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Mon, 14 Oct 2024 in Revista Práxis Educativa
Formação inicial de professores no Brasil e Portugal: uma investigação qualitativa em tempos de pandemia
Resumo
Este artigo tem o objetivo de apresentar resultados obtidos no estudo sobre as políticas de formação de professores e os desafios e aprendizados que impactaram os percursos de formação inicial dos futuros professores durante a pandemia causada pela covid-19 e os caminhos metodológicos que responderam às expectativas formativas desse período. O contexto da pesquisa deu-se em cursos de formação inicial de professores do Centro de Educação a Distância da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), Brasil, e do Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro, Portugal. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, exploratória, tipo estudo de múltiplos casos. O corpus da pesquisa foi constituído por fontes documentais de ambos os países e entrevistas sob a análise de conteúdo. Utilizou-se o software webQDA para o tratamento e análise dos dados, com múltiplas variáveis de classificação, articulação e triangulação com as diferentes fontes de dados. O estudo mostrou que esse período, além de desafiador para a formação de professores, trouxe novas práticas e aprendizagens em relação ao contexto do estágio curricular supervisionado, pois o “novo normal” ainda é um caminho em construção, mas que pode ser o ponto de partida para novas investigações e inquirições à medida que os ajustes provocados pela pandemia se consolidam.
Main Text
Introdução
A formação de professores em nível da Educação Superior tem ganhado visibilidade nas agendas de discussões no Brasil, principalmente com a instituição da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) - Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996), a qual acompanha uma tendência mundial. Entretanto, a LDBEN, em seu art. 62, define que:
A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura plena, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nos cinco primeiros anos do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal (Brasil, 1996).
Importa salientar que essa redação foi alterada pela Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (Brasil, 2017), em função de uma exigência anterior, que admitia a atuação de professores na Educação Básica mediante formação especificamente no Ensino Superior. Nesse caso, fica condicionada à atuação de professores na Educação Infantil e anos iniciais do Ensino Fundamental a formação mínima realizada em nível médio, na modalidade normal. Ainda assim, os diferentes sistemas de ensino são mobilizados a incentivar a formação de professores no Ensino Superior, como forma de qualificar os processos de ensino e aprendizagem. As políticas de formação profissional de professores prescrevem um rol de características regidas pelo desenvolvimento de habilidades e competências para atuar nos diferentes contextos educacionais da Educação Básica, que são reguladas, particularmente, no âmbito dos cursos de licenciatura.
De acordo com a Lei nº 11.788, de 25 de setembro de 2008 (Brasil, 2008), o estágio curricular obrigatório constitui um dos principais componentes, que integra o percurso de formação profissional, definido como pré-requisito inerente ao projeto pedagógico do curso de licenciatura, “[...] cuja carga horária é requisito para aprovação e obtenção de diploma”. Trata-se de um componente fundamental para o processo de formação de professores, uma vez que exige do estagiário uma imersão direta no e com o contexto escolar, além de articular conhecimentos teórico-práticos na perspectiva crítico-reflexiva em contato direto com a realidade da sala de aula.
Com o advento da pandemia, causada pela covid-19, no período de 2020 e 2021, a imersão do estagiário e futuro professor no ambiente escolar ficou excepcionalmente alterada. O ano de 2020 será lembrado pelo registro do estado de emergência de saúde pública, caracterizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2, o novo Coronavírus, e pelas profundas consequências causadas pela doença covid-19. Face a essa pandemia, as autoridades governamentais de todo o mundo adotaram diversas medidas, publicadas em instrumentos legais e normativos, com o intuito de conter a propagação da doença. Entre elas, destacam-se a necessidade de etiqueta higiênica, a proibição de aglomeração de pessoas e a adoção do distanciamento social.
A proibição de aglomeração de pessoas e o distanciamento social foram medidas consideradas mais eficientes e mais adotadas pelos governos em diferentes países, para conter o avanço da pandemia. Tais medidas modificaram o modo de vida da população, alteraram abruptamente o cotidiano nas instituições de ensino, principalmente pela suspensão imediata das atividades presenciais em todos os níveis de ensino. Consequentemente, os professores foram pressionados a migrar do ensino presencial para o ensino on-line, nos percursos de escolarização da Educação Básica, bem como na formação inicial de professores (Unglaub; Lopes, 2021), denominado no Brasil como ensino remoto (Moreira; Marques; Barros, 2020).
Diante desse desafio, de proporções internacionais, e, dessa nova prática emergencial vivenciada na área educacional, foi realizado um estudo de caso, de cunho exploratório e qualitativo, sobre o impacto pandêmico na formação inicial de professores. Trata-se de um estudo realizado a partir de duas instituições públicas de Ensino Superior, uma localizada no Brasil, especificamente no Centro de Educação a Distância da Universidade do Estado de Santa Catarina (Cead/Udesc) e outra, em Portugal, no Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro (DEP/UA). Ambos os países têm uma forte tradição de colaboração com a pesquisa na área educacional, especialmente na formação de professores, objeto deste estudo.
Com isso, este artigo tem o objetivo de apresentar alguns resultados do estudo realizado no estágio pós-doutoral, inlfuenciado pelas políticas de formação de professores e os desafios e aprendizados que impactaram os percursos de formação inicial dos futuros professores durante a pandemia, causada pela covid-19, e os caminhos metodológicos que responderam às expectativas formativas desse período. A análise comparativa empreendida neste estudo considera que essa experiência pode enriquecer protocolos futuros entre os dois países, além de outros.
Assim, as questões que mobilizaram esta investigação consideraram: Quais desafios e aprendizados surgiram na formação inicial de professores durante a primeira e segunda “ondas” (de março de 2020 a março de 2021) da pandemia da covid-19? Quais ajustes foram implementados dentro das estratégias iniciais de formação de professores durante a pandemia da covid-19? Quais as políticas de formação de professores nortearam as práticas pedagógicas nesse momento ímpar? Diante desses questionamentos, que seguem tão atuais e desafiadores neste período pós-pandêmico, ganha visibilidade a discussão sobre quais metodologias foram utilizadas e se tornaram importantes para responder às necessidades formativas dos futuros professores durante a pandemia, a partir dessa realidade educacional.
Diante de várias considerações sobre possibilidades metodológicas, optou-se por realizar uma investigação exploratória, de abordagem qualitativa, fundamentada nos pressupostos de Lüdke e André (2022), Souza e Souza (2022), subsidiada pela pesquisa do tipo estudo de caso, conforme a concepção de Yin (2015).
O corpus da pesquisa foi constituído por fontes documentais, bem como pelos depoimentos de docentes e discentes, inseridos nos cursos de formação de ambos os contextos universitários de formação de professores, cujos dados empíricos foram coletados entre os meses de dezembro de 2020 e junho de 2021. As fontes documentais examinadas concentraram-se nos decretos governamentais, normativas e portarias institucionais, duas dissertações de Mestrado da UA, três relatórios de estágio curricular supervisionado e a publicação de um ciclo de palestras on-line realizado no âmbito do Cead/Udesc. As entrevistas foram realizadas on-line, via plataforma Zoom, e seguiram um roteiro prévio de entrevista semiestruturada, com base na proposta de Manzini (2020), com questões semiabertas, as quais foram respondidas de forma assíncrona. A análise e a interpretação dos dados foram fundamentadas nos princípios da análise de conteúdo qualitativa de Bardin (2016), considerando duas categorias principais: dificuldades e aprendizagens, das quais emergiram uma série de subcategorias, apoiadas pelo software webQDA® (Freitas; Costa; Souza, 2020; Machado; Vieira; Cunha, 2020; Souza; Costa; Moreira, 2011).
Nessa direção, o estudo desencadeou questões que ganharam visibilidade, bem como buscou compreender os desafios emergentes que provocaram profundas implicações na forma de levar a cabo as práticas profissionais, na formação inicial de professores. Assim, infere-se que a pandemia provocou alterações profundas na formação inicial de professores em processo de estágio de docência com os contextos escolares, do presencial físico para o presencial virtual, implicadas pelas medidas políticas que cada nação definiu. Desse modo, o “novo normal” ainda é um caminho em construção, particularmente no processo de ensino e aprendizagem de estagiários, que buscaram um percurso de formação profissional para ser professores. Por fim, este estudo pode se tornar um ponto de apoio ou de partida para novas investigações e inquirições, à medida que os ajustes provocados pela pandemia se consolidam.
Formação inicial de professores: teoria e prática
A formação de professores é um processo desafiador, pois cada ser humano é único e tem sua especificidade. Cada um está inserido em um contexto de rápidas transformações sociais, culturais, tecnológicas e científicas que têm impacto direto na formação das pessoas, especialmente na formação dos futuros professores. Quando e como alguém aprende a ser professor? Como um professor aprende a articular a teoria pedagógica e a prática em sala de aula? Quando são construídos os saberes didático-pedagógicos para o exercício da docência? Que políticas de formação de professores subsitidiaram as necessidades emergentes em tempos de pandemia? Essas preocupações são frequentes entre estudantes de cursos de formação de professores de diversas áreas, recém-chegados à profissão docente e até mesmo professores experientes em sala de aula.
Considerar que alguém pode se tornar professor apenas com conhecimento acadêmico sem contato com escolas, ou apenas com experiência sem acesso à teoria de apoio, é ignorar o complexo processo de formação de professores. A formação docente ocorre em diferentes interlocuções, por meio de uma múltipla teia de relações que envolve a comunidade escolar e a comunidade universitária.
Pode-se dizer, por um lado, que o academicismo isolado durante o processo de formação inicial produziria professores voltados apenas para conhecimentos dogmáticos inacessíveis à realidade cotidiana dos alunos, servindo apenas para exaltar a “sabedoria” do mestre. Por outro lado, uma formação ancorada exclusivamente na experiência retiraria a base teórica necessária para um trabalho reflexivo consistente e fundamentado (Unglaub; Lopes, 2021).
Para situar adequadamente a questão da formação docente, é importante considerar cinco aspectos destacados por Nóvoa (2017), a saber: conhecimentos adquiridos e desenvolvidos através da prática; aprender com os mais experientes (“cultura profissional”); sensibilidade pedagógica que leva em conta aspectos mais subjetivos, como a relação e a comunicação do professor com sua profissão; trabalho em equipe e participação no desenvolvimento do projeto pedagógico da escola; e, por fim, compromisso com a inclusão social e convivência com a diversidade cultural.
Compreende-se que a construção da identidade docente não se dá apenas em uma formação inicial, passando por muitos dilemas, particularmente pelas transformações constantes que ocorrem em termos de regulações oficiais no campo da educação. Importa salientar que o início das experiências docentes demarcam significativamente a vida profissional do professor e se tornam decisivas para estabelecer as relações humanas que se entrelaçam com a profissão. “É o tempo mais importante na maneira como nos tornamos professores, na construção da nossa identidade profissional” (Nóvoa, 2023, p. 81).
Dada a complexidade das circunstâncias que afetaram a educação em decorrência da covid-19, “[...] os efeitos devastadores da pandemia podem prolongar-se por muito tempo na nossa vida em comum, social, coletiva, partilhada”, como destaca Nóvoa (2023, p. 24), pois afetou diretamente as relações humanas. Devido a essa complexidade conjuntural, as relações foram afetadas inesperadamente, e o contexto social atual tem requerido outras condições de vida entre as pessoas, com mais empatia e acolhimento, inclusive nos espaços educativos.
Para Nóvoa (2023, p. 25), “[...] não há educação sem afeto, não há educação sem sentimento, não há educação sem relação humana profunda, de alunos com alunos, de alunos com professores. Não se pode conhecer sem sentir, não se pode aprender sem emoção, sem empatia”. A identidade docente passa pela individualidade humana, mas depende muito das relações coletivas, em que o diálogo e a partilha de experiências sejam subsidiados por conhecimentos teórico-metodológicos que desencadeiam um processo de reflexão, ao que Nóvoa (2023, p. 70) tem concebido como “comunidades de conhecimento”. Essa compreensão evidencia a necessidade de mobilizar ideias em discussões no âmbito da escola, para fins de solucionar questões que marginalizam o próprio processo de escolarização de estudantes, que, por sua diversidade humana, ainda requerem respeito e reconhecimento.
Essa reflexão permite-nos perceber que um professor de sucesso está atento aos vários fios que entrelaçam a sua formação, valorizando cada um dos elementos que irão potencializar a sua atividade docente. Dentro desse complexo processo, o estágio curricular supervisionado que os futuros professores deverão vivenciar constitui uma estratégia pedagógica singular. É possivel entender que os estágios possibilitam a articulação entre teoria e prática por meio do contato local e presencial dos futuros professores com a realidade escolar.
O estágio curricular supervisionado permite ao futuro professor conhecer e viver, na prática, experiências articuladas aos referenciais teóricos. Para subsidiar o exercício profissional do docente em formação, o estágio necessita oportunizar ao educando a possibilidade de apropriar-se dos saberes escolarizados em diferentes áreas, com base na interação entre a pesquisa e a prática pedagógica. Importa registrar que o estágio passa pela “intervenção no campo educacional” e concebe a atividade de estágio como práxis educacional, primando pela unidade, teoria e prática, que se efetiva pela pesquisa; logo, emerge uma dimensão político-educacional de todo processo: a intervenção docente.
A intervenção no campo educacional do curso de Pedagogia a Distância Cead/Udesc e do Mestrado de Docente de Educação da UA é resultado de pesquisa em todo o processo. O exercício de formação docente no campo de estágio inicia com a sondagem do local onde o estágio será realizado, por meio da leitura crítica de contexto do cenário educacional, observação direta, observação participante, diálogo com os educadores do campo de estágio, análise documental e estudos teórico-científicos. Essas etapas iniciais são técnicas de pesquisa do(a) estagiário(a) que permite a coleta de dados que subsidia a organização do projeto de pesquisa e possibilita a construção do projeto de intervenção docente. Tanto o projeto de pesquisa como o de intervenção apresentam temática(s) definida(s) com base na leitura crítica de contexto.
É no cotidiano que surgem as questões que alimentam a pesquisa, a fim de responder àquela realidade, na busca de uma possível solução. Corrobora-se com Imbernón (2017) que a formação de um professor passa inevitavelmente pela ação de um pesquisador, que desenvolve uma investigação em íntima relação com a sua função de ser professor. Desse modo, é fundamental que o futuro professor, durante sua formação inicial, se aproprie de conhecimentos fundamentais, para se tornarem criadores de estratégias e métodos de intervenção, cooperação, análise, reflexão, que são características inerentes de um professor pesquisador, formando-se para mudanças e incertezas (Imbernón, 2017).
Entretanto, no contexto pandêmico, com a prática do “fique em casa”, que teve o objetivo de conter a propagação do vírus, como investigar o cotidiano escolar? Como estabelecer relações com a prática docente para construir características inerentes de um professor pesquisador e reflexivo de sua própria prática? Que ajustes foram necessários para adaptar as estratégias de ensino na formação inicial de professores durante a pandemia de covid-19, principalmente em relação à prática do estágio? Questões psicossociais afetaram a prática do estágio? Fala-se em ensino remoto emergencial, ensino on-line. Será que ensino remoto e educação a distância são similares? A que distância se está da educação a distância? Essas e outras questões vieram à tona no momento de covid-19.
Em 2020 tudo mudou. Com a pandemia terminou o longo século escolar, iniciado cento e cinquenta anos antes. A escola, tal como a conhecíamos, acabou. Começa, agora, uma outra escola. A era digital impôs-se nas nossas vidas, na economia, na cultura e na sociedade, e também na educação. Nada foi programado. Tudo veio de supetão. Repentinamente. Brutalmente (Nóvoa, 2022, p. 34).
É fato que a pandemia modificou a vida das pessoas profundamente. Desconectou as relações humanas do contato físico, mas redimencionou essa conexão de forma virtual, mediada pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TIDC). Como sinaliza Nóvoa (2022, p. 36), atualmente, “[...] não é possível pensar a educação e os professores sem uma referência às tecnologias e à ‘virtualidade’. Vivemos conexões sem limites, num mundo marcado por fraturas e divisões digitais”. Contudo, é necessário enfrentar os desafios marcados pela pandemia e tirar grandes lições de vida, principalmente as experiências e os conhecimentos válidos para uma formação docente que enriqueça e valorize as relações humanas em suas diferentes culturas e diversidades.
Lopes (2013) considera que a reflexão e o questionamento sejam atitudes que levam o professor a buscar respostas para as situações complexas do cotidiano escolar. A autora reitera serem fundamentais para o desenvolvimento e aplicação de competências centrais, tais como o pensamento crítico e reflexivo, que é importante para a resolução de problemas. Esse é um desafio na formação inicial de professores para lidar com situações problema imprevisíveis, que é característica da profissão docente. Freire (2021) aponta que o educador deve ser um constante pesquisador, inquiridor, em busca de respostas a situações problemas e, ao encontrar a resposta para essas perguntas, abrirá caminhos para novos questionamentos. Esse movimento faz parte da construção contínua do ser professor.
Destaca-se que o propósito dos cursos de formação de professores é dar subsídios teóricos e práticos para o desenvolvimento de competências para o desempenho de boas práticas pedagógicas no exercício da docência. Esse princípio envolve a relação dialética entre teoria e prática, ancorado no princípio de que os saberes da e para docência são constantes, infinitos (Freire, 2021; Imbernón, 2017; Nóvoa, 2017, 2022, 2023; Pimenta; Aroeira, 2018; Pimenta; Severo, 2021).
Em tempos de pandemia, diante de situações adversas e imprevistas, para o fazer pedagógico, foi necessária uma imersão do uso das tecnologias digitais. Nesse sentido, Almeida e Alves (2020) falam sobre a importância de trabalhar o uso das TIDC na formação de professores e explicitam a urgência de repensar sua utilização para além da operacionalização dessa demanda remota, a fim de ser um canal de produção e construção de saberes, ancorado em sólidas políticas de formação de professores.
Todavia, para que essas condições sejam alcançadas, é preciso superar a concepção de que basta somente o domínio tecnológico ou teórico, sendo necessária uma integração entre ambos, ou seja, aliar a experiência no contexto on-line com a teoria e a prática em sala de aula.
Educação a distância e ensino remoto e/ou ensino on-line
A evolução das tecnologias e das redes de comunicação tem provocado mudanças acentuadas na sociedade, impulsionando o nascimento de novos paradigmas, modelos, processos de comunicação educacional e novos cenários de ensino e aprendizagem. No entanto, ninguém, nem mesmo os professores que já adotavam ambientes on-line nas suas práticas, imaginavam que seria necessária uma mudança tão rápida e emergencial, forçada pela expansão do coronavírus que ocasionou uma pandemia mundial. Na realidade, com a chegada abrupta do vírus, as instituições educativas e os professores foram obrigados a adotar práticas de ensino a distância, utilizando o que, no Brasil, se convencionou chamar de “ensino remoto de emergência” - mesmo não tendo uma relação direta com a educação digital com a qualidade, metodologia e toda a sistemática pedagógica que implica as mediações desenvolvidas na modalidade da Educação a Distância (EAD).
Valer-se das facilidades proporcionadas pelo mundo digital certamente é bem-vindo para a área educacional. Pode-se até afirmar que a utilização das tecnologias digitais para o processo de ensino e aprendizagem acabaria acontecendo paulatinamente, até influenciada pela expansão da modalidade EAD. Contudo, esse processo de conhecimento e utilização de recursos midiáticos no processo ensino e aprendizagem sofreu uma mega aceleração, forçado pela emergência sanitária global.
A questão que permeou o universo de ensino em todos os níveis, desde os acadêmicos e pesquisadores mais renomados aos alunos de todos os níveis do espectro educativo, foi esta: Teria todo o sistema educacional se tornado uma imensa EAD? Para equalizar essa questão importa situar o que é a EAD, embora brevemente, para em seguida explicitar o que o ensino presencial se tornou após as normatizações das autoridades de saúde determinando o distanciamento social e consequente fechamento de todas as instituições educacionais, para fazer frente ao combate ao coronavírus.
A EAD é uma modalidade de ensino que se propõe a atender às necessidades educacionais de pessoas que não dispõem de tempo e condições de estudar de forma presencial. Uma das definições mais concisas para a EAD foi brindada por Moreira e Schlemmer (2020, p. 14):
A Educação a Distância consiste então, num processo que enfatiza a construção e a socialização do conhecimento; a operacionalização dos princípios e fins da educação, de forma que qualquer pessoa, independentemente do tempo e do espaço, possa tornar-se agente de sua aprendizagem, devido ao uso de materiais diferenciados e meios de comunicação, que permitam a interatividade (síncrona ou assíncrona) e o trabalho colaborativo/cooperativo.
A modalidade da EAD se vale das TDIC para intermediar as relações interpessoais entre os atores do processo de ensino e aprendizagem. O Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) engloba todo um arcabouço tecnológico que disponibiliza conteúdos e propicia interatividade entre professor e aluno, enquanto o processo de internalização é resultado da reflexão-crítica do estudante sobre o que é aprendido (Mill et al., 2018). Behar (2018) observa que a EAD cria condições para que cada sujeito aprenda a aprender, desencadeando um processo de desenvolvimento contínuo. O AVA surge, assim, como um dos principais componentes desse processo. Esse ambiente possibilita a formação de comunidades em prol da aprendizagem, em que estudantes, professores, professores-mediadores e gestores interagem para a construção de conhecimento (Mill et al., 2018).
Devido às suas características, algumas pessoas poderiam pensar que a EAD estaria imune ao distanciamento social, mas não se pode esquecer que toda sua estrutura foi concebida para cenários sociais não restritivos de mobilidade e proximidade física. Por isso, as contingências pandêmicas igualmente afetaram o desenvolvimento acadêmico normal de toda essa modalidade de ensino.
Por sua vez, o denominado ensino remoto de emergência foi gerado pela suspensão das atividades letivas presenciais, por todo o mundo, obrigando professores e estudantes a migrarem para a realidade on-line. Essa situação também forçou a transferência e transposição de metodologias e práticas pedagógicas típicas dos territórios físicos de aprendizagem para os recursos on-line. Essa foi uma fase importante de transição em que os professores se transformaram em youtubers gravando videoaulas e aprenderam a utilizar sistemas de videoconferência, como o Skype, o Google Hangout ou o Zoom, e plataformas de aprendizagem como o Moodle, o Microsoft Teams ou o Google Classroom (Moreira; Marques; Barros, 2020).
Entretanto, nesse momento emergencial, a transferência do ensino presencial para o ensino remoto ocorreu de forma improvisada e desafiou muitos professores a utilizar tecnologias digitais e plataformas digitais, na perspectiva meramente instrumental, reduzindo as metodologias e as práticas a um ensino apenas transmissivo (Moreira; Marques; Barros, 2020). Esse contexto revelou “[...] a ausência ou a carência de formação dos docentes no uso das TICs durante o período de pandemia, para se explorar o potencial das tecnologias e das mídias digitais em um contexto sócio-histórico” (Nakanichi; Silva; Furlanett, 2024). É nesse sentido que Moreira, Marques e Barros (2020) chamam atenção para a necessidade de criar modelos de aprendizagem virtual que promovam ambientes construtivistas de aprendizagem colaborativa, nas plataformas escolhidas, aliados a uma metodologia que viabilize a formulação de questionamentos para a construção e compreensão dos saberes.
O ensino remoto emergencial, realizado pelas instituições públicas e privadas, em todos os níveis de ensino, ajustaram e adaptaram suas atividades acadêmicas, embora de forma improvisada, para o uso das tecnologias digitais. Entretanto, ainda se sustentam em fundamentos teóricos, experiências práticas e em prescrições determinadas pela legislação vigente e pelos projetos pedagógicos dos cursos. Contudo, nesse cenário, o “novo normal” necessita prever condições para o desenvolvimento dos planos de ensino que levem em conta sua aplicação de forma remota, o que se torna necessária a adaptação dos interagentes à realidade das tecnologias.
Por isso, ensinar em contexto on-line é sempre um desafio, mesmo para os professores que têm experiência de sala de aula. Para os docentes já ambientados na arte de ensinar, tornou-se imprescindível reinventar-se sem perder a qualidade de sua prática pedagógica. A construção e a reconstrução didático-pedagógica fazem parte do exercício da docência, tanto na formação inicial quanto na constante formação do ser professor. Essa ação de reorganização tem a finalidade de subsidiar atuações e mediar ações comprometidas com a educação de qualidade para construção social do educando. Com o próposito de conhecer como ocorreu essas adições no periodo pandêmico, foi realizada uma pesquisa em nível de estágio pós-doutoral.
Contextos da pesquisa: tensões nos campos educacionais brasileiro e português
Este estudo foi realizado a partir do contexto pandêmico em que foi praticado o “fique em casa”, com o objetivo de conter a propagação do vírus. Nessa realidade emergencial, o processo ensino e aprendizagem, na formação do professor, se defrontou com o desafio dos ajustes no estágio curricular supervisionado, que é o momento do percurso de formação do futuro professor para vivenciar a experiência da docência. Foi esse o ambiente no qual nasceu e se desenvolveu esta pesquisa que envolve a formação de professores de duas instituições públicas de países diferentes: Cead/Udesc, localizada na cidade de Florianópolis (Brasil), e DEP/UA, em Aveiro (Portugal).
No primeiro contexto de estudo, foram selecionados alunos e professores, vinculados ao curso de licenciatura em Pedagogia, ofertado na modalidade EAD, do tipo semipresencial. Definiu-se por esse tipo de educação, justamente porque, nos denominados Polos de Apoio Presencial, acontecem dois encontros semestrais entre os alunos e com o professor com tutores disponíveis para interagirem semanalmente (Udesc, 2017). Além disso, os polos dispõem de computadores para uso in loco, com acesso à internet, disponíveis para alunos que não possuem equipamentos próprios ou limitações no acesso wifi.
O segundo contexto de estudo situado em Portugal ocorreu no DEP/UA, em Aveiro, por voltar-se para a formação e o desenvolvimento de educadores profissionais, o qual faz parte da Universidade, desde sua criação em 1973 (Araújo e Sá et al., 2002). Atualmente, em Portugal, exige-se Mestrado para atuar na docência nos níveis de educação infantil, primário ou secundário como professor/educador - Decreto-Lei n.º 79, de 14 de maio de 2014 (Portugal, 2014). Esse departamento oferece sete cursos de Mestrado, os quais habilitam alunos para a profissão docente. Anteriormente à pandemia, esses cursos eram ministrados na modalidade presencial, fisicamente.
Embora haja diferentes sistemas de ensino superior, especializações e modalidades institucionais (Cead/Udesc - ensino a distância; e DEP/UA - ensino presencial), a estratégia inicial de professores em contexto de formação profissional é semelhante em ambas as instituições, no que se refere às experiências práticas do estágio curricular supervisionado, como espaço do exercícico da docência.
No Cead/Udesc, a experiência prática do estágio curricular passa, em um primeiro momento, pela observação não participante das aulas, a fim de que os estagiários/professores façam a leitura crítica do contexto educacional. Em um segundo momento, o estagiário/professor planeja as aulas em conjunto com o professor supervisor de campo, para, posteriormente, realizar a intervenção docente, conforme prevê o Projeto Político Pedagógico do Curso de Pedagogia (Udesc, 2017). Na Universidade de Aveiro, a experiência de aprendizagem que o estagiário/professor desenvolve está sustentada pelo projeto de pesquisa do curso de Mestrado Profissional (UA, 2019).
Em relação à transição da aprendizagem presencial para a aprendizagem on-line, devido às medidas de distanciamento social implementadas durante a pandemia, outras semelhanças entre os dois contextos nacionais ganham visibilidade na oficialização nas notícias sobre regulamentos das condutas humanas nos espaços sociais (UA, 2020).
No Brasil, o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020 (Brasil, 2020a) proibiu todas as atividades educativas que, via de regra, aconteciam na modalidade presencial nos espaços de escolarização. Posteriormente, o ensino não presencial foi permitido por meio de tecnologias digitais, denominado ensino remoto emergencial, excluindo a possibilidade de aplicação dessa substituição ao estágio curricular profissional e às práticas laboratoriais.
Com o intuito de salvaguardar o ano letivo de 2020, logo após o anúncio da pandemia no Brasil, o Ministério da Educação (MEC) publicou a Portaria nº 343, de 17 de março de 2020 (Brasil, 2020b), a qual autorizou, excepcionalmente e por prazo determinado, a substituição de aulas presenciais em curso por aulas com recurso a meios e tecnologias de informação e comunicação, excluindo a possibilidade de aplicação dessa substituição para estágios profissionais e práticas laboratoriais. Com a permanência do estado de pandemia, essa autorização foi retificada pela Portaria MEC nº 544, de 16 de junho de 2020 (Brasil, 2020c), que prorrogou essa autorização até 31 de dezembro de 2020, permitindo, observados determinados critérios, sua aplicação às atividades dentro dos estágios curriculares de formação inicial de professores.
Em Portugal, as atividades escolares foram também suspensas, a partir de 16 de março de 2020, por determinação do Conselho de Ministros, como uma das principais medidas extraordinárias na contenção e mitigação do novo coronavírus, causador da doença covid-19. A Universidade de Aveiro determinou a suspensão das atividades letivas presenciais no dia 11 do mesmo mês no âmbito de um conjunto de medidas previstas no Plano de Prevenção e Ação Covid-19 (UA, 2020) Essas medidas implicaram sérios constrangimentos à estratégia pedagógica dos estágios, uma vez que os professores-alunos necessitavam concluir o estágio, e a lei portuguesa regula o número mínimo de horas de contacto presencial com os contextos educativos. Além disso, foram suspensas as visitas escolares do supervisor acadêmico para observação do aluno-professor em exercício. Tal como no Brasil, foram adotadas medidas regulamentares específicas para permitir que os alunos-professores concluíssem os seus estágios mesmo nesse contexto excepcional.
As instituições de ensino e os professores de todos os níveis de ensino foram obrigados a adotar práticas de aprendizagem on-line, utilizando o que, no Brasil, se convencionou chamar de aprendizagem remota emergencial (Unglaub; Lopes, 2021). Essa situação implicou sérias dificuldades para a realização dos estágios curriculares, mesmo imergidos em um contexto atípico e excepcionalmente desafiador para os futuros professores. Contudo, cumpre salientar que as experiências de estágio curricular contribuem para o desenvolvimento profissional do futuro professor, permitindo-lhe estabelecer um diálogo entre teoria e prática de forma reflexiva e investigativa.
Pimenta e Severeno (2021), Pimenta e Aroeira (2018) e Pimenta e Lima (2017) destacam que a pesquisa de estágio permite a ampliação e a análise dos contextos educacionais, possibilitam o desenvolvimento da atitude e das habilidades do pesquisador a partir das situações de estágio. Mencionam, ainda, que o desenvolvimento de projetos de intervenção educacional permite compreender, problematizar situações observadas e buscar soluções para o cotidiano escolar à luz da teoria e da própria prática como lócus de pesquisa.
É nessa direção que a formação inicial proporciona experiências em atividades de pesquisa e intervenção, como prática reflexiva, legitimada pelo estágio curricular do curso de formação inicial de professores (Unglaub; Lopes, 2021). Por fim, corrobora-se com Freire (2021) que o processo ensino e aprendizagem e a pesquisa são indissociáveis, pois é impossível haver ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino, tendo em vista que essa relação está em um movimento único, fazendo parte de um mesmo processo.
Procedimentos metodológicos: o itinerário da pesquisa
O itinerário escolhido para conduzir esta investigação partiu de uma pesquisa de abordagem metodológica qualitativa, inspirada nos princípios de Souza e Souza (2022), Lüdke e André (2022). Caracteriza-se pela pesquisa exploratória, do tipo de estudo de caso, por ser uma opção de abordagem para o investigador que estuda caso ou casos identificáveis e delimitados, cuja finalidade seja fornecer uma compreensão do caso ou uma comparação de vários casos, como salienta Creswell (2014). Nesse tipo de pesquisa, a coleta de dados abrange a utilização de múltiplas fontes de informação para interpretar os fenômenos estudados (Creswell, 2014; Lüdke; André, 2022; Yin 2015).
O corpus da pesquisa foi composto por narrativas, descritas a partir da análise e triangulação entre as transcrições de entrevistas semiestruturadas, questionários abertos e análise de relatórios de estágio curricular dos alunos, além de portarias, pareceres e diretrizes governamentais e institucionais que estabeleceram ações a serem implementadas na pandemia. Também foi examinada uma dissertação de Mestrado da UA e dois relatórios de estágio supervisionado do curso de Pedagogia do Cead/Udesc. Esses documentos foram produzidos no período atípico causado pela pandemia e relatam aprendizagens e desafios vivenciados nas práticas pedagógicas desse período.
Importa destacar que os princípios éticos referentes aos procedimentos metodológicos, que envolvem a participação de seres humanos, foram atendidos, conforme orientação de Creswell (2014), desde o processo da definição e descrição da problemática, objetivos, coletas de dados, até a análise dos resultados. Os participantes tiveram garantia do respeito à dignidade, autonomia, e preservação de identidade. Todos os entrevistados assinaram o termo de consentimento do uso das informações cedidas para o uso da publicação da pesquisa, e honrou-se o compromisso de confidencialidade. Preservou-se o anonimato dos participantes em todas as etapas da pesquisa desde o momento da descrição, análise e resultados dos dados. Por fim, as informações encontradas no decorrer da pesquisa, consideradas de relevância para os participantes ou suas comunidades, foram destinadas, exclusivamente, para os fins estabelecidos nos objetivos geral e específicos da pesquisa e produtos relacionados a ela.
O grupo de sujeitos entrevistados foi composto por alunos/estagiários que estavam realizando estágio curricular supervisionado na Educação Básica durante a primeira e a segunda ondas da pandemia de SARS-COV-2, bem como seus supervisores e orientadores. A Tabela 1 indica os papéis dos entrevistados dentro do contexto universitário.
O processo da coleta de dados se deu mediante entrevistas orais, realizadas virtualmente, por meio das videoconferências, na plataforma Colibri (Zoom), devido às normativas legais de distanciamento, para evitar o contágio da covid-19. As questões escritas foram encaminhadas e recebidas via comunicação de e-mail. Os primeiros contatos com os participantes se deram por conversas em WhatsApp com a finalidade de combinar o melhor momento para a realização do encontro síncrono, ou coletar o e-mail para o envio dos questionários com o roteiro das entrevistas.
As entrevistas semiestruturadas ocorreram com base em um roteiro elaborado previamente, de acordo com os princípios de Manzini (2020). Por esse procedimento, as informações foram obtidas de forma livre de respostas condicionadas a uma padronização de alternativas; os entrevistados ficaram à vontade para expor suas ideias sobre o assunto e puderam inserir outras questões durante o depoimento.
As entrevistas foram muito significativas para a pesquisa e possibilitaram conhecer os percalços vivenciados pela emergência sanitária e os ajustes necessários para adaptar as estratégias de ensino durante o processo de formação inicial de professores no período da pandemia de covid-19. Os participantes demonstraram grande interesse em relatar aspectos referentes à sua rotina profissional e sua vida privada para se adequar ao ensino on-line - “remoto”. Também relataram seus temores e desafios, bem como dificuldades que seus filhos estavam a enfrentar nas escolas com esse novo formato de estudos. Nos questionários escritos, os entrevistados aproveitaram para inserir as suas considerações pessoais.
As acadêmicas de formação inicial de professores precisavam realizar seu estágio de prática pedagógica nas escolas de ciclo I e II da Educação Básica. Orientadores e supervisores de estágio também necessitavam acompanhar os estágios, de forma remota (on-line), em um contexto novo e preocupante, que gerou muito estresse, devido à situação pandêmica, fato que ganhou notoriedade nos relatos orais e nas entrevistas.
A busca por fontes documentais passou pelo processo de escavação. No período de pandemia, as produções sobre essa temática eram praticamente inexistentes, pois a situação era completamente nova, fato que conferiu ao exame de documentos oficiais de instituições e governamentais. A dissertação e os relatórios de estágio foram disponibilizados pelos próprios depoentes nos momentos das entrevistas, cujos documentos trazem consigo relatos sobre a transição e execução da prática pedagógica, no formato remoto.
Análise dos dados: ressignificando um percurso de formação de professores emergente
A análise e a interpretação dos dados fundamentaram-se nos princípios da análise de conteúdo preconizada por Bardin (2016), que organiza a perquirição em três etapas: 1) pré-análise; 2) exploração do material; e 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação.
Na etapa da pré-análise, foi realizada a exploração do material, ancorada nas ideias iniciais focadas no enfrentamento da situação emergencial que necessitava de uma ação propositiva de soluções imediatas. Por sua vez, o contato com os teóricos relacionados à formação de professores, EAD e questionamentos estruturou a procura pelas indagações que trariam as respostas mais adequadas na elaboração das soluções urgentes para reinventar a prática pedagógica.
A segunda fase de análise de conteúdos, defendida por Bardin (2016), denominada fase exploratória, foi apoiada pelo software webQDA® (Souza; Costa; Moreira, 2011; Freitas; Costa; Souza, 2020; Machado; Vieira; Cunha, 2020). Esse software contribuiu para organizar e sistematizar todo o contexto da investigação, questionar os dados e classificar as relações individuais ou colaborativas de forma síncrona ou assíncrona. Esse software foi uma ferramenta muito útil, pois proporcionou o trabalho colaborativo de três investigadores geograficamente distantes - dois no Brasil e um em Portugal. Assim, o processo de validação dos procedimentos e das categorias de análise foi facilitado. Isso porque o webQDA® está na nuvem de computadores e permitiu o trabalho simultâneo no mesmo corpus de dados, estabelecendo o processo de codificação e discussão on-line das dimensões e categorias.
Os dados coletados foram inseridos e distribuídos no sistema de codificação desse software, para aglutinar ideias e facilitar a inferência e a interpretação dos dados coletados. Duas categorias foram definidas: dificuldades (52,9% da informação codificada) e aprendizagens (47,1% da informação codificada), e um conjunto de subcategorias foi criada e associada a cada informação codificada, conforme demonstra o código árvore (Figura 1), elaborado automaticamente por esse software.
Essas categorias e subcategorias foram elencadas com base nos questionamentos levantados no período pandêmico, entre os quais: Como desenvolver uma educação inclusiva considerando as diferenças sociais e econômicas dos futuros professores-acadêmicos? Como transpor instantaneamente aulas presenciais para “ensino remoto” que atenda a todos com qualidade? Como estudar sem ter a estrutura tecnológica e psicossocial adequada? Como desenvolver estágio on-line? Questionamentos relativos às especificidades do processo de mediação pedagógica no contexto de ensino-aprendizagem remoto para reposição/continuidade dos estudos na conjuntura da pandemia. Questionamentos cognitivos referentes a novas possibilidades de aquisição de conhecimentos, na área de formação de professores.
As descrições das narrativas contidas nas respostas a essas interrogações, inseridas e classificadas no software webQDA favoreceram a execução da terceira etapa proposta por Bardin (2016), no tratamento dos resultados, inferências e interpretação. Assim, junto às descrições das entrevistas, relatórios e demais fontes documentais consultadas, foram-se descrevendo as inferências e interpretações dos dados coletados e classificados.
A interpretação dos relatos, referentes às dificuldades, partem de sua categorização nos aspectos técnicos ou tecnológicos, cognitivos, emocionais, gestão pessoal, gestão institucional, pedagógicas, desigualdade social (sete subcategorias). Contudo, cabe ressaltar que as questões emocionais, técnicas e de desigualdade social tiveram um destaque acentuado no percentual das respostas. Algumas narrativas que representam a subcategoria de dificuldades emocionais indicam:
Medo de ser infetada ou de transmitir a infecção; receio de me aproximar das pessoas (1ª Estudante, Portugal - entrevista cedida em março de 2021).
Medo de não ser aceita na escola para a realização do estágio (5ª Estudante, Brasil - entrevista cedida em março de 2021).
O nível psicológico e social foi das piores fases da minha vida enquanto estudante universitária (2ª Estudante, Portugal - entrevista cedida em maio de 2021).
Muito cansaço a nível psicológico e dores de cabeça (Supervisora, Portugal - entrevista cedida em fevereiro de 2021).
O trabalho duplicou e a falta do ar puro, de conviver e de me sentir viva deram lugar a uma solidão e uma constante frustração (4ª Estudante, Brasil - entrevista cedida em março de 2021).
Lidar com sérias questões emocionais de nossos discentes que perderam emprego, parentes faleceram, e passaram a estudar mais tempo com seus filhos (Entrevistado B - Orientadora, Brasil - entrevista cedida em dezembro de 2021).
Problemas psicológicos decorrentes das perdas de familiares, do emprego, do cuidado redobrado com a família, o sobre trabalho por conta do home office (Entrevistado B - Orientador, Brasil - entrevista cedida em novembro de 2020).
Estar em casa em isolamento com crianças consumiu muito minha energia e atenção; senti muito medo, distante de tudo e perdi a vontade de estudar (6ª Estudante, Brasil - entrevista cedida em maio de 2021).
Entre as questões técnicas e de desigualdade social, as narrativas indicaram que nem todos tinham seus equipamentos particulares. Muitos os dividiam com seus filhos que também precisavam no formato on-line, bem como com outros membros da família que estavam a trabalhar em home office. A narrativa de um entrevistado revela que: “Disputa de espaços, recursos e equipamentos, em muitos casos não existentes, tornou-se muito comum entre muitos estudantes” (Entrevistado D - orientador, Brasil - entrevista cedida em dezembro de 2020).
As dificuldades foram bem acentuadas a ponto de favorecerem o aumento da desigualdade social, tanto no Brasil como em Portugal. “Muitos não conseguiram ou não tinham como acessar a plataforma da sala de estudos, outros receberam apenas os materiais impressos, e outros a gente precisava levar o material nas comunidades em que os alunos moravam” (7ª Estudante, Brasil - entrevista cedida em maio de 2021). Outra depoente brasileira reforça a evidência das desigualdades e alerta para a necessidade de políticas públicas adequadas: “A desigualdade se tornou mais evidente, e foi difícil, por nossas próprias forças, suprir as necessidades. Faltam políticas públicas adequadas” (Supervisora, Brasil - entrevista cedida em abril de 2021).
Em Portugal, as estudantes estagiárias revelaram que: “Os alunos com mais dificuldades económicas não tinham acesso a computadores, internet e os pais não os conseguiam ajudar a acompanhar os trabalhos propostos pelos professores” (3ª Estudante, Portugal - entrevista cedida em maio de 2021). Outra entrevistada revelou que “[...] as crianças de etnia cigana, as aulas e as tarefas eram dadas em papel aos pais que buscavam as tarefas na escola”, e acrescentou: “Os trabalhos tinham de ficar em quarentena na escola antes de chegar às mãos dos alunos e serem devolvidos aos professores” (2ª Estudante, Portugal - entrevista cedida em maio de 2021).
A intensidade do impacto foi menor nas escolas privadas em relação às públicas. Nas escolas privadas, a reorganização didática e o acesso às tecnologias possibilitaram o breve retorno às aulas de forma on-line, como pode ser observado na narrativa da entrevista gravada de uma docente orientadora: “[...] a estagiária estava a fazer estágio numa escola privada e regressou muito rapidamente a interação didática ainda que a distância, e teve oportunidade de interagir com os alunos fazer aulas on-line” (Entrevistada A - Orientadora, Portugal - dezembro, 2020). Ela acrescentou que “[...] uma escola privada, foi de certa forma privilegiada porque nas outras escolas os outros Estagiários não tiveram a oportunidade de regressar tão rapidamente a interação didática” (Entrevistada A - Orientadora, Portugal - dezembro, 2020). No Brasil, a diferenciação também ficou bem acentuada, pois instituições públicas tiveram suspensas suas aulas por dois meses.
Importa observar que, embora as dificuldades tenham sido muitas, tanto no aspecto da vida privada quanto institucional, se abriram oportunidades para grandes aprendizagens, cuja categoria apresentou a seguinte subdivisão (seis subcategorias): gestão institucional, novas práticas, gestão pessoal, inclusão, emocionais e contexto do estágio curricular. Tal qual na categoria de dificuldades, a descrição permitiu entremear inferências e interpretações nos dados coletados nessa grande categoria.
A subcategoria de novas práticas se destacou com 58,8% das referências; assim, ficou evidente a vontade de buscar novas aprendizagens mesmo diante do caos e das adversidades. Entretanto, que novas práticas foram essas? Como as novas práticas foram estratégias reinventadas? O que elas significam? A seguir, apresentam-se algumas referências extraídas das entrevistas e tabuladas pelo software webQDA conforme narradas pelos participantes da pesquisa:
No contexto de pandemia utilizamos a plataforma Zoom para dar aulas (Supervisora, Portugal - entrevista cedida em fevereiro de 2021).
Criação de momentos complementares síncronos para tirar dúvidas e reforço, ou ajudar a desenvolver competências digitais (Entrevistada A - orientadora, Portugal - entrevista cedida em dezembro de 2020).
Disponibilização de recursos alternativos de ensino-aprendizagem, como gameficação, atividades autocorrigíveis, maior uso de recursos audiovisuais (Entrevistada C - orientadora, Brasil - entrevista cedida em fevereiro de 2021).
Questões colocadas no compartilhamento de tela eles respondiam num prazo estabelecido na sala de aula ou para o e-mail do professor (Supervisora, Portugal - entrevista cedida em fevereiro de 2021).
Tornámo-nos mais versáteis a dar aulas, e enriquecemos o nosso saber (4ª Estudante, Brasil - entrevista cedida em maio de 2021).
Aulas on-line fizeram com que incrementássemos alguns saberes a nível tecnológico (5ª estudante, Brasil - entrevista cedida em maio de 2021).
Acesso aos alunos nas salas virtuais (Google classroom) com tutoriais de todos os recursos utilizados na plataforma, vídeos explicativos e materiais via youtube, Criação e uso de jogos e recursos digitais para contribuir no reforço presencial das crianças (Supervisora de estágio, Brasil - entrevista cedida em abril de 2021).
Provável a presença de aulas digitais a distância passe a ser o novo normal e temos que preparar os nossos professores para isto também nos cursos de formação de professores. É uma necessidade didática e de políticas públicas (Entrevistada A - orientadora, Portugal - entrevista cedida em dezembro de 2020).
O segundo desafio foi tornar o tema atrativo para ser aprendido, aprofundado e pesquisado, nesse sentido apoiei-me na literatura, jogos on-line, mediação de leitura e vídeos (Relatório de Estágio, Brasil).
Replanejamento foi permanente, pois enquanto um grupo avançava muito, o outro estagnava na resposta aos incentivos de interação e aprendizagem (Entrevistada C - orientadora, Brasil - entrevista cedida em fevereiro de 2021).
Destaca-se a importância das entrevistas para o levantamento de indagações, pois as dúvidas e incertezas bem direcionadas podem proporcionar novas e ricas experiências de aprendizagens, como apontou a orientadora brasileira entrevistada: “As dúvidas contribuíram muito, pois a partir delas é que foram dados os encaminhamentos didático-pedagógicos e administrativos” (Entrevistada C - orientadora, Brasil - entrevista cedida em fevereiro de 2021).
Os participantes da pesquisa também revelaram que alguns questionamentos foram levantados acerca do ensino on-line, ou como diriam os brasileiros “ensino remoto”. Esses questionamentos podem servir de futuras reflexões e busca de caminhos didáticos para a reorganização pedagógica de um ensino on-line democrático:
Como desenvolver uma educação inclusiva levando em consideração as diferenças sociais e econômicas dos futuros professores acadêmicos? (Entrevistada C - orientadora, Brasil - entrevista cedida em fevereiro de 2021).
Como transpor instantaneamente aulas presenciais para “ensino remoto” que atenda a todos com qualidade? (Entrevistada D - orientadora, Brasil - entrevista cedida em fevereiro de 2021).
Como estudar sem ter a estrutura tecnológica e psicossocial adequada? (4ª Estudante, Brasil - entrevista cedida em março de 2021).
Como interagir em aulas on-line com os pequeninos para que eles entendam? (Entrevistada A - orientadora, Portugal - entrevista cedida em dezembro de 2020).
Como desenvolver estágio on-line sem contato presencial com as crianças? (5ª Estudante, Brasil - entrevista cedida em março de 2021).
Foram apresentadas essas e outras interrogações relativas às especificidades do processo de mediação pedagógica no contexto de ensino-aprendizagem remoto para reposição/continuidade dos estudos na conjuntura da pandemia. Também apareceram questionamentos cognitivos referentes a novas possibilidades de aquisição de conhecimentos, na área de formação de professores.
Ressalta-se que, para a condução da presente pesquisa, foi importante a aplicação dos princípios da análise de conteúdos citados anteriormente, em cada uma das etapas propostas. Na Tabela 2, apresenta-se uma visão geral do número de entrevistados e de referências (unidades de texto) tal como já mostrado.
Na Tabela 2 estão as dificuldades mais mencionadas e o desafio de aprendizagem de novas práticas em tempo de pandemia. No que se refere às dificuldades, constatou-se que as mais recorrentes estavam relacionadas aos aspectos emocionais, 62 referências, e técnicas, com 17 referências. Acrescenta-se, também, os registros de muitas emoções negativas, as quais foram vivenciadas nos contextos educacionais das universidades e escolas, tanto por alunos quanto por supervisores, durante a fase pandêmica.
Em relação às dificuldades técnicas, as narrativas indicaram que nem toda pessoa possui seu equipamento particular. Em muitas famílias, o computador pessoal é partilhado entre vários membros da família (pais, filhos ou irmãos). Este não era apenas o caso dos alunos, mas também dos professores-alunos.
Durante a pandemia, o ensino on-line e o trabalho em home office competiram. A narrativa de um entrevistado revela que: “A disputa por espaços, recursos e equipamentos, em muitos casos inexistentes, tornou-se muito comum entre muitos estudantes” (Entrevistado D - orientador, Brasil - entrevista realizada em dezembro de 2020). Esse aspecto tornou mais explícita a desigualdade social tanto no Brasil quanto em Portugal e práticas adaptativas têm de emergir, pois: “Muitos não conseguiram ou não tiveram como acessar a plataforma de estudo, outros receberam apenas o material impresso, e outros precisávamos levar o material em comunidades onde os estudantes viviam” (7º Aluno, Brasil - entrevista realizada em maio de 2021). Sobre esse aspecto, outro entrevistado brasileiro destacou a necessidade de políticas públicas adequadas considerando o acesso aos recursos digitais em tempos de distanciamento social: “A desigualdade ficou mais evidente e foi difícil, pelas nossas próprias forças, atender às necessidades. falta de políticas públicas adequadas” (Supervisor, Brasil - entrevista realizada em abril de 2021).
Também em Portugal os alunos estagiários revelaram que: “Os alunos com mais dificuldades econômicas não tinham acesso a computadores, à internet e os seus pais não conseguiam ajudá-los a acompanhar o trabalho proposto pelos professores” (3ª Aluno, Portugal - entrevista realizada em maio de 2021). Outro entrevistado revelou que a maioria das crianças ciganas não tem computador em casa e, nesses casos, para garantir a possibilidade de vivenciar a aprendizagem “[…] as aulas e os trabalhos foram entregues em papel aos pais que recolheram os trabalhos na escola”, por conseguinte: “Os trabalhos tiveram que ficar em quarentena na escola antes de chegarem às mãos dos alunos e serem devolvidos aos professores” (2º Aluno, Portugal - entrevista realizada em maio de 2021).
Essas evidências permitem afirmar que esses novos aprendizados também trouxeram novas perspectivas e questionamentos. Referente às novas questões, é importante destacar que elas precisam ser nutridas e ampliadas. Ao corroborar com Freire (2021), compreende-se que o educador deve ser um pesquisador constante, curioso, em busca de respostas para situações-problema. O processo de encontrar respostas a essas questões abrirá caminhos para novos questionamentos. Com isso, infere-se que há um desafio gritante que atravessa a formação inicial de professores para lidar com situações-problema imprevisíveis, próprias da profissão docente.
Considerações finais
O estudo realizado sobre as políticas de formação de professores e os desafios e aprendizados que impactaram os percursos de formação inicial dos futuros professores durante a pandemia causada pela covid-19 foram profundamente instigantes para compreender os caminhos metodológicos que responderam às expectativas formativas desse período, especialmente no percurso que envolvia a prática docente viabilizada pelo estágio curricular supervisionado. As análises empreendidas, resultantes dos documentos oficiais entre Brasil e Portugal, permitiram constatar que as respostas mais assertivas estiveram vinculadas ao uso de tecnológicas digitais para manter certa interlocução com os estudantes, nesse caso com os estagiários/professores, para concluir a prática antes regulada no formato presencial. No entanto, o distanciamento social para a contenção do vírus fez com que governos de todos os países definissem medidas educativas, regradas por políticas públicas de educação escolar, para seguir com os calendários letivos e concluir os percursos formativos, inclusive da realização dos estágios curriculares obrigatórios em cursos de formação de professores.
O maior desafio esteve em perceber, além das estratégias/metodologias utilizadas no contexto da escolarização nesse período atípico, a forma como a identidade dos professores se alterou. Considera-se relevante seguir com futuras investigações sobre o cotidiano das relações educativas que se valem da modalidade da EAD, uma vez que os resultados mostraram que o ensino remoto, como ocorreu no Brasil, não pode ser confundido com a modalidade EAD.
Portanto, as questões que ganharam visibilidade favoreceram a compreensão de desafios emergentes, novas práticas e aprendizagens em relação ao contexto do estágio curricular supervisionado. Todos os aspectos apontados precisam de um escrutínio mais aprofundado, uma vez que o “novo normal” ainda é um caminho em construção. Assim, este estudo pode ser um ponto de apoio ou de partida para novas investigações e inquirições à medida que os ajustes provocados pela pandemia se consolidam.
Resumo
Main Text
Introdução
Formação inicial de professores: teoria e prática
Educação a distância e ensino remoto e/ou ensino on-line
Contextos da pesquisa: tensões nos campos educacionais brasileiro e português
Procedimentos metodológicos: o itinerário da pesquisa
Análise dos dados: ressignificando um percurso de formação de professores emergente
Considerações finais