entanto, como sentia repulsa em ver as mulheres mastigando as raízes, tentou produzir um cauim sem mastigação, mas logo se deu conta que a bebida não ficava boa como a dos nativos. O francês provou na prática a parte mais importante do preparo do cauim. A fermentação da bebida era acelerada justamente devido à saliva proveniente da mastigação das raízes. Quando queriam aumentar o nível de teor alcoólico, os nativos adicionavam mel, frutas, fungos ou outros vegetais48. O cauim também podia ser consumido como um mingau, no início de sua fermentação, que geralmente ficava reservado à alimentação das crianças49.
O tempo de fermentação da bebida era o que ditava o tamanho das festas indígenas que podiam ser pequenas reuniões entre as casas vizinhas, rituais de passagem (nascimento, menarca, nominação, morte etc.) ou grandes festivais antropofágicos50. Nestes últimos, os indígenas matavam o prisioneiro de guerra que haviam capturado e alimentavam-se dele.
Os rituais antropofágicos, tão místicos dentro das culturas nativas, eram marcados por uma série de preparativos. Thevet51 relatou a execução de um prisioneiro indígena da seguinte forma: “O dono deste, como dissemos, convida todos os seus amigos para o grande dia, para que venham comer sua parte dos despojos e beber muito cauim (bebida feita de milho e raízes).”. O ritual mais completo envolvendo o cauim era o antropofágico. Preparar a bebida era como preparar o inimigo. Os tupis da costa só podiam beber seu primeiro cauim depois de terem matado um inimigo, ou seja, uma coisa estava indissociável da outra52.
Uma descrição muito comum entre os viajantes é o fato de os indígenas não comerem e beberem ao mesmo tempo. Fernão Cardim53 escreveu sobre esse costume da seguinte forma: “De ordinário não bebem enquanto comem, mas depois de comer bebem água, ou vinho, que fazem de muitos gêneros de frutas e raízes [...] do qual bebem sem regra, nem modo e até caírem.”. Essa prática que causou tanto estranhamento aos europeus, acostumados com banquetes repletos de bebidas e alimentos, pode ser compreendido pelo fato de que os indígenas tupis não diferenciavam o comer do beber. De acordo com Câmara Cascudo54, eles expressavam ambos através do mesmo verbo: ú. As diferenciações só surgiram, posteriormente, quando eles começaram a ser catequizados pelos missionários jesuítas.
Por fim, os beijus também são encontrados com frequência nos relatos quinhentistas, apesar de suas descrições serem menos elaboradas que as das farinhas e cauim. Gandavo55 escreveu que os beijus, feitos a partir da raiz da mandioca, eram muito alvos e preferível por muitos moradores no lugar da farinha por ter uma digestão melhor. Brandão56 relatou que os beijus, que também eram chamados tapioca, serviam como pão na colônia e poderiam durar por muitos dias. Nos dois casos expostos, os beijus foram comparados com as obreias europeias.
Os indígenas aproveitavam quase tudo que a mandioca lhes fornecia. Até mesmo suas folhas não eram descartadas. Eles utilizavam-nas no preparo da maniçoba: um alimento importante em tempos de fome e usado por muitos como mantimento na colônia57. Assim, podemos afirmar que a mandioca é o alimento mais popular da dieta americana desde muito antes dos colonizadores pisarem no continente. Os múltiplos aspectos que permeiam desde seu cultivo até sua transformação em comida, conferem-lhe considerável importância histórica, econômica e social58.
Mulheres que nutrem com suas mãos
Uma questão importante que encontramos analisando as fontes quinhentistas foi a divisão de tarefas presente dentro das culturas nativas do que viria a se chamar América portuguesa. Enquanto os homens ficavam responsáveis pela caça, pesca e batalhas, as mulheres eram encarregadas do cultivo e do preparo de alimentos. Dentre esses alimentos estava a mandioca. Assim, as mulheres indígenas cuidavam de todos os processos que envolviam a raiz: do cultivo do solo até a elaboração de farinhas, cauins e beijus.
Após observar os costumes dos tupinambás, Thevet59 relatou que as mulheres trabalhavam incomparavelmente mais que os homens, pois eram encarregadas de cultivar o solo, colher raízes e frutos, preparar farinhas e bebidas, além de serem responsáveis por todos os serviços familiares. Os homens, por sua vez, saiam para pescar ou caçar, eventualmente, e confeccionavam arcos e flechas. Ao aproximar-se da aldeia de Ubatuba, Hans Staden60 também se deparou com várias mulheres cultivando roças de mandioca, enquanto outras haviam acabado de colhê-la. O único relato que encontramos no qual os homens são citados cuidando das plantações foi o do jesuíta Manoel da Nóbrega61.
Os cronistas sempre deixaram muito claro que todos os processos da mandioca eram feitos por mãos femininas. Em uma clara hierarquização de gêneros, Thevet62 afirmou que: “Todo o processo de plantio, colheita e preparo das raízes é deixado às mulheres, pois os homens consideram tal ocupação indigna deles.”. Léry63 reforçou ainda mais essa ideia ao escrever, depois de visualizar o cotidiano dos tupinambás, que as mulheres faziam todo o preparo do cauim:
[…] tendo os homens a firme opinião de que se eles mastigarem as raízes [...] a bebida não sairá boa. Consideram tão indecente ao seu sexo meter-se neste trabalho quanto nós consideraríamos indecente que os camponeses seminus da Bresse ou de outras regiões pegassem na roca para fiar.
Além de prepararem as manufaturas, as mulheres realizavam praticamente todas as outras atividades que, de alguma forma, relacionavam-se com elas. No caso dos rituais antropofágicos, a partir do momento em que se decidia a data em que o prisioneiro iria ser morto, as mulheres já começavam a preparar todos os utensílios necessários: panelas, alguidares, potes grandes para os vinhos, etc.64. Quando o cauim era finalmente consumido, também eram as mulheres as responsáveis por entregar a cada homem sua cuia cheia de bebida. No caso da farinha, as indígenas estavam envolvidas até mesmo no momento de levar a farinha-de-guerra para as expedições guerreiras de suas tribos65.
Relatos como estes nos permitem compreender a quantidade de informações oferecidas por estes viajantes. Devemos recordar que eles estavam empenhados em conhecer e descrever tudo que fosse possível. No caso da mandioca, não bastava reconhecer apenas a raiz, era necessário entender como ela podia ser usada e como estava inserida na alimentação cotidiana dos americanos.
Ao refletir sobre essa divisão de tarefas, destaca-se a centralidade do papel feminino no processo de domesticação e transformação da mandioca. A elaboração dos alimentos derivados dessa raiz - como o beiju, a farinha e o cauim - só foi possível graças a uma rede de conhecimentos construídos e transmitidos por gerações de mulheres indígenas, em um verdadeiro saber técnico e sensível. É fundamental reconhecer a mulher indígena não apenas como figura auxiliar, mas como agente histórica do processo civilizatório alimentar no continente americano66.
Esse protagonismo feminino no trato com a mandioca ilustra uma sofisticada tecnologia social e agrícola que remete à divisão sexual do trabalho nos grupos indígenas. As técnicas utilizadas demonstram uma lógica própria de organização produtiva onde a mulher ocupava papel central - não apenas no preparo, mas também na transmissão de técnicas e no cuidado com os elementos da cultura material ligados à alimentação indígena67.
Conclusão
A partir do século XVI, as biotas, que haviam se desenvolvido de forma completamente distinta desde a separação dos continentes, voltaram a convergir em razão da expansão marítima europeia, que interligou regiões até então isoladas. Esse processo, conhecido como troca colombiana, impactou profundamente diversas esferas da vida, sendo a nutrição uma das mais transformadas. O aumento do número de espécies alimentares disponíveis provocou alterações significativas no valor nutritivo das dietas em escala global. Em outras palavras, os efeitos desse intercâmbio ecológico moldaram de forma profunda a história da alimentação no período moderno68.
Identificar uma planta que poderia ser transformada em alimento era uma tarefa estratégica de subsistência. Estratégia esta que deveria ser organizada de acordo com as possibilidades apresentadas pelo meio ambiente e levando em consideração fatores econômicos, sociais e culturais69. A mandioca não despertou a curiosidade dos europeus à toa. Podemos imaginar como era importante encontrar uma planta com tamanha diversidade alimentar. Assada ou sob a forma de suas manufaturas, a mandioca passou a compor a alimentação de todos dentro da colônia. Sendo que por muitas vezes, transpassava o que entendemos como alimento atualmente, já que era empregada nas mais diversas circunstâncias, como picadas de cobra e febres de crianças.
Assim, acreditamos ter alcançado nosso objetivo de evidenciar, a partir das fontes quinhentistas, a centralidade da mandioca no processo de adaptação dos europeus ao ambiente americano. A História da Alimentação, nesse sentido, oferece caminhos frutíferos para compreender as complexas relações entre colonizadores e povos originários, especialmente no que se refere ao compartilhamento - voluntário ou imposto - de saberes e práticas alimentares. Reconhecer o protagonismo indígena nesse processo é essencial para romper com uma historiografia que historicamente marginalizou esses conhecimentos. Defendemos, portanto, uma abordagem histórica que supere visões antropocêntricas e eurocentradas, privilegiando a análise das interações entre os seres humanos e o ambiente que habitam, e considerando os alimentos, como a mandioca, como chaves interpretativas fundamentais para a compreensão da história da colonização.
Resumo
Main Text
Introdução
A raiz com feição de inhames e batatas
Manihot esculenta e Manihot utilissima
A arte de cultivar
Produtos da terra: farinhas, cauim e beijus
Mulheres que nutrem com suas mãos
Conclusão