in Praxis educativa
"Esta mesa redonda é quadrada": a gestão democrática no contexto dademocracia burguesa
Resumo:
Este artigo objetiva apresentar algumas observações sobre o conceito de gestãodemocrática e seu significado no contexto das políticas educacionais. As notasapresentadas implicam esclarecer de qual gestão e de qual democracia se fala,para não correr o risco comum de escrever no vazio. Para tanto, retomam-se osconceitos de hegemonia e democracia dos Cadernos do Cárcere, deAntonio Gramsci, para acentuar que uma democracia efetiva implica a superação daseparação milenar entre dirigentes e dirigidos.
Main Text
Introdução
Este artigo pretende apresentar algumas observações sobre o conceito "gestãodemocrática" e seu significado no contexto da democracia burguesa. O motivo que nosmove é constatar os limites desse conceito no âmbito dos debates em torno daspolíticas educacionais. Salientamos que não pretendemos fazer revisão de literatura,visto que muito já se escreveu sobre esse conceito, embora a maioria das vezes deforma abstrata, pois escreve-se sobre políticas públicas e gestão da educação semsequer fazer uma referência à situação política real, na qual a democracia temlimites e fragilidades impostos pela estrutura econômica que se expressa em relaçõessociais desiguais e contraditórias.1Pretendemos apenas explicitar o significado desses dois termos a partir de umaretomada dos conceitos de hegemonia e democracia presentes nos Cadernos doCárcere, de modo a salientar que não se trata de uma abordagem utópica,visto que a gestão democrática na perspectiva gramsciana se fundamenta naexperiência dos Conselhos de Fábrica, experiência que os trabalhadores italianosviveram em 1920, a partir de sua leitura da Revolução de Outubro de 1917.
Trata-se, ainda, de explicitar que são notas sobre gestão democrática, que implicampartir da diferenciação entre pequena política e grande política:2 a primeira refere-se a políticas de governo, no âmbito dasquais se efetiva a gestão; a segunda pressupõe que, na democracia burguesa, a gestãose limita pelo caráter de classe do Estado, dependente da natureza de classe quecaracteriza a sociedade moderna. Nesse contexto, governar não significa assumir opleno exercício do poder, visto que, por meio da estrutura do Estado, na sociedadeburguesa, o poder se exerce no sentido de garantir a ordem. A gestão, portanto, nãose reduz ao mero exercício do poder estatal, mas implica pressupor que tudo épolítica, ou seja, que todas as ações se caracterizam, por um lado, em consolidar ereproduzir determinadas relações de poder; e, por outro, em transformar e subvertera ordem, dependendo de nossa posição na luta de classes.3
O problema da gestão não é apenas de diretriz política de governo, da funcionalidadedas políticas públicas e sua realização prática, mas de como a gestão expressa umprojeto de sociedade e de como reflete as mudanças que ocorrem a partir do modo comoos grupos sociais se inserem na vida produtiva da sociedade (GRAMSCI, 1978, Q. 15, p. 1807). Portanto, falar de gestãodemocrática pressupõe dizer de qual gestão e de qual democracia se fala, visto que agrande política compreende a natureza do Estado e sua tarefa, na sociedade burguesa,de defender e conservar determinadas estruturas econômicas e sociais. Se não seexplicita a posição política da qual se parte, se fala sempre em abstratomistificando a realidade, visto que falar em abstrato significa apoiar-se em umaforma sem conteúdo.
Falar em "gestão democrática" a partir de Gramsci implica, por isso, em explicitar osconceitos de hegemonia e de democracia e mostrar que esta última não tem apenas umadimensão administrativa ou governamental, visto que a democracia política é meraaparência ilusória se não for acompanhada de democracia social e se não pressupor asuperação da desigualdade.4
A metáfora da mesa redonda, que Gramsci pretendia desenvolver como tema de suaLáurea5, sugere-nos uma senda ainda nãopercorrida nos trabalhos que temos apresentado com base nos escritos do autor sardo.A afirmação de que a mesa redonda é quadrada nos leva a fazer algumas consideraçõesque vão muito além da visão imediata do problema lógico que se evidencia à primeiraleitura: porta-nos ao cerne da questão da gestão democrática.
É conhecida a lenda da "Tavola Rotonda", a história que contam ter ocorrido naInglaterra, em Camelot, no início do século VI ou VII6, em que o Rei Artur, para bem governar, chamou seus cavaleiros (ouministros) a ocuparem um lugar ao seu lado na mesa redonda, símbolo da paridade nadistribuição do poder. Ao recorrer a essa metáfora, levantando a questão daquadratura da mesa, Gramsci convida-nos a buscar os múltiplos significados que elapode apresentar, lida por ele na perspectiva da importância da gramática no ensinoescolar, mas que nos sugere colocar em discussão a noção moderna de democracia e nosremete a explicitar esse conceito, que aparece em vários momentos dos Cadernos.
Iniciamos com uma citação do Caderno 8, em que Gramsci salienta que existem váriossignificados de democracia, sendo o mais realista e concreto aquele que se deduz emrelação ao conceito de hegemonia. "No sistema hegemônico existe democracia entre ogrupo dirigente e os grupos dirigidos na medida em que (o desenvolvimento econômicoe, portanto) a legislação (que exprime este desenvolvimento) favorece a passagem(molecular) dos grupos dirigidos ao grupo dirigente" (GRAMSCI, 1978, Q. 8, p. 1056).
O primeiro ponto a esclarecer a partir dessa afirmação é que a política de governo(ou o Estado como legislador) exprime a estrutura econômica e seus interesses dedesenvolvimento, ou seja, o elo indissolúvel entre economia e política; segundo,existe democracia quando os grupos dirigidos possuem as condições de se tornaremdirigentes, ou seja, a concretização da democracia implica a participação popularautônoma. Essas questões remetem-nos a outras, como as que se apresentam no Caderno15, sobre a formação dos dirigentes, na qual há uma premissa fundamental que é: sequer que existam sempre dirigentes e dirigidos ou se deseja criar as condições apartir das quais essa divisão desapareça? Nas relações políticas, tem-se comopressuposto a eterna divisão do gênero humano ou se acredita que essa divisão é umfato histórico e, portanto, pode desaparecer?7Toda a filosofia e a arte política devem partir dessas premissas e a sua base é adivisão social do trabalho (GRAMSCI, 1978, Q.15, p. 1752). Aqui Gramsci esclarece que a origem das divisões políticas se encontrana estrutura econômica da sociedade. Esquecer esse pressuposto implica apresentaruma definição abstrata de democracia e, consequentemente, de gestão democrática. Aabstração caracteriza-se por uma forma sem conteúdo, ou seja, um discurso vazio.
Desse contexto depreende-se que a leitura da metáfora da mesa redonda quadrada podeser entendida como a proposta de uma nova prática de governo que tem de estarnecessariamente articulada a um novo projeto de sociedade. Dessa perspectiva, a novagestão implícita na atitude do Rei Artur não pode se fechar na ação dos dirigentes ena paridade de poder entre eles, mas precisa abrir-se a um envolvimento coletivo dasmassas, que se traduz na ideia de uma verdadeira democracia.
A partir desse esboço inicial, a primeira parte deste artigo traz, da grande obra dopolítico sardo, algumas notas sobre hegemonia e democracia, de forma a acentuar oslimites da participação política das massas nas sociedades modernas a partir daextrema desigualdade social instaurada pelo modo de produção capitalista e as novasformas de dominação que implicam a expansão da ideologia como prática de poder. Apartir de Dias (2014, p. 28), as novasdimensões da ideologia fortalecem "[...] o domínio de uma classe (e de seu bloco depoder) determinando o que pensar, o que estudar e até mesmo o que e como amar", emum processo ampliado de supressão das diferentes culturas pela implementação de ummodo de vida condizente com os interesses do capital.
A segunda parte apresenta algumas notas sobre a democracia burguesa a fim deexplicitar seus limites como gestão pública voltada aos interesses de classe quevisam a ampliação da exploração e da expropriação do trabalho. Retomamos aqui aleitura de Gramsci e a interpretação de Burgio(2014), para esclarecer como a democracia burguesa, em seus"procedimentos formais funcionais", gera uma prática fictícia da democracia,mascarando as diferenças sociais e ignorando a extrema desigualdade social geradapelo modo de produção capitalista, de modo que o que se entende por "democracia" nãopassa de "[...] uma estrutura de poder essencialmente oligárquico e autoritário,resolvendo-se em um sistema de formas públicas de proteção dos poderesessencialmente privados" (BURGIO, 2014, p.341). A democracia como uma estrutura oligárquica e autoritária, mas que aparececomo a política que garante os direitos individuais subjetivos comonaturalizados.
A terceira parte aborda a leitura gramsciana das relações de poder entre dirigentes edirigidos, mostrando como uma gestão democrática não pode ignorar a existência dosdirigidos e nem os excluir do processo de gestão. A proposta de gestão democráticade Gramsci parte da experiência dos Conselhos de Fábrica e nos remete à experiênciados primeiros anos da Revolução Russa, o grande evento que marcou o século XX e quemostrou a possibilidade de uma nova ordem social e política, mudando radicalmente acorrelação de forças entre as classes na sociedade capitalista.
Na conclusão, retomamos a metáfora inicial para acentuar que a noção de gestãodemocrática no contexto da obra de Gramsci vai muito além da paridade de poder noâmbito da estrutura de governo e implica necessariamente a inclusão das classespopulares no processo político, de forma ativa e operante, em seus movimentossociais de origem espontânea, pelos quais se pode construir uma democraciaefetiva.
Notas sobre hegemonia e democracia no âmbito da sociedade moderna
O conceito de hegemonia perpassa os Cadernos e apresenta-se como central paraentender a noção de democracia que, de forma geral, é utilizada para denominar ademocracia burguesa como se esta fosse a única e ideal para todos. Gramsci faz aleitura da história da Revolução francesa e do Risorgimentoitaliano para mostrar que a democracia burguesa está longe de ser o ideal para asclasses trabalhadoras.
O conceito de hegemonia, ancorado na luta de classes, apresenta dois significadosprincipais: do ponto de vista dos grupos dominantes, a partir da estrutura dademocracia burguesa, a hegemonia se mantém pela produção de um consenso passivo pelaformação da opinião pública como "pensamento autônomo" do indivíduo "cidadão",mascarando as relações de poder que fazem dos subalternos meros assistentes passivosdo exercício do poder. O individualismo, conteúdo da democracia parlamentar, tem o"[...] significado preciso de 'apropriação individual' do lucro e da iniciativaeconômica para o lucro capitalista individual" (GRAMSCI, 1978, Q. 14, p. 1742). Assim, tem-se de considerar sempre arelação entre econômico, político e ideológico, embora essa relação sejamistificada.
Já da perspectiva dos trabalhadores ou dos grupos subalternos, a luta pela hegemoniasignifica enfrentar cotidianamente a luta de classes, nas suas múltiplas formas,para superar as ilusões geradas pela ideia burguesa de democracia e de gestão, o queimplica empenhar-se na organização política formando um consenso ativo comopensamento autônomo voltado a um outro projeto de sociedade (GRAMSCI, 1978, Q. 13, Q. 15, Q. 25). A unidade das classessubalternas precisa ser construída no interior da sociedade pela organizaçãopolítica e pela formação de um novo modo de pensar autônomo; uma unidade que seproduz no processo educativo resultante da organização política.
Conforme Dias (1996, p. 10), a "[...]capacidade que uma classe fundamental (subalterna ou dominante) tenha de construirsua hegemonia decorre da sua possibilidade de elaborar sua visão de mundo própria,autônoma". Essa capacidade permite distinguir-se, firmar uma identidade de classe econtrapor-se às demais classes sociais com um projeto de sociedade.
Essa senda pode ser seguida no curso dos Cadernos: na afirmação do elo entreeconômico e político, relação mantida e ampliada pela mediação do Estado e garantidapor mecanismos ideológicos de formação do modo de ser e de pensar da sociedade paraa adesão passiva ao projeto político dominante (GRAMSCI, 1978, Q. 13). E, ainda, na fragmentariedade e heterogeneidadedos grupos subalternos a serem superadas na luta pela hegemonia.
A importância da ideologia no âmbito da democracia burguesa está na formação do modode pensar e na manutenção da crença de que o Estado representa toda a sociedade efunciona separadamente da economia. Essa visão de mundo compõe-se do mascaramento dadesigualdade social pela naturalização das relações sociais como base dofuncionamento da sociedade - um quadro que se completa com o individualismoexacerbado e a crença de que cada um tem uma participação igual no processo deescolha dos dirigentes. Esses pressupostos permitem mostrar o conflito social comoum mal gerado por vontades individuais e a luta de classes como uma invenção daclasse trabalhadora.
Na realidade, as relações sociais geradas a partir da divisão social do trabalho e dodesenvolvimento do modo de produção capitalista impõem às classes trabalhadoras aluta de classes como forma de resistência à dominação e como meio de garantirpequenas conquistas no interior dessa sociedade; uma luta, portanto, que não foiinventada nem escolhida pelos trabalhadores, mas imposta pelo modo de produçãocapitalista (DIAS, 2014). Da perspectivadominante, porém, a política é entendida de um ponto de vista moral, que naturalizaas relações sociais, subtrai as ideias de seu contexto histórico e penaliza ossubalternos.
Os conceitos de hegemonia e democracia precisam ser entendidos no movimento dialéticoque forma a totalidade do social na sua formação estrutural. Como acentua Dias (1996, p. 11), a estrutura "[...] jamaispode ser pensada como exterioridade em relação às práticas das classes, que sãoprodutoras e produtos da estrutura e não meramente os seus efeitos". Do mesmo modo,a gestão democrática fica limitada se a pensarmos sem o pressuposto da estruturamaterial no movimento da divisão social do trabalho e sem explicitar o verdadeirocaráter do Estado no contexto da sociedade moderna.
A democracia burguesa, na sua forma parlamentar, funciona regulamentada por umaestrutura jurídica que, na sociedade capitalista, atua como a "expressão organizadadas 'aparências' (do mercado)", cujas categorias abstratas ocultam a desigualdadesocial e as relações de exploração da força de trabalho na "extorsão do mais-valor"(EDELMAN, 2016, p. 30). Toda a estruturajurídica, se bem analisada, coloca o homem em segundo plano para a garantia dodireito patrimonial. Nesse contexto, os conceitos mais abstratos são os de liberdadee igualdade, a eles se agregando o próprio conceito de democracia.
Gramsci (1978, Q. 13, p. 1625), acentua que,em qualquer pleito, "[...] não é verdade que o peso das opiniões singulares seja'exatamente' igual. As ideias e as opiniões não 'nascem' espontaneamente no cérebrode um indivíduo singular". As opiniões e ideias "[...] têm um centro de formação, deirradiação, de difusão e de persuasão" a partir de grupos ou mesmo de indivíduos queas elaboram e as apresentam "na forma política da atualidade". A igualdade políticanão existe se não se tem igualdade econômica, já dizia Marx em A QuestãoJudaica. Entretanto, a partir de uma abstração das reais relaçõessociais e de uma naturalização do conceito de democracia, a crença na igualdade dosindivíduos não é posta em questão.
No âmbito da democracia burguesa, a partir dos limites acima explicitados, a cultura,a educação e a religião tornam-se instrumentos de formação da opinião pública etraduzem-se na formação de um consenso passivo. Conforme Dias (2014, p. 20), consenso, para os dominantes, significa"acordo", adesão por meio de alianças que, de um modo ou de outro, diluem e ocultama luta de classes. Um acordo pressupõe que as partes que o realizam sejam iguais emnatureza (como no contrato de trabalho)8, o quenão acontece na realidade capitalista, de modo que todo acordo, no fundo, torna-seuma nova forma de subordinação dos subalternos.
Esse mecanismo de manutenção da subalternidade reforça a ideologia que se expande nosenso comum, no modo de pensar e de ser das massas. O caráter de classe das relaçõessociais, mistificado, gera a possibilidade de conservar a hegemonia. O "[...]Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a opiniãopública adequada", utilizando, para isso, os novos meios de comunicação de massa(DIAS, 2014, p. 20).
Os conceitos de hegemonia e de democracia, nos seus limites, explicitam-se melhor seesclarecemos a relação entre dirigentes e dirigidos, base para entender-se a questãoda gestão democrática. A "mesa redonda", na realidade da sociedade burguesa, nãopode deixar de ser "quadrada" - uma ilusão na qual se acredita a partir dasabstrações que se fazem no âmbito dos discursos que não explicitam os fundamentos dasociedade burguesa. Abstraídos do contexto e naturalizados, os conceitos permitemmanter uma aparência conciliadora e dificultam identificar as contradições e osinteresses econômicos e políticos que subjazem a uma realidade desigual eautoritária. Na luta pela hegemonia, as classes subalternas precisam ter clareza desua situação e de seus objetivos, de modo que a questão do conhecimento e dalinguagem se tornam fundamentais para se construir a emancipação política e humana,o que implica em novas experiências de sociabilidade e de democracia.
Notas sobre a democracia burguesa a partir da crítica gramsciana
Falar em "democracia" implica esclarecer de qual democracia se fala: a única queconhecemos e vivenciamos é a democracia burguesa e, portanto, é dela que devemospartir. Gramsci refere-se ao conceito "democracia" sempre tendo como pressuposto asrelações de força que compõem a sociedade burguesa. Acentua-se, assim, o modo como aideia de democracia se vincula ao modo de organização do Estado moderno,parlamentar, que pressupõe a separação entre economia e política com todos os seusdesdobramentos ideológicos que permitem mostrar o Estado como uma instituiçãosuperior, neutra e acima da sociedade e reduzir a política à mera função degoverno.
Sustentada pela estrutura jurídica, essa ideia reduz-se a um conjunto de práticasmeramente formais e abstratas, visto que o direito não expressa os interesses geraisda sociedade, profundamente cindida e desigual: no modo de pensar do senso comum"[...] supõe-se que o direito seja expressão integral de toda a sociedade, o que éfalso", visto que, em uma sociedade desigual, o direito expressa os interesses da"classe dirigente, que impõe" para toda a sociedade as normas de conduta queconsidera importantes para a "sua razão de ser e ao seu desenvolvimento" (GRAMSCI, 1978, Q. 6, p. 773).
O que torna abstratos o direito e a democracia, de forma a fortalecer sua funçãoideológica, é o pressuposto de que todos são iguais. Ignora-se, por conseguinte, arealidade concreta da desigualdade social implementada pelo modo de produçãocapitalista. Da perspectiva política, a igualdade formal e o individualismoarticulados geram a ilusão de que "todos podem tornar-se elementos da classedirigente" (GRAMSCI, 1978, Q. 6, p, 773). Abase da estrutura democrática burguesa e os interesses individuais subjetivos sãoilusórios, na medida em que abstraem das relações sociais nas quais o indivíduo seencontra inserido. Nesse sentido, sem considerar a situação concreta de exploraçãodo trabalho e de extrema desigualdade social em um preciso contexto histórico,qualquer discurso sobre gestão democrática se torna vazio e sem relevância.
Essa concepção de democracia apresenta-se também como um dos fatores que garantemdeterminadas relações de hegemonia e de aceitação passiva da ordem instituída,funcionando como sustentação ideológica para o domínio e a ampliação da acumulaçãocapitalista.
A ideia mistificada de democracia também permite a apropriação privada da própriaestrutura do Estado que, reduzido à ideia abstrata de mero aparato administrativo eburocrático representante de toda a sociedade, esconde a sua real função de garantiros interesses dos grupos dominantes. Conforme Burgio(2014, p. 338-339), Gramsci considerava o aparelho institucional doEstado parlamentar "[...] um bloco funcional para a manipulação da opinião pública eda vontade coletiva, ou seja, para a salvaguarda do aparato do poder instituído", demodo que a democracia burguesa se constituía em uma "estrutura tirânica porquemeramente formal", com a tarefa de "mascarar, legitimar e perpetuar" a dominaçãoburguesa.
A separação entre economia e política libera o sistema econômico do controle doEstado e permite aos lobbies de atuarem no interior do sistemapolítico em defesa dos seus interesses de classe. Dessa forma, a separação entreeconomia e política mascara a realidade e permite a efetiva articulação entreeconômico, social e político na prática cotidiana da gestão. Para Gramsci, a própriateoria liberal traduz-se em um modo de "'regulamentação' de caráter estatalintroduzida e mantida por via legislativa e coercitiva" (GRAMSCI, 1978, Q. 13, p. 1590).
Para o político sardo, o "[...] Estado é o instrumento para adequar a sociedade civilà estrutura econômica" (GRAMSCI, 1978, Q. 10,p. 1254), ou seja, por "[...] Estado deve entender-se, além do aparato de governo,também o aparato privado de hegemonia ou sociedade civil" (GRAMSCI, 1978, Q. 6, p. 801). A formação do senso comum nosentido de aceitar a separação entre sociedade política e sociedade civil ou apolítica da economia permite a formação de um consenso passivo de uma ordempolítico-jurídica formal que tutela a "[...] ordem pública e o respeito às leis"deixando livre o setor econômico e o mercado para atuarem sem qualquerregulamentação (GRAMSCI, 1978, Q. 26, p.2302). Essa forma ideológica e mistificadora de conceber a ordem social expressa-sena noção abstrata de democracia no âmbito da sociedade capitalista.
A partir desses pressupostos, tem-se uma ordem político-jurídica que se sustentasobre uma igualdade formal dos indivíduos considerados como sujeitos isolados e queignora a realidade concreta que se constitui da exploração do trabalho e da geraçãode uma progressiva desigualdade social. Essa estrutura possibilita a existência deum sistema representativo que se legitima pelo voto popular, mas que não expressa,em momento algum, a vontade popular, a existência de um sistema partidário que semantém financiado pelo poder econômico, que prioriza o processo eleitoral e o votosingular, deixando em segundo plano o debate sobre um projeto de sociedade.Mantém-se, assim, a separação entre dirigentes e dirigidos como se essa separaçãofosse natural e não histórica. Acrescenta-se a essa naturalização dos conceitos aideia liberal de meritocracia, completando-se o quadro da mistificação que sedesdobra na ideia de gestão democrática.
Gramsci (1978, Q. 8, p. 1056) acentua que osignificado mais realista e concreto de democracia se encontra em articulação com oconceito de hegemonia. No sistema hegemônico, existe democracia na medida em que háum movimento molecular entre o grupo dirigente e os grupos dirigidos, ou seja,"[...] na medida em que (o desenvolvimento da economia e, portanto) a legislação(que expressa este desenvolvimento) favorece a passagem (molecular) dos gruposdirigidos ao grupo dirigente".
A democracia, portanto, não se conclui na ideia de gestão nascida da paridade depoder entre dirigentes, mas na "passagem molecular" da situação de dirigido para asituação de dirigente, em um processo de construção da hegemonia. Para tanto, opressuposto é a igualdade social, ou seja, pressupõe a abolição da desigualdadegerada pela exploração do trabalho ou outra forma de exploração e de dominação. Umademocracia concreta implica a existência de uma nova sociedade sem qualquer forma deabstração que oculte ou mascare a dominação. Para tanto, torna-se necessário superara separação entre forma e conteúdo, dirigentes e dirigidos, própria da democraciaburguesa, a fim de criar as bases de uma nova ordem social e política.
Notas sobre relações de poder entre dirigentes e dirigidos
A partir da historicidade da relação entre dirigentes e dirigidos, retomamos algumascolocações de Gramsci a respeito dessa relação no âmbito de uma democracia concreta.A base de reflexão gramsciana é sempre a realidade italiana do início do século XX,realidade eivada por uma tradição política e intelectual conservadora que se traduzno distanciamento dos intelectuais em relação às classes populares e à sua cultura ena incompreensão, por parte dos intelectuais, das necessidades populares.
O autor completa acentuando que essa compreensão-paixão somente se concretiza em umaperspectiva dialética, que une política e história em uma concepção de mundocoerentemente elaborada, que caracteriza o "saber" real. "[...] não se fazpolítica-história sem esta paixão, sem este elo sentimental entre intelectuais epovo-nação" (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1505).Sem esse elo, sem essa paixão, a relação intelectual-povo torna-se uma mera "[...]relação de ordem puramente burocrática e formal; os intelectuais tornam-se umacasta" (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1505).
Essa crítica é dirigida aos intelectuais italianos em geral representantes dahegemonia dominante, mas Gramsci também se dirige criticamente aos dirigentes departido, tanto no período de militância política quanto nos Cadernos, quando refletesobre a noção de vanguarda. Dos escritos de 1919 e 1920, a propósito dos Conselhos,pode-se inferir uma nova prática de organização e formação da classe operária, combase na convivência e intercâmbio9 deexperiências como nova forma de exercício da democracia a fim de desembocar noautogoverno operário. Trata-se de uma prática que, tendo como princípio o trabalhocoletivo e solidário acompanhado pelo debate político, desencadeia um processo deeducação mútua no interior das unidades de trabalho, tronando possível romper comrelações e valores que sustentam a sociedade capitalista baseada na livreconcorrência, na competição, no individualismo.
Os escritos dessa fase de militância política acentuam a originalidade política,cultural e educacional dos Conselhos de Fábrica, que se inspira na organização dosSoviets, no movimento da Revolução de Outubro de 1917. Detalhama organização das assembleias, a discussão aberta dos problemas pelos operários nasfábricas, a tentativa de elaborar um pensamento autônomo e construir a "[...]soberania da república proletária de fábrica", quebrando todas as hierarquias paraconstruir o poder operário sobre novas bases (GRAMSCI, 1975a, p. 166).
Gramsci (1975a, p. 170) salienta a experiênciade autogoverno industrial e político que se produziu no conjunto dos Conselhos deFábrica. Ele acentua a importância e a necessidade das assembleias gerais e analisasua relação com a vanguarda operária. O autor destaca, em vários momentos, que essavanguarda não pode destacar-se das massas nem decidir à revelia delas. Em 1926, apropósito da crise interna do Partido comunista russo acentua que um Partidooperário tem um movimento interno muitas vezes contraditório que lhe dá vida. Seesse Partido se cristaliza, fechando-se em torno das decisões do grupo dirigente nopoder, cuja vontade deve ser aceita sem questionamentos, o Partido condena-se amorrer. Na concepção de Gramsci, o partido precisa ser o ponto de convergência entreo movimento das massas e a ação dos dirigentes, em uma interação dialética que evitaa burocratização do partido (GRAMSCI, 1992, p.473).
Seguindo a senda dos Cadernos, iniciamos no Caderno 6, onde Gramsci acentua que aideia de vanguarda corresponde, no senso comum, a uma elite separada. Essa noçãocompleta-se no Caderno 11, onde ele acentua que, no senso comum, "[...] a partir dasopiniões, das convicções, dos critérios de discriminação e das normas de conduta"que se recebeu do meio social, o intelectual é visto como alguém superior, porquesabe argumentar e defender pontos de vista contrários à opinião comum (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1390-1391). Noentanto, os intelectuais são necessários, visto que "[...] uma massa não se'distingue' e não se torna 'independente' sem organizar-se e não existe organizaçãosem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes" (GRAMSCI, 1978, Q. 8, p. 1042).
Cabe, então, explicitar a relação intelectuais-povo, dirigentes-dirigidos, criando ascondições sociais de superação desse distanciamento. Essa reflexão aparece noCaderno 14 com a afirmação da necessidade de que as massas populares possam formar"[...] blocos sociais homogêneos e compactos que exprimam um grupo de intelectuais",uma "[...] vanguarda sua própria, que reage no seu bloco para desenvolvê-lo e nãoqueira somente perpetuar o seu domínio errante" (GRAMSCI, 1978, Q. 14, p. 1676). Tem-se clareza que Gramsci procuraentender como estabelecer um elo e uma troca permanente entre intelectuais e massas,em um processo contínuo e recíproco de autoeducação. Conforme Dias (2012, p. 92), a questão dos intelectuais, para Gramsci,implicava "[...] compreender porque e como entre as direções e as bases dossubalternos existia um fosso teórico-político" que precisava ser resolvido. Essaquestão retorna quando se fala em literatura, história, linguagem, forma popular eforma culta, todos os momentos nos quais a questão da ideologia, implícita ouexplicitamente, é tratada.
Já no Caderno 2, Gramsci trata dos limites burocráticos dos partidos políticos nasdemocracias burguesas. O autor acentua que neles "[...] os dirigentes se distanciamda massa e se percebe a flagrante contradição que, nos partidos avançados, existeentre as declarações e as intenções democráticas". Os partidos populares, por suavez, precisam incentivar a "[...] participação ativa dos subordinados na vidaintelectual - discussões - e organizativa do partido" (GRAMSCI, 1978, Q. 2, p. 236), visando uma nova ordem social epolítica. Somente quando existe essa articulação dinâmica entre intelectuais emassa, dirigentes e dirigidos, "só então a relação é de representação" (GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1450).
Em vários outros momentos, esta questão é tratada por Gramsci: na necessidade deelevar o nível intelectual e cultural das massas, de articular intelectuais e massa,de entender a cultura nacional-popular como universal, de defender a educaçãorecíproca, de acentuar a necessidade de os dirigidos controlarem os dirigentes e, omais definitivo, a afirmação de que todos os homens são intelectuais. A partir desseesboço, que mostra os caminhos de reflexão de Gramsci sobre hegemonia e sobredemocracia, retomamos a metáfora da mesa redonda quadrada para tentar explicitar, apartir do autor sardo, a ideia de gestão democrática como algo possível de realizarsomente em uma nova ordem social e política.
"Esta mesa redonda é quadrada": redefinindo gestão democrática
O materialismo histórico pressupõe uma relação privilegiada da filosofia com ahistória e com a política, de modo que toda a realidade precisa ser abordada doponto de vista de seu movimento, implicando a historicidade do pensamento e suainterlocução com essa realidade, na relação sujeito-objeto, conhecimento de si econhecimento do mundo. A linguagem, expressão de uma concepção de mundo, éessencialmente metafórica, tanto "[...] em relação aos significados quanto aoconteúdo ideológico que as palavras tiveram nos períodos precedentes da civilização"(GRAMSCI, 1978, Q. 11, p. 1427).
A metáfora apresenta-se como tradutibilidade, conversibilidade das linguagens outransferência de significado entre palavras ou entre a palavra e a realidade, emsentido figurado, a partir de uma comparação não explicita.10 Os sentidos entrecruzam-se e possibilitam novasinterpretações da realidade social e política. A partir de uma perspectivadialética, entende-se que a realidade não é translúcida e a metáfora nos possibilitaexplicitar o que subjaz à aparência e que se esconde por traz do imediatamentedado.
Do ponto de vista da lógica formal, a nossa proposição apresenta-se como umacontradição e, portanto, excluída de qualquer possibilidade de explicação. Coloca emquestão a relação entre a estrutura lógica do pensamento que tem fundamentado todasas pesquisas científicas durante séculos e o modo de vida concreto, em sua dimensãoideológica e política. Da perspectiva dialética, porém, essa metáfora tem umadimensão política que tentamos explicitar, tendo como pressuposto a centralidade dapolítica, nas formas que assume a hegemonia e a democracia na sociedade moderna, nassuas articulações de luta que expressam os conflitos sociais explícitos oulatentes.
Mostrar a quadratura da mesa, no campo da política, pode significar mostrar osnuances do conflito latente nas relações de poder instituídas, simbolizando umagestão delimitada pela burocracia e pela formalidade, resultante da abstração dascontradições que permeiam as relações sociais. Implica também em mostrar que opensamento burguês, por sua natureza fundada na lógica formal e na separaçãosujeito-objeto, é incapaz de explicitar as contradições que, pela própria estruturado modo de produção capitalista, são cotidianamente geradas no âmbito das relaçõeseconômicas e sociais. A historicidade da linguagem e sua dimensão política emetafórica permitem ampliar as possibilidades de leitura e interpretação darealidade.
Dessa perspectiva, entende-se que uma teoria e uma prática de gestão precisam serdefinidas a partir da noção de democracia e da natureza do Estado. Assim, torna-seimportante explicitar a estrutura de poder vigente, seus conflitos internos e oslimites das relações políticas. Na sociedade capitalista, o modo de produção e seusdesdobramentos políticos, a exploração do trabalho e a ampliação da desigualdadesocial são pressupostos para entender qualquer experiência de gestão, assim como oslimites da democracia no âmbito do Estado moderno.
A experiência dos Conselhos de Fábrica certamente foi a primeira experiência deorganização de uma nova hegemonia como efetiva gestão democrática. Uma organizaçãopolítica dos trabalhadores que envolvia a todos no debate da gestão e se produziacomo processo educativo de emancipação política, de difusão do saber para umaefetiva autonomia do pensamento, independentemente dos grupos intelectuais, isto é,da educação tradicional que pressupõe a separação e a hierarquia entre dirigentes edirigidos.
Na preparação do projeto de uma nova gestão social, no período que antecedeu aocupação das fábricas, Gramsci acentuava em seus escritos a necessidade de"libertar-se do despotismo dos intelectuais de carreira" e "intensificar a culturapara aprofundar a consciência crítica" (GRAMSCI,1975b, p. 301). Os escritos de Gramsci acentuavam que a ordem burguesa,hierárquica, mantida por uma disciplina mecânica e autoritária, excluía a crítica, ocompromisso e a responsabilidade do indivíduo com a coletividade. No âmbitopolítico-jurídico formal, basta obedecer à lei e à ordem e deixar que as ambições eas paixões pessoais dos pequenos grupos ativos decidam os destinos da sociedade.
Para os trabalhadores, ao contrário, somente a união e a solidariedade no trabalhocoletivo em torno de um projeto político poderiam construir a liberdade individual,a identidade de classe. Para alcançar esse objetivo, era preciso criar órgãosindependentes de formação política e cultural, formando um hábito intelectualnecessário para superar os limites das lutas corporativas. Nesse período demilitância política, Gramsci empenhou-se em realizar esse trabalho de formação pormeio dos jornais que dirigia e nos quais escrevia cotidianamente. Salientava aimportância de aliar os sindicatos e o partido na nova forma de gestão que seefetivava nos Conselhos. O jornal L'Ordine Nuovo, de culturasocialista, publicado a partir de janeiro de 1919, foi fundamental na consolidaçãodos Conselhos e na formação política dos trabalhadores. O jornal abriu a discussãosobre a ação dos conselhos como uma nova experiência de gestão política; divulgavaos encaminhamentos e as práticas que aconteciam no interior dos Conselhos com oobjetivo de viabilizar uma nova estrutura de poder democrático, nascido de umaexperiência inovadora de gestão da produção e de criação de uma gestão políticavisando a construir o novo Estado operário.
Os conselhos definem, portanto, a natureza das relações políticas e ascaracterísticas de uma concreta gestão democrática. A experiência deste período demilitância política marca sensivelmente a posição política de Gramsci nosCadernos do Cárcere. A noção de democracia como participaçãoefetiva dos trabalhadores no exercício do poder, tanto na geração das leis quanto naavaliação do processo de sua aplicação, também está implícita nos Cadernosdo Cárcere, com raízes claras na experiência do jornal L'OrdineNuovo e dos Conselhos de Fábrica. Uma prática que se funda em um novoprojeto político e social que pressupõe superar a separação milenar existente entredirigentes e dirigidos.
Uma outra experiência de gestão democrática, diversa dessa vivenciada na sociedadeburguesa, implica condições efetivas de participação ativa das massas, com programasclaros, objetivos definidos e transparentes, bem como mecanismos idôneos de escolhae controle dos representantes de modo a impedir qualquer possibilidade decristalização burocrática. Tal democracia deve ser entendida como um processopolítico, econômico e cultural que implique "[...] uma unidade não servil, devida àobediência passiva, mas uma unidade ativa, vivente, qualquer que seja o conteúdodessa vida" (GRAMSCI, 1978, Q. 14, p. 1740).Reafirmamos, a partir desse contexto, que a gestão democrática, da perspectiva deGramsci, implica a participação efetiva das massas, a sua autonomia construída apartir de um trabalho coletivo e a possibilidade de acesso dos dirigidos adirigentes. A lógica do desenvolvimento capitalista, que necessariamente gera eamplia a desigualdade e a exclusão, nega a possibilidade de uma democracia efetiva.As teorias neoliberais assumem claramente uma posição antidemocrática como basepolítica para a expansão da acumulação do capital. Remar contra essa correnteimplica vivenciar cotidianamente o debate crítico, construir as condições dotrabalho coletivo como um processo educativo continuado, como base de uma políticainovadora, que permita efetivamente a participação popular.
Considerações finais
Explicitar o significado de "gestão democrática" a partir de uma retomada dosconceitos de hegemonia e democracia presentes nos Cadernos do Cárcere implica, daperspectiva dialética, questionar a noção de natureza humana fixa e imutável,implícita nas noções de gestão e de democracia fundadas no liberalismo, explicitaros conceitos na sua historicidade, na mudança de significado a partir do ponto devista de classe. Para Gramsci, a gestão democrática como exercício do poder ourelação de forças no âmbito da luta de classes pressupõe esclarecer de qual gestão ede qual democracia se fala: sem esse pressuposto qualquer abordagem se apresentacomo abstrata e vazia de conteúdo.
A abordagem do tema implicou apresentar algumas notas sobre a noção de hegemonia eseu elo com o conceito de democracia, a crítica gramsciana à democracia burguesa e anoção de democracia que se propunha construir a classe trabalhadora de Turim naexperiência dos Conselhos de Fábrica. As notas sobre a relação dirigentes-dirigidostiveram o objetivo de mostrar que esse movimento molecular no contexto das relaçõesde hegemonia é fundamental para a participação efetiva das massas no processopolítico, que implica ainda a proposição de um projeto político inovador. Sem airrupção das classes populares no âmbito da política, de modo ativo e operante, nãose constrói uma efetiva democracia.
Essa participação não é utópica, como afirmamos inicialmente, mas baseada emexperiências concretas como a Comuna de Paris, a tomada do poder pelos trabalhadoresna França, em 1871, assim como a Revolução Russa de 1917. A Comuna de Paris foi umaexperiência de gestão democrática que durou em torno de 70 dias, com escolha dosrepresentantes políticos, por sua vez responsabilizáveis e destituíveis a qualquermomento se necessário - uma experiência fortemente reprimida pela burguesia, com umbanho de sangue que deixou um saldo de 40.000 mortos, demonstrando que a burguesianão tolera qualquer tipo de política (e de gestão) que não seja aquela que abeneficie diretamente.
Embora os Cadernos do Cárcere tenham sido redigidos em um momento derefluxo do movimento operário italiano, a experiência dos Conselhos de Fábrica e dojornal L'Ordine Nuovo foram uma experiência concreta que retiranosso tema do âmbito da utopia e permite entender os conceitos gramscianos de gestãoe de democracia como profundamente viáveis como projeto que se propõe a construiruma nova ordem social e política.
Dessa perspectiva, a gestão não pode ser apenas administrativa ou uma forma deparidade de poder no âmbito da estrutura de governo. Falar de gestão implicaesclarecer os pressupostos da democracia burguesa e entender que tal democracia éapenas uma forma de exercício do poder que se consolidou porque mistificou arealidade, de forma a mascarar ou ocultar os conflitos sociais e a luta de classes.Uma democracia que é a máscara das reais relações oligárquicas e autoritárias, obranco da censura e da tirania dissimulada. Contudo, guardamo-nos para o carnaval,um dia quando, no "[...] lugar da rosa desabrochada, aparentemente plena devitalidade encontraremos, repentinamente, um cravo vermelho, que até então não tinhadado sinais de vitalidade assim prodigiosamente fulminante" (GRAMSCI, 1975a, p. 281).11
Resumo:
Main Text
Introdução
Notas sobre hegemonia e democracia no âmbito da sociedade moderna
Notas sobre a democracia burguesa a partir da crítica gramsciana
Notas sobre relações de poder entre dirigentes e dirigidos
"Esta mesa redonda é quadrada": redefinindo gestão democrática
Considerações finais