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in Práxis Educativa
Por que a docência? Marcadores sociopedagógicos do desenvolvimentoprofissional de aspirantes à carreira docente
Resumo:
A formação e a experiência de vida para além do espaço universitário incidem noprocesso de desenvolvimento profissional docente. Neste artigo, sustenta-se esseargumento por meio da análise de alguns marcadores sociopedagógicos de um grupode estagiários dos cursos de Ciências Biológicas e Pedagogia. O objetivo éfocalizar diferentes aspectos que perfazem a construção da docência, desde antesdo ingresso na universidade, reconhecendo que tais experiências se atualizam nomomento do estágio e, por isso, carecem de reflexão. A problemática de pesquisapode ser expressa da seguinte forma: Quais efeitos as imagens socializadas dadocência exercem sobre os aspirantes à carreira docente? A reflexão sobre taisaspectos permite, dentre outras, a qualificação da atuação docente em sala deaula, bem como a construção de bases para a formação de professores desde oponto de vista dos acadêmicos.
Main Text
Apresentação
Por um longo tempo, a profissão docente firmou-se como profissão especial, dentre asdemais, com argumentos simples como a do "prestígio e nobreza da atividade” ou a deque "pelas mãos do professor passam todas as outras profissões”. No meio acadêmico,cultivamos uma saudável desconfiança quando essas ideias são expressas, embora hajacerta razoabilidade sobre essa especificidade. A desconfiança vem do fato de que acrença em ser especial, diferente dos demais ofícios, facilmente induz a pensar queseu exercício depende de um dom, de uma iluminação ou de certa característica inata,o que constrói uma ponte direta entre ação e normatização, entre realidade etranscendência.
Como professoras formadoras, percebemos que muitos dos licenciandos que chegam aosbancos universitários com essa compreensão de docência, ao longo do curso, tendem ase acomodar e, depois, a se adaptar aos processos pedagógicos institucionalizados.Já a razoabilidade pauta-se na própria concepção da profissão, que trata a formaçãoe a autoformação como processos sincrônicos e interdependentes. Por isso, desenvolveum modo característico de estar no mundo, analisar a cultura, a política, aeconomia; enfim, todos os campos que alimentam as dimensões ética, estética eexpressiva da profissão, retrogerando elementos de formação humana. Talvez, em razãodisso, em diferentes ambientes sociais, o professor diferenciou-se por sua posturacrítica, seus argumentos explicativos, sua habilidade de expressão, retórica epercepção, sua capacidade de organização e de articulação de ideias.
Sabemos que existem certos mitos em torno do exercício da docência e, em vista disso,entendemos que é preciso desestabilizar esse arcabouço ao longo do curso delicenciatura. São mitos constituídos em torno de ideias articuladas à vocação, àmaternagem, à educação como salvação, que permeiam os processos de formação deprofessores, indicados como razões que sustentam as escolhas pela docência. Tardif (2013) explica que o trabalho doprofessor ainda admite modos de realização e de organização que remontam por váriosséculos e que, basicamente, três formatos de conceber a tarefa de ensino têmperdurado: como vocação, ofício ou profissão. Tendo isso em vista, perguntamos:Quais efeitos as imagens socializadas da docência exercem sobre os aspirantes àcarreira docente? Refletir sobre tais imagens permite, dentre outras, a qualificaçãoda atuação docente em sala de aula, bem como a construção de bases para um debatesobre o sentido da formação de professores desde o ponto de vista dos acadêmicos.Para isso, lançar mão de estratégias que façam emergir as crenças e os valores queos licenciandos carregam desde suas experiências de vida, em outros espaçoseducativos, são ações profícuas que permitem ampliar as possibilidades decompreensão sobre o que fundamenta determinadas formas de docência.
Nessa esteira compreensiva, este texto aborda alguns marcadores sociológicos epedagógicos que caracterizam um grupo de estagiários dos cursos de licenciatura emPedagogia e em Ciências Biológicas de uma Instituição de Ensino Superior pública. Oobjetivo é focalizar diferentes aspectos que perfazem a construção da docência,desde antes do ingresso na universidade, reconhecendo que tais experiências de vidase atualizam no momento da prática do estágio supervisionado e, por isso, carecem dereflexão. Definimos marcador sociológico como todo e qualquer traço de origemcultural ou social que caracteriza um determinado sujeito ou grupo de sujeitos esobre ele incide, produzindo uma determinada posição ou forma de relacionar-se oucompreender sua ação no mundo, dentre elas, a de exercitar uma determinada atividadeprofissional, como é o caso do ensino. Já, como marcador pedagógico, entendemos oconjunto de razões ou de motivações que mostram, sugerem ou justificam as escolhas eas formas de agir dos estagiários.
Na primeira seção deste texto, apresentamos alguns aspectos que justificam esubsidiam o processo de formação humana e da docência, ancorando essas experiênciasem uma perspectiva intersubjetiva, complexa e disposicional. Na segunda,consideramos esta opção teórico-conceitual para discutirmos hermeneuticamente osmarcadores sociológicos e pedagógicos identificados na pesquisa realizada junto aosacadêmicos/estagiários dos cursos investigados. Nessa abordagem, levamos emconsideração diferentes estudos da área e o processo reflexivo que realizamos emnossa experiência como formadoras, em um jogo entre texto e contexto, familiaridadee estranheza, de modo que movimentos da historicidade do pensamento da formação seaproximassem das experiências e dos preconceitos expressos com as disposições dosacadêmicos. Para Gadamer (2005, p. 497), essa"fusão de horizontes” significa "[...] pôr-se de acordo na linguagem e nãotransferir-se para o outro e reproduzir suas vivências”. Nesse sentido, olhamos demodo atento para cada marcador evidenciado na investigação, considerando aspectosque fortaleceram compreensões históricas - movimentos culturais e políticos,especialmente - para distingui-las de visões particulares dos acadêmicos.Acreditamos que essa perspectiva epistemológica expõe possibilidades para recomporas práticas formativas no interior dos cursos de formação de professores.
Complexidade formativa e elementos do desenvolvimento profissionaldocente
Decorrente da experiência de supervisão de estágio e da interlocução entre pares,nossa observação é de que ainda são escassas e pouco efetivas a realização deestratégias que contemplem um olhar apurado e de incorporação de elementosformativos constituídos pelos sujeitos em outros espaços, para além da sala de aulada universidade. Embora seja corrente na literatura e no discurso pedagógico aafirmação sobre a necessidade de conhecer quem são os sujeitos que compõem a classecom a qual se realizam as atividades formativas, escutando e valorizando seusconhecimentos, nos espaços institucionais de formação de professores, pouco seestruturam ações que de fato articulem esses marcadores.
A suspeita é de que isso acontece porque não é corrente realizar levantamentosefetivos sobre o perfil dos estudantes que ingressam em um curso de formação deprofessores e, quando ocorrem, a análise apurada dessas características -especialmente daquelas que demarcam modos de pensar, de acessar bens culturais, deestabelecer relações - é pouco aprofundada. Nossa aposta é de que a composição dessepanorama permitiria aos professores formadores ampliar sua atitude metodológica, namedida em que poderiam conhecer melhor os campos de interesse e as demandas dosestudantes, esclarecendo, em contrapartida, o papel e os limites da profissãodocente. A compreensão produzida em torno dessas dimensões aproximar-se-ia, ainda,de uma concepção mais integral ou humana acerca do próprio processo formativo,presente na ideia de Bildung.
Tendo em vista a extensão da tarefa formativa, assim como das transformaçõessofridas, tanto no âmbito da formação de professores, quanto no percurso conflitivoda ideia de Bildung, talvez apenas se possa vislumbrá-la encobertapelo nevoeiro das urgências contemporâneas. De todo modo, pensar a formação noespaço da universidade vai além de uma racionalidade funcionalista ou técnica; exigea construção de experiências sobre o sentido da educação para a humanidade e, emdecorrência, sobre o compromisso ético da docência com a historicidade doconhecimento e sua disposição às novas gerações.
O conceito de formação é, conforme Gadamer, genuinamente histórico, distinguindo-seda lógica própria da racionalidade instrumental, contornando-se mais como processode devir e menos como transferência do devir para o ser. Essa distinção é importantepara entendermos que "[...] o resultado da formação não se produz na forma de umafinalidade técnica, mas nasce do processo interior de formulação e formação,permanecendo assim em constante evolução e aperfeiçoamento” (GADAMER, 2005, p. 46). Esses processos de formulação eassimilação, por não estarem submetidos à lógica da funcionalidade, constituem-se detodas as experiências vivenciadas, em uma tentativa de preservar o caráter históricodos acontecimentos.
Desse modo, uma aproximação possível entre a concepção de formação e os processosinstitucionais de formação de professores está em considerar a pluralidade - denormas, pensamentos e formas de vida - como elemento primordial da construção dadocência. Isso porque é na relação entre entendimento e aceitação - em suasvariantes complementares ou negativas - que a ação pedagógica busca motivos paracompor-se. Nesse sentido, Hermann (2002, p.88) lembra que "[...] é uma ilusão considerar que podemos clarear todasas motivações e interesses que subjazem à experiência pedagógica”, pois "[...] osprocessos pedagógicos, a despeito do domínio buscado por diferentes técnicas, trazemconsigo o movimento próprio da existência humana, que é a tensão entre iluminação eencobrimento”.
Em uma perspectiva sociológica, os estudos de Bernard Lahire (2004) descrevem os processos de complexificação da noção deindivíduo "[...] como uma realidade social caracterizada por sua possível (provável)complexidade disposicional, que se manifesta na diversidade dos domínios de práticasou cenários nos quais esse indivíduo insere suas ações” (LAHIRE, 2004, p. ix). A partir dessa noção, é possívelencontrar elementos que explicam tal complexidade, indicando que esta acontece ecomeça "[...] a partir do momento em que se dispõe, para um mesmo indivíduo, aomenos dois comportamentos que podem ser comparados em contextos diferentes” (LAHIRE, 2004, p. ix). Como ilustração, podemospensar na relação que um indivíduo estabelece com um objeto cultural, a literatura,por exemplo, ou com a prática de leitura, o ato de ler, que, no espaço acadêmico,acontecerá de uma determinada forma, diferente do que se observará em outroscontextos. Para o indivíduo, lidar com a prática de escrita, na universidade, ésempre um desafio em função da dificuldade de articular os elementos textuaispróprios do texto dissertativo. Essa prática de escrita é diferente daquelasrealizadas em outras esferas da vida cotidiana como, por exemplo, quando secorresponde com um familiar ou impetra uma reclamação em órgão público.
Com base nesses subsídios, resguardar o pluralismo das experiências dos indivíduos emdiferentes contextos, reconhecendo-as como singulares, sugere que elas sejamentendidas como conteúdos a serem explorados na sala de aula universitária. É pormeio desse movimento de abertura às singularidades que se evidencia a complexidadedisposicional e contextual, ou seja, reconhece-se que há uma variedade dedisposições - formas de agir e crer - de um mesmo indivíduo, construídas emanifestas em contextos distintos: na família, na escola, no espaço de trabalho, noclube, na igreja, com os amigos. Essas disposições necessitam ser tensionadas aolongo da formação profissional, tendo em vista que, muitas vezes, podem ser ativadasem situação de docência. São experiências que se caracterizam por valores, crenças,conhecimentos, práticas que constituem o sujeito professor.
Provocadas por essas bases filosóficas e sociológicas e considerando situaçõesobservadas durante o processo de acompanhamento dos acadêmicos via análise dos seusrelatórios de estágio, percebemos que, algumas vezes, não eram os denominadossaberes da formação - definidos pelo programa curricular dos cursos em estudo - quesustentavam suas ações. Eram saberes com uma inscrição formativa de outros espaçosque predominavam em sua forma de explicar as razões de sua ação docente. Comoexemplo, lembramos aqui da reverberação dos discursos sobre "aprender com prazer”, o"amor pela docência”, a valorização da educação como redentora e renovadora domundo, etc.
Lahire (2004), em sua pesquisa, adverte para operigo das generalizações que, muitas vezes, tendemos a fazer, o que leva a pensar ea produzir uma percepção homogênea sobre quem são os aprendizes da docência que osdessingulariza, simplesmente. As advertências que são feitas sobre a relevância dese considerar os sujeitos em sua complexidade sociocultural (DAYRELL, 2006) ou em seus saberes de vida (FREIRE, 1996) são pautas que estão presentes nos projetospedagógicos dos cursos frequentados pelos participantes do estudo. Nessa direção, aintenção que nos acompanha é a de compreender em que medida e de que forma as açõesdos professores formadores, em especial durante o período de estágio, podemarticular os diferentes saberes, não só os pedagógicos, que supostamente sãoconstruídos ao longo da formação, mas, principalmente, aqueles saberes que sãotrazidos pelos estagiários desde sua complexidade disposicional e contextual.
A partir da perspectiva filosófica - formação como Bildung - esociológica - o indivíduo desde a sua complexidade disposicional -, colocamos emevidência o entendimento de que o aprendiz da docência em um curso de licenciaturatambém é formado pelas experiências vividas em outros espaços institucionais, comoas instituições religiosas, as associações ou grupos culturais, os espaços detrabalho, os ambientes com ou sem recursos tecnológicos de comunicação interativa,as bibliotecas públicas, os grupos desportivos, as atividades voluntárias eminstituições não-governamentais, entre outros. Nessa direção, caberia perguntar: emque medida a formação docente inicial e a vivência na universidade conseguemdialogar com essas outras experiências formativas do estagiário?
O que temos levantado como suspeita é que, quando os acadêmicos chegam ao momento doestágio curricular, muitas dessas experiências construídas em outros espaços de vidasocial e de trabalho também são ativadas. Em alguma medida, nesse período, taisconhecimentos podem ser identificados como potencializadores - referentes de açõese/ou modelos, positivos ou não - do processo formativo para docência, incrementandoas discussões ocorridas entre acadêmicos e professores da universidade. Ou seja, oarcabouço experiencial dos acadêmicos pode ser tomado como cenário no qual aformação docente acontece, especialmente para articular os diferentes contextosculturais e políticos que constituem, perpassam ou subjazem as práticas educativas.Enfim, desconfiamos de que um olhar atento a tais aspectos poderá auxiliar noprocesso de des/reconstrução de determinadas ações pedagógicas constitutivas doprocesso de formação docente inicial.
Diversas pesquisas desenvolvidas após os anos de 1980 (NÓVOA, 1995, 2012; PIMENTA, 1999; MIZUKAMI, 2006; TARDIF; LESSARD,2005) informam que trazer para o centro da investigação os professores ea sua atividade e os processos de aprendizagem em comum realizados entre osprofessores e destes com pessoas em outros ambientes da sociedade facilita aconsolidação de práticas de colaboração profissional e a criação de espaçoscoletivos de trabalho pedagógico. É no espaço coletivo que os sujeitos se veemdiante da oportunidade de (re)construírem seus saberes, suas lógicas, suas dúvidas;enfim, pensarem sobre as posições teórico-práticas que sustentam sua açãodocente.
O processo de desenvolvimento profissional da docência não está circunscrito apenasao tempo que se frequentam as atividades formativas ao longo de um curso deformação. Uma determinada forma de ação docente é constituída desde as lembranças,as experiências, os processos educativos que foram vividos pelo acadêmico ao longode sua trajetória de vida, algo que ocorre em diferentes contextos socioeconômicos eculturais.
Estudos realizados sobre a natureza da prática profissional (MUNTHE, 2007; MUNTHE; MIDTHASSEL, 2002; NÓVOA, 2009) recomendam como relevante olhar para o que oprofessor faz no cotidiano escolar a partir do conhecimento que é por ele produzido,com base em suas crenças e seus valores, suas certezas e suas incertezas, seusconflitos e suas possibilidades de ação. Tais estudos instigam-nos a ampliar areflexão, pois permitem entender que o sujeito, ao escolher a docência comoatividade profissional, pode reativar ou não elementos que foram decorrentes deexperiências vividas em outros espaços e ambientes.
Nossa posição é de que precisamos considerar como conteúdo do processo formativo asquestões e as situações vividas pelos acadêmicos em outros espaços sociais. Nessesentido, reivindica-se do professor formador posturas e atitudes atentas à realidadeem que os acadêmicos vivem e atuam. Além disso, reconhecemos a importância da escutaatenta às manifestações dos acadêmicos no contexto universitário, procurando nãoapenas identificar quais lógicas e experiências lhes são significativas para a vida,mas também se elas ecoam ou não na forma como vão constituindo sua visão de educaçãoe de trabalho docente. O desafio que se apresenta para os professores formadores é ode trazer para a discussão as concepções tácitas sobre o fazer docente, buscandoentender como os professores agem, "[...] o que pensam, o que fazem e por que ofazem para, colaborativamente, refletir com eles sobre as situações vivenciadas e,se necessário, construir formas de enfrentamento” (REALI; TANCREDI; MIZUKAMI, 2010, p. 482).
Considerando esses elementos teórico-conceituais, entendemos que a identificação demarcadores sociológicos e pedagógicos poderá mostrar elementos para(des/re)construir práticas formativas mais pluralistas. Tais elementos tambémpoderão ser significativos para o desenvolvimento profissional da docência,permitindo, inclusive, realizar processos de análise crítica e de ruptura decrenças, de valores e de concepções que forem explicitados pelos acadêmicos, tantoao longo do curso, como em contexto de estágio curricular.
Na sequência, apresentamos e discutimos alguns marcadores sociológicos e pedagógicosdos acadêmicos dos cursos investigados. Os marcadores sociológicos analisadosestruturam-se em torno de duas naturezas: a primeira envolve aspectos relacionadosàs dimensões de gênero, de geração, de classe social; a segunda abarca asexperiências culturais. Como marcadores pedagógicos, explicitamos o conjunto derazões apresentadas pelos acadêmicos como sustentação da escolha pela profissãodocente.
Alguns marcadores para pensar a formação nas licenciaturas
Concordamos com as ideias de Lahire (2004),especialmente quando ele adverte sobre o fato de que, por meio de reconstruçõeshistóricas, estatísticas ou etnográficas, pesquisadores do campo das ciênciashumanas tendem a, regularmente, realizar totalizações abstratas sobre determinadosgrupos, entre eles, os escolares, às quais nos habituamos. Evidentemente, aconvicção teórica que orientou o estudo de Lahire(2004, p. 45) nos foi importante, especialmente quando este explica que"[...] as diversas práticas, atitudes, etc. de um indivíduo singular não sãoredutíveis a uma fórmula geradora”. Ou seja, nossa intenção não é a de gerar umafórmula para que formadores de professores possam definir estratégias de açãodidática no campo da supervisão de estágio. O que intencionamos é chamar a atençãopara diferentes aspectos que perfazem a construção da docência, extrapolando, assim,o espaço universitário e, muitas vezes, não sendo neste reconhecidos. Certamente,diferente de constituir-se em um entrave a priori, a multiplicidadedessas experiências carrega um caráter potencializador da prática docente, o que setorna mais uma justificativa para as pesquisas nesse campo. Tais estudos podem,talvez, mostrar formas vividas pelos estagiários, que são por eles conduzidas paradentro da escola como jeitos de estar com as crianças e os jovens e/ou como modos deorganizar a prática pedagógica.
O acolhimento dessas formas plurais de exercício da docência expõe o comprometimentoético-estético dos professores formadores - e, consequentemente, dos programas deformação - com as reivindicações próprias de diferentes discursos e manifestaçõesculturais. Não se trata, pois, de uma atitude de desvio do processo formativo, masuma tentativa de promover o confronto de concepções e a ampliação dos horizontes daformação. Nas palavras de Hermann (2014, p.21-22): "Uma experiência pedagógica sensível à pluralidade não poderádispensar um mundo comum, pois ele se constitui à nossa própria autocompreensãomoral, convoca-nos a desenvolver imaginação teórica para responder às exigências donosso tempo”.
Na educação escolar, básica ou superior, tem sido recorrente a condução de açõesvoltadas aos sujeitos que são entendidos ora como homogêneos - são todosalunos/acadêmicos - ora como singulares - cada um é um indivíduo. Nesse contexto,também tem sido frequente o entendimento de que são indivíduos não redutíveis, ouseja, definidos pelo conjunto de suas relações, suas propriedades, seus sentimentos,suas crenças, seus compromissos, seus pertencimentos, seus passados e seus presentes(LAHIRE, 2004). Sua subjetividade é,pois, forjada de forma intersubjetiva, em uma experiência de estranhamento queescapa à lógica da linguagem explicativa e às tentativas metodológicas de abstração,fazendo-se entender apenas como expressão humana que se movimenta em direção a umacultura e, com isso, constitui sua própria singularidade, desde as disposiçõesconstruídas em contextos distintos.
Ao longo de três anos, conduzimos uma pesquisa nos cursos de licenciatura emPedagogia e Ciências Biológicas de uma universidade pública, cujo objetivo foi o deentender quais componentes constituíam a ação docente do professor formador dauniversidade e a ação docente do acadêmico em estágio curricular, visando observarpráticas e estratégias que permitiam a qualificação da atuação docente em sala deaula e a construção de uma reflexão sobre os processos de desenvolvimentoprofissional docente. Entre os procedimentos metodológicos, foi realizada aaplicação de um questionário, atividades de observação das sessões de orientaçãocoletiva de estágio, na universidade, e análise dos relatórios finais.
Em relação ao questionário, o primeiro conjunto de questões buscou informações sobresuas vivências socioculturais para traçar o perfil dos estagiários. Entendendo que olevantamento realizado evidencia singularidades, neste artigo, a intenção é a depropor uma discussão sobre alguns elementos observados e por nós julgadospertinentes, porque, provavelmente, são ativados no processo de docência ao longo doestágio. Para isso, destacamos quatro marcadores que apresentam algumas disposiçõesdos estagiários pesquisados: (1) gênero e idade; (2) participação na sociedadecivil; (3) tipologia da instituição de formação na Educação Básica; (4) razões daescolha ou opção pela licenciatura. Caracterizamos os três primeiros marcadores comode ordem sociológica, e o quarto, de ordem pedagógica. A aplicação do questionáriofoi realizada com três grupos de estagiários: o primeiro grupo (G1) foi composto por23 acadêmicos do 8º semestre do curso de Pedagogia1; o segundo grupo (G2), por 15 acadêmicos do 6º semestre do curso deCiências Biológicas2; o terceiro grupo (G3) foiformado por 14 acadêmicos que estavam no 8º semestre do curso de CiênciasBiológicas.
No que se refere ao marcador "gênero e idade”, dos 52 respondentes, 45 eram do sexofeminino. Dois aspectos parecem-nos pertinentes para uma discussão. O primeirorefere-se ao fato de que a presença feminina nos cursos de formação de professoresainda é uma tendência, algo que, inclusive, tem se estendido também para as chamadasáreas específicas das licenciaturas. Do total de 29 estudantes que cursam CiênciasBiológicas, 22 são mulheres. No curso de Pedagogia, cem por cento da amostra éfeminina. No caso do curso de Pedagogia, a literatura na área da história daeducação brasileira tem mostrado que ideias associadas à noção de que "[...] omagistério feminino [se apresentava] como solução para o problema de mão-de-obrapara a escola primária, pouco procurada pelo elemento masculino em vista da reduzidaremuneração” (TANURI, 2000, p. 66) orientaramas políticas de financiamento e organização da formação de professores no Brasil.Essa prática, de alguma forma, continua presente, especialmente quando se analisa aremuneração dos professores3 que atuam naEducação Infantil e/ou nos anos iniciais do Ensino Fundamental que, geralmente,chega a ter uma redução entre 25 e 50% em sua remuneração, quando comparada a dosdocentes que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental e/ou no Ensino Médio.
Em estudo que analisou os cursos de formação de professores no Brasil, BernadeteGatti (2010) constata a feminização dadocência, indicando que 75,4% dos licenciandos são mulheres, e a autora afirma que"[...] este não é fenômeno recente” (GATTI,2010, p. 1362). A pesquisadora relembra, ainda, o fato de tal aspectoestar associado à própria forma de ingresso no ensino de nível médio para asmulheres brasileiras, ocorrida via "[...] expansão dos cursos de formação para omagistério, permeados pela representação do ofício docente como prorrogação dasatividades maternas e pela naturalização da escolha feminina pela educação” (GATTI, 2010, p. 1363).
Tomando como referência a idade do grupo de respondentes, a faixa etária de 45acadêmicos variava entre 20 e 30 anos. Se colocarmos 25 anos como a média de idade,estamos falando de um grupo que nasceu durante os anos de 1980, em pleno período deredemocratização do país e que, ao ingressar no Ensino Fundamental, já gozava dosdireitos preconizados pela Constituição Federal de 1988. Ainda, entre esse período ea sua chegada ao Ensino Médio, são sujeitos-estudantes produzidos também pelasdiscussões e pelas propostas de reestruturação do sistema educacional decorrentesdos processos de regulamentação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Nº8.069/1990) e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei Nº9.394/1996). Essa reorganização pauta-se em orientações de organizaçõesinternacionais, com preceitos como cidadania ativa e participação, que passam a seconstituir como garantias constitucionais, sendo incorporadas enfaticamente comoprincípios dos projetos pedagógicos das escolas, ou seja, narrativas que regiam, doponto de vista teórico, as instituições frequentadas por esse grupo de estudantes aolongo da última década do século XX.
No quesito "participação na sociedade civil”, dos 52 acadêmicos, parte dosrespondentes (47%) possuía algum tipo de atividade sistemática em grupo da sociedadecivil e a outra (53%) declara não se envolver em atividades sociais. Quandoobservamos o tipo de inserção na sociedade civil, percebemos que a maior parte dosestagiários tem uma participação ativa em grupos de dança ou canto (40% dosrespondentes) ou em atividades vinculadas à igreja, como grupo de jovens (28% dosrespondentes). Diante desses dados, três questões são instigantes: o que mobiliza osacadêmicos para sua participação na sociedade civil? Será que a escola e auniversidade têm provocado crianças e jovens para uma participação mais ativa nasociedade civil? A escola e a universidade mobilizam os jovens a participar de quetipos de atividades na sociedade civil?
Podemos pensar em algumas possibilidades analíticas se reconhecermos que há umamudança na forma de nos relacionar com o saber na contemporaneidade, considerando aemergência das diferenças, do contingencial, das formas cada vez mais virtuais decomunicação e de relação social, por exemplo. Uma alternativa aduz uma posturaracional da ordem da justificação e do relacional e não mais em termos defundamentos e de consciência dos fatos. Nesse sentido, se para as geraçõesanteriores a qualificação profissional era a garantia de um lugar no mercado detrabalho, as gerações contemporâneas convivem cotidianamente com a incerteza dofuturo, tanto em termos profissionais, quanto epistemológicos, visto que ascarreiras profissionais não se constroem mais de forma linear e a produção doconhecimento cresce em progressão geométrica. Hans-Georg Flickinger (2010) aponta algumas consequências desse atualestado de insatisfação com os conhecimentos disponíveis. Dentre elas, está a suarápida desvalorização, a necessidade de transgredir os limites tradicionais dasdisciplinas, a pressão por "[...] reorganização institucional dos conhecimentos ou odeslocamento dos lugares da produção do saber para fora das instituiçõestradicionais” (FLICKINGER, 2010, p. 181).
A inserção dos acadêmicos em diferentes espaços sociais pode ser uma demanda muitomais externa às instituições do que interna ou referente aos interesses pessoais,somente. Embora largamente marcado por aspectos econômicos, este movimento emdireção ao conhecimento das diferentes organizações do campo profissional oumulticultural renova as discussões e as possibilidades para a formação comoBildung, não de forma institucionalizada, como ocorreu a partirdo século XIX, quando Bildung foi entendida como o próprio processoeducacional. A formação desenvolve-se, agora, em diferentes espaços sociais,autogeridos a partir de definições e regras de convívio elaboradas pelos própriosparticipantes, decorrentes, por exemplo, de sua inserção e atuação em organizaçõesnão governamentais, grupos virtuais na internet, gangues de rua, torcidasorganizadas, clube de motoqueiros, confrarias por afinidades, etc. Esses espaçospermitem a convivência e a discussão de diferentes modos de vida, produzindo ummovimento (auto)formativo que se dá a partir da atribuição de sentidos àsexperiências. Conforme Flickinger (2010),esses outros espaços, justamente por não estarem submetidos à organizaçãoeducacional formal, conseguem "[...] fazer jus àquele núcleo de formação no qual aantiga paideia e o conceito da Bildung se apoiam:a saber, no entendimento do processo de formação como um projeto centrado no serhumano e não em solicitações a ele alheias” (FLICKINGER, 2010, p. 189).
É uma necessidade premente a aproximação entre as licenciaturas e o campo da educaçãonão formal, pois, desse modo, confirmar-se-ia o compromisso da universidade com umaformação que abrange os aspectos profissionais e humanos, indissociavelmente. Noentanto, é importante destacar que essa aproximação corre o risco de ser corrompidase tiver alguma finalidade de incorporar os movimentos não formais ao contextoinstitucional de formação; afinal, esses grupos possuem, na maioria das vezes,dinâmicas, instrumentos, objetivos e público-alvo diferentes da educaçãoinstitucionalizada, especialmente, a escolarizada. Ou seja, acarretaria em perdas desentido para todos os movimentos ao invés de reconhecimentos recíprocos, conformeindica Flickinger:
A pedagogia não pode mais deixá-los de lado, já que eles marcam cada vez mais ocomportamento, o hábito e, em última instância, as influências extrainstitucionaisno processo da socialização. Não basta querer reintegrar essas experiências noscurrículos de qualificação; tampouco é suficiente observar de longe o que aí ocorre.Se não me engano, a única chance de reagir a essa dinâmica atual dos processos deformação consiste na disposição da pedagogia de reconhecer esses campos comoexperiência autêntica e formadora. (FLICKINGER,2010, p. 190).
Estamos construindo um caminho que há décadas buscamos: o de garantir o acesso cadavez mais universal à Educação Superior. Uma das consequências dessa proposta é adiversidade de experiências dos acadêmicos que se agrupam em uma sala de aulauniversitária. Experiências que são constituídas no âmbito da classe social, daetnia, das relações de gênero e geracionais. Experiências que carregam inscriçõesconstruídas em determinados sistemas de crenças e de valores, sejam eles religiososou culturais. Experiências constituídas ao longo do processo de escolarização básicaque acabam produzindo uma determinada postura em relação à concepção de trabalhointelectual e acadêmico. Enfim, a abertura à diversidade traz, em si, apotencialidade própria da pluralidade, mas, igualmente, os desafios que constituemas singularidades. Nesse contexto, um processo formativo justifica-se se e quandoproblematiza tais aspectos. Seguindo a advertência de Flickinger (2010), é preciso permeabilizar as práticas formativas,organizando situações que deixam ver e, ao mesmo tempo, tensionam os diferentessistemas de crenças e de valores, de práticas culturais, de formas e de atitudesrelacionais dos acadêmicos que frequentam o espaço universitário.
Em relação ao marcador "tipologia da instituição de formação na Educação Básica”,quase a totalidade dos respondentes frequentou escolas públicas. Os resultadosacerca do público que frequenta os cursos investigados seguem indicadores nacionais,evidenciados no estudo conduzido por Gatti(2010) com base nos dados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantesde Ensino Superior (ENADE) de 2005. A autora informa que os acadêmicos dos cursos delicenciatura, em sua maioria, provêm da escola pública, diferentemente do que ocorreem outros cursos, como Medicina e Engenharias. Tomando como referência o desempenhoescolar alcançado pelos egressos da escola pública, com base nos resultados aferidospelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), a pesquisadora constata que "[...] aescolaridade anterior realizada em escola pública evidencia grandes carências nosdomínios de conhecimentos básicos. É com esse cabedal que a maioria dos licenciandosadentra nos cursos de formação de professores” (GATTI, 2010, p. 1364-1365).
Considerando que a maioria dos acadêmicos é egressa da escola pública, algumasindagações podem ser explicitadas: As dificuldades que os acadêmicos demonstram emrelação ao processo de desenvolvimento profissional, especialmente em relação aoconjunto de saberes pedagógicos, decorreria, por hipótese, dessa carência vivida naEducação Básica? Pensar essa carência não será uma opção simplista para continuarperpetuando uma visão vertical sobre os processos de escolarização, entendendo quehá conteúdos que se localizam em determinado tempo e lugar, conforme a mantenedorada escola frequentada ou a classe social dos estudantes?
Nessa direção, lembramos da máxima que permeia as discussões acadêmicas: "Quem sabe,faz; quem compreende, ensina”. O jargão original, lançado pelo famoso dramaturgoBernard Shaw, ainda no século XIX, nas suas famosas Maxims forrevolutionists, era da seguinte maneira: "Quem sabe, faz. Quem nãosabe, ensina”. A reorientação a esse aforismo foi feita por Lee Shulman (1986) e considerada por António Nóvoa (2012, p. 12) em seus escritos:
O conceito de compreensão é fundamental: compreensão de umdeterminado conhecimento ou disciplina (e compreender é mais do que possuir oconhecimento) e compreensão dos alunos e dos seus processos de aprendizagem. É nestadupla lógica que se funda o conhecimento docente. Por isso é tão importante combatera ideia de que ensinar é uma tarefa fácil, ao alcance de qualquer um. Enquanto seconsiderar o ensino uma actividade "natural”, é difícil valorizar os professores econsolidar a dimensão universitária da sua formação. (NÓVOA, 2012, p. 12, grifos do autor).
A dimensão do ensino não se refere a uma ação instrumentalizadora de conteúdos, masrequer do professor, a cada intenção de ensinar, uma reelaboração interna, cujaarticulação entre o conteúdo em si, o nível de aprendizagem dos alunos e o contextopedagógico expressam-se na situação comunicacional de aula. A compreensão, portanto,mobiliza campos da cognição, da memória, dos comportamentos culturais, etc., com osquais podemos atribuir sentido sobre um conteúdo, ao mesmo tempo que mantém apossibilidade de historicizar esse significado e, assim, vinculá-lo a pontos devista mais universais. Para Gadamer (2005),esse movimento de receptividade ao diferente é uma característica universal daformação, muitas vezes suplantado nas instituições de ensino por perspectivasexplicativas ou disciplinares do processo formativo.
O último marcador, de ordem pedagógica, reúne as razões que explicam a "escolha ouopção pela licenciatura”. A discussão desse marcador talvez seja o que mais seaproxima das advertências postas pelos estudos de Lahire (2004) e por pesquisadores do campo da formação de professores(BUENO et al., 2006; GATTI, 2010; NOGUEIRA; PEREIRA,2010; GOMES et al., 2012; PEREIRA et al., 2012) sobre valores e crençasque acadêmicos referem como justificativas de sua escolha pelo curso delicenciatura. Nossa suspeita é de que esses motivos são reativados, tornando-se, dealguma forma, recursos para organizar e conduzir as práticas de ensino durante operíodo de estágio.
No questionário da pesquisa que conduzimos, esse marcador foi sistematizado a partirdas respostas dadas a uma questão de múltipla escolha e descritiva. Na primeiraparte da questão, os acadêmicos assinalavam entre três alternativas aquela que maisdefinia sua escolha por um curso de licenciatura: 1ª alternativa: "Ser um curso commenos candidatos por vaga”; 2ª alternativa: "Admiração a um professor do EnsinoFundamental, do Ensino Médio ou do cursinho Pré-vestibular”; 3ª alternativa:"Discordar da postura de um professor do Ensino Fundamental, do Ensino Médio ou doCursinho Pré-vestibular4”. Cabe destacar que aindicação dessas três alternativas decorreu de observações realizadas em contexto desala de aula por ocasião das atividades de supervisão de estágio que realizamos emambos os cursos. Na segunda parte da questão, em formato descritivo, os acadêmicospodiam indicar outro motivo ou explicar a sua escolha pela profissão docente.
Dentre as três alternativas indicadas no questionário, a "admiração a um professor”foi assinalada por 21 acadêmicos, o que corresponde a 40% do total de respondentes.Entre as 23 acadêmicas do curso de Pedagogia, seis responderam a admiração aoprofessor do Ensino Fundamental, e duas assinalaram a admiração por um professor doEnsino Médio. No curso de Ciências Biológicas, de um universo de 29 respondentes, 13acadêmicos marcaram a "admiração a um professor”; destes, dois marcaram o professordo Ensino Fundamental, quatro o do Ensino Médio e sete o professor do cursinhopré-vestibular.
Gatti e Barretto (2009), em publicaçãodecorrente de estudo realizado sobre os professores no Brasil, a pedido da Unesco,analisaram o perfil dos estudantes de cursos de licenciatura, tomando como base oquestionário socioeconômico do Exame Nacional de Cursos (ENADE) de 2005. Aspesquisadoras mostram que 11,6% dos estudantes, o que equivale a 15.860 respondentesde um universo de 137.001 sujeitos pesquisados, responderam que a principal razão deescolha por um curso de licenciatura foi porque tiveram "[...] um bom professor queserviu de modelo” (GATTI; BARRETO, 2009, p.159).
No que se refere à parte descritiva da questão analisada, 22 acadêmicos escreveramsobre as razões de sua escolha. Entre as respostas, houve uma maior concentração(45% dos respondentes) em torno das ideias "querer e gostar de ser professor” e"identificar-se com o ensinar”. Entre as estagiárias do curso de Pedagogia,prevaleceram ideias relacionadas ao "querer e gostar de ser professor”. As escritasreferem certo vínculo com desejos construídos ao longo da escolarização básica, como"um desejo desde criança, uma escolha pessoal”. Também indicam sua escolha em funçãodas dificuldades de cursar o magistério - "Sempre quis cursar o magistério, porémnunca consegui. Fiz o 2° grau e prestei vestibular para a Pedagogia” - ou comodecorrência do ter cursado o magistério em nível médio, reforçando razõescircunscritas ao âmbito da vontade, da vocação, do gosto: "Porque me identifico comesta profissão, uma vontade que surgiu e amadureceu no magistério”; "Por vocação,sempre quis essa profissão, por isso fiz o magistério e agora a Pedagogia”; "Gostoda docência, fiz magistério e quis continuar”; "Meu primeiro ‘bico’ como professorafoi aos 12 anos”. Já entre os respondentes do curso de Ciências Biológicas, asrazões explicitadas estão mais ligadas ao "identificar-se com o ensinar”: "Sempregostei da capacidade que o professor possui de explicar e mostrar como funciona omundo”; "Sempre tive vontade de trabalhar em escolas, transmitir conhecimento”; "Nãosei por que, por gostar de ensinar, por gostar de dar aula”.
Podemos compreender essas justificativas para a escolha profissional como uma dasmaneiras que o sujeito encontra para sua autoformação ou constituição de si mesmo,pois como não é possível clarear todas as motivações da experiência pedagógica,conforme argumenta Hermann (2002), umas dasformas de aprender e inserir-se em uma organização cultural é por imitação dosmodelos conhecidos. Já presente na ideia de mimese dos gregos (do grego:mimesis, entendida como imitação, representação, mímica,assemelhamento) - quando o modelo a imitar era dado por uma divindade -, aaprendizagem por mimese é exercitada pela criança que olha e imita um adulto ou pelosujeito que observa um comportamento cultural de outro e repete. Certamente, noprocesso de desenvolvimento profissional, muitas posturas e práticas discursivasexpressas também são fruto de cenas presenciadas e interiorizadas. Essa forma deaprendizagem é apontada por Wulf (2016) daseguinte forma:
Aprendemos por mimetismo formas de saber prático, ao longo de processos que implicamo corpo e os sentidos. Esse saber prático permite agir com competência dentro dasorganizações e das instituições. O saber ritual constitui parcela significativadesse saber social prático, que insere as instituições nos corpos e os habilita aorientar-se em um contexto social. Nos processos miméticos, o indivíduo adquire asimagens, os esquemas e os movimentos que lhe darão a capacidade de agir. (WULF, 2016, p. 556).
A admiração e a empatia por um professor são dispositivos tão mobilizadores para aescolha da profissão docente quanto a indiferença e a resistência sentidas nasrelações da Educação Básica. Nos depoimentos dos estagiários, muitos afirmaram queoptaram pela docência justamente "por discordar da postura de pouco caso dosprofessores das séries iniciais” ou por o professor que teve "cobrar de formaradical que os alunos soubessem tudo na prova, única forma de avaliação, sendo quesua didática era péssima”.
A tendência identificada em nosso estudo segue o que Gatti e Barretto (2009, p. 159) constataram em sua pesquisa: "[...]65,1% dos alunos de Pedagogia atribuem a escolha ao fato de querer ser professor, aopasso que esse percentual cai para aproximadamente a metade entre os demaislicenciandos”. No mesmo estudo, considerando a amostra total dos cursos avaliados,Pedagogia e demais licenciaturas investigadas (Biologia, Física, Química,Matemática, História, Geografia e Letras.), 53,4% dos estudantes referem o "quererser professor” como uma das razões de escolha pelo curso de licenciatura. Aspesquisadoras explicam que a representação da docência como "vocação” e "missão” temafastado "[...] socialmente a categoria dos professores da ideia de uma categoriaprofissional de trabalhadores que lutam por sua sobrevivência, prevalecendo aperspectiva de ‘doação de si’” (GATTI; BARRETTO,2009, p. 239). Tal aspecto produziu e ainda tem produzido dificuldadesaos professores, especialmente no que se refere à luta por salários e melhorescondições de trabalho, dificuldades que são tanto de ordem social como política.
A ideia de "vocação” e "missão” reforça imagens socializadas sobre a docência, pois,geralmente, mesmo reconhecidas as dificuldades no âmbito da valorização salarial edas condições de trabalho, a escolha da profissão está associada à certa segurançade ingresso no mercado de trabalho, visto que o magistério ainda é uma dasprofissões que mais oferta possui no cenário nacional e, conforme a região, aindagarante certo status e segurança econômica. Nesse cenário, um aspecto ambíguorefere-se às razões de escolha, pois, ao indicarem o "querer ser professor” ou o"gostar de ensinar”, os estagiários reconhecem o valor social da profissão docentepela oportunidade que oferece de assumir um papel ativo na transformação dasociedade, algo que faz parte do imaginário social, amplamente veiculado pelas redessociais e midiáticas. Não raras vezes encontramos registros em relatórios de estágioque indicam a atividade docente como tarefa gratificante, referindo, especialmente,à participação do professor como agente da mudança educacional. Tardif e Lessard (2005) explicam que, noexercício da profissão docente, há uma certa realização pessoal e social que também"[...] vem da alegria de trabalhar com crianças, jovens, de ajudá-los, de vê-losprogredir, mudar, aprender, instruir-se, fazer descobertas” (TARDIF; LESSARD, 2005, p. 283).
A identificação com o ser professor, seja porque existe o gostar de estar na escolaou, simplesmente, do gostar da docência, de ensinar ou de dar aula, contraria atendência encontrada no estudo de Alves-Mazzotti(2008), que investigou junto às professoras de anos iniciais os sentidosatribuídos ao ser professor. Percebemos que, no grupo de estagiários investigados,há certa paridade entre os motivos indicados para explicar a escolha pelalicenciatura, tanto entre os da Pedagogia quanto das Ciências Biológicas. Nessegrupo, evidenciamos que razões circunscritas à disposição para a maternidade,motivos tão recorrentes entre acadêmicos do curso de Pedagogia, conforme explicitaAlves-Mazzotti em seu estudo, parece ser uma representação que está caindo emdescrédito pelas gerações que ingressam nos cursos de formação de professores.
Gomes et al. (2012), em artigo que sistematizapesquisa realizada com estudantes de licenciatura e Pedagogia, afirmam quedeterminadas representações sobre trabalho e identidade docente provêm de elementosmais gerais da cultura brasileira. Os autores constatam, ainda, "[...] que asrepresentações que predominaram sobre o trabalho docente entre os estudantes foramaquelas que eles já tinham antes de entrar no processo de formação profissional”(GOMES et al., 2012, p. 245) e concluemque essas representações são trazidas pelos acadêmicos desde o início de suaformação e pouco se modificam ao longo da Graduação. Por fim, sugerem que, embora asexperiências feitas ao longo de um curso de licenciatura sejam importantes, outrasexperiências, muitas vezes estranhas à formação inicial - e que as antecedem -, sãoâncoras fundamentais. Entre elas, estaria certo entendimento incluso no "gostar de”que se refere à necessidade de identificação com o outro, própria da relaçãoensinar-aprender. Nessa direção, Tardif e Lessard(2005, p. 275) dirão que "[...] a docência, como trabalho humano sobreseres humanos […] um trabalho interativo […] face a face com o outro” está sujeito àpresença e às interações humanas. Essas posições corroboram argumentos por nósexplicitados, especialmente porque também recolocam o processo de desenvolvimentoprofissional docente em uma dimensão mais ampla, que é própria daBildung, qual seja, o de estar voltado à formação humana.
A segunda ideia mais referida como razão de escolha relaciona-se à preocupação em terum "amplo campo de atuação”, algo que se evidencia pela possível atuação em diversastipologias de instituições, explicitado a partir de afirmativas como: "acredito quea Pedagogia é um curso que abrange um amplo mercado de trabalho e é um cursobastante crítico onde eu queria estar”; ou, ainda, conforme explicitado por algunsrespondentes, pelo fato de poder atuar tanto no ensino quanto na pesquisa: "Sempregostei da área, optei pela licenciatura por abranger tanto a escola como apesquisa”; "Se pode ser tanto professor como trabalhar com pesquisa”.
Por um lado, a ideia que permeia essas respostas permite indagar sobre a reproduçãode uma tendência que sustenta a escolha da docência como uma espécie de "segurodesemprego” (GATTI, 2010). Nessa direção, aprofissão professor seria uma alternativa caso não se consiga atuar em outra área doconhecimento. No estudo realizado por Gatti eBarretto (2009, p. 160), 20,8% dos respondentes indicaram o magistério"[...] para ter uma outra opção se não conseguir exercer outro tipo de atividade”.Assim, observa-se que a escolha da docência vem sendo entendida como uma espécie de"seguro desemprego”, como uma alternativa no caso de não haver possibilidade deoutra atividade profissional. As investigadoras ainda indicam que essa referência érelativamente alta, sobretudo entre os licenciandos de outras áreas que não aPedagogia.
Por outro lado, é importante considerar que a ideia da docência como um "amplo campode atuação” pode indicar a articulação com outras áreas profissionais, atualizando ocaráter histórico e crítico da docência, que reflete e forma a opinião pública.Afinal, como professoras formadoras, também alimentamos a imagem de que a atuação doprofessor ultrapassa os limites da sala de aula, do manejo com técnicas de ensino,do conhecimento das teorias pedagógicas. Circunscreve a corresponsabilização pelosprocessos epistemológicos, éticos, estéticos e políticos dos sujeitos em formação.Assim, compreender as manifestações sociais, localizando-as em um contexto históricoampliado é função imanente da docência, presente de algum modo nas narrativas de"professor pesquisador”, "professor reflexivo”, "professor investigador”, "professorcomo intelectual crítico”, "professor como agente cultural”.
Considerações finais
Este artigo, conforme indicamos, sistematizou e refletiu sobre alguns marcadoressociológicos e pedagógicos presentes no contexto da formação de professores em doiscursos de licenciatura. Nossa intenção, pautada nos estudos de Lahire (2004), conforme as apostas já indicadas, também seancorou em aspectos referidos por Tardif (2002, p.20) quando afirma que os professores se constituem professores muitoantes de ingressarem em um curso de formação de professores porque já frequentaram aEscola Básica, e "[...] tal imersão é necessariamente formadora, pois leva osfuturos professores a adquirirem crenças, representações e certezas sobre a práticado ofício de ser professor, bem como sobre o que é ser aluno” (TARDIF, 2002, p. 20). Esses efeitos que as imagens socializadasda docência produzem sobre os aspirantes à carreira docente potencializam asrelações de familiaridade e estranhamento com a prática pedagógica requerida duranteos estágios, (re)construindo, pela linguagem, significados para a experiênciadisposicional expressa pelos acadêmicos.
Ser acadêmico de um curso de licenciatura não é uma condição cuja identidade passa aser constituída a partir do ingresso no curso de Ensino Superior ou do acesso aosconteúdos abordados ao longo da formação acadêmica. Muito antes disso, além de terfrequentado a Escola Básica, o acadêmico já circulou por outros espaçossocioculturais, vivenciando formas distintas de apreensão da realidade e de produçãodas relações sociais, desenvolvendo modos peculiares de produção e interação com ainformação e o conhecimento. Aprendizados que, muitas vezes, produzem relações esentidos; contudo, nem sempre reconhecidos pelos professores formadores comorelevantes ao processo formativo. Quando pensamos nos estudantes pós anos de 1980,como é o caso desse grupo de estagiários dos cursos investigados, entendemos que épreciso considerar certas características históricas e políticas, pois foi umageração que gozou conquistas decorrentes dos processos de democratização ereconhecimento de direitos sociais. Ao mesmo tempo, são jovens que tiveram seusmodos de vida influenciados por narrativas veiculadas quase que de forma ilimitadapelo mundo televisivo, além de acessar a informação e o conhecimento de forma jámediada pelo uso da internet, sem muitas vezes contar com a presença deinterlocutores críticos.
A indicação de tais marcadores não pretende produzir generalizações. Entretanto, comoprofessoras formadoras, entendemos que é preciso levar em consideração essa novarelação com o conhecimento para poder propor práticas formativas que possam entrosardimensões próprias do viver na contemporaneidade com conteúdos característicos dosprocessos de profissionalização docente. Nesse sentido, apostamos como profícuas acriação de outras formas de dar sentido às narrativas dos acadêmicos, possibilitandoespaços onde possam dizer e pensar de forma mais intensa sobre as razões de suasescolhas pela profissão docente.
Resumo:
Main Text
Apresentação
Complexidade formativa e elementos do desenvolvimento profissionaldocente
Alguns marcadores para pensar a formação nas licenciaturas
Considerações finais