Comer e beber “até perder o juízo”: o pecado da gula na literatura religiosa publicada em Portugal, século XVIII
Resumen
Em Portugal do início do século XVIII foi profícua a impressão de livros religiosos que pedagogicamente visavam a instruir como os leitores deveriam evitar ações, pensamentos e sentimentos pecaminosos para adquirir condutas e virtudes entendidas como adequadas à moral e à fé católica. Entre as atitudes a serem controladas e modificadas estavam aquelas relacionadas ao consumo exagerado, prazeroso e curioso de comidas e bebidas. Neste artigo, a partir de um conjunto de obras religiosas impressas em Portugal, identificamos e analisamos os discursos sobre a gula, atentando aos significados religiosos e culturais do consumo alimentar demasiado, às instruções sobre os modos de evitar e remediar o “vício” e às percepções sobre os efeitos nocivos ao corpo e à alma. A partir de referenciais teórico-metodológicos da história cultural, e em diálogo com a historiografia voltada à alimentação e às ideias católicas da Idade Moderna, buscamos compreender os códigos culturais e simbólicos que conformavam os entendimentos da gula enquanto pecado. Em universo social fortemente cristão, concluímos que a escrita sobre a moderação no comer e no beber carregava juízos quanto aos comportamentos considerados legítimos para a garantia da salvação e reafirmava os propósitos da Igreja Católica no domínio moral dos corpos e das almas.
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