Thu, 18 Jul 2024 in Revista Práxis Educativa
Ainda disciplinas? Por quê? - Pensar essas questões com os cotidianos
Resumo
Partindo da ideia de ensaio e das redes educativas estudadas, bem como dos movimentos necessários às pesquisas com os cotidianos, buscamos, neste texto, indicar como o Grupo de Pesquisa Currículos cotidianos, redes educativas, imagens e sons trabalha, em pesquisas que realiza, com a ideia de ‘cineconversas’. Nesse processo, reunimos as ações de ‘verouvirsentirpensar’ filmes e ‘lersentirpensar’ textos de interesse com grupos de docentes em serviço e em formação em Manaus, Amazonas; em Salvador, Bahia; em Vitória-Serra, Espírito Santo; e em Nova Friburgo-São Gonçalo-Rio de Janeiro, no Rio de Janeiro. Trabalhando com questões sociais agudas que estão nos tantos ‘dentrofora’ das escolas, damos ‘espaçostempos’ a narrativas docentes, buscando conhecer possibilidades de ir além da estrutura em disciplinas dos currículos, proposta há mais de dois séculos.
Main Text
A ideia de ensaio
Minha percepção é [portanto] não uma soma de pressupostos visuais, táteis e auditivos: eu percebo de maneira total com todo meu ser: eu abarco uma estrutura única da coisa, um modo único de ser, o qual fala com os meus sentidos ao mesmo tempo (Merleau-Ponty, 1964 apudPallasmaa, 2011, p. 20).1
Este texto toma a forma de um ensaio, em minha decisão, por dois motivos. O primeiro deles tem a ver - sem o pensarmos na ocasião, com clareza - com a maneira como os textos dentro da corrente de pensamento de que participamos - pesquisas nos/dos/com os cotidianos2 - foram sendo escritos, prioritariamente, desde sua criação no Brasil. O segundo motivo é porque, com essa forma de escrever, se assume que estamos sempre em movimento - nossos ‘fazerespensares’3 - o que também esteve presente, desde o início, como central para essa corrente. O ensaio é o que nos permite mostrar esses movimentos no próprio processo de escrita.
Além disso, trabalhando, há muito, com filmes, nas ‘cineconversas’4, em projetos sucessivos5, fomos percebendo a necessidade - para além de usar os filmes - de fazer filmes que dessem conta da criação de ‘conhecimentossignificações’6 nas pesquisas com os cotidianos. Assim, nas pesquisas realizadas, fomos entendendo que:
As “cineconversas” compõem a metodologia do grupo de pesquisa do qual as autoras fazem parte e consistem em, a partir de ‘verouvirsentirpensar’ um filme em conjunto, trocar impressões, experiências e sentimentos. As “cineconversas” nos fazem acessar as memórias pelos sentidos da visão, da audição, do olfato, do paladar, do tato, e a compreender situações da vida nos cotidianos. Elas criam conexões com experiências que revelam as vivências de cada participante, já que um filme não representa a realidade, mas cria realidades que nos permitem conversar e fabular. Nosso objetivo não é interpretar um filme ou tentar entender o que o roteirista e/ou o diretor quiseram dizer. Filmes são potentes artefatos culturais que nos conectam com experiências, memórias e projeções, ajudando-nos a pensar os cotidianos e as pesquisas neles inspiradas (Mendonça et al., 2020, p. 1634).
Para justificar e melhor compreender o que fazíamos, buscamos apoio no pensamento de Machado (2003) acerca do que chamou de filme-ensaio. Com Machado, estendemos a necessidade dos ensaios, vendo-os como surgindo nos processos de pensamento e criação de ‘conhecimentossignificações’ - sejam escritos ou imagéticos-sonoros - nos processos de pesquisa. Machado (2003, p. 1) inicia seu texto-referência nos lembrando que:
Gilles Deleuze, no seu livro póstumo “L’île déserte et autres textes” (2002)7, afirma que alguns cineastas, sobretudo Godard, introduziram o pensamento no cinema, ou seja, eles fizeram o cinema pensar com a mesma eloquência com que, em outros tempos, os filósofos o fizeram utilizando a escrita verbal.
Partindo dessa ideia, Machado (2003, p. 2), para compreender a ideia de filme-ensaio, nos explica o que é um ensaio, dizendo:
Denominamos ensaio [...] certa modalidade de discurso científico ou filosófico, geralmente apresentado em forma escrita, que carrega atributos amiúde considerados “literários”, como a subjetividade do enfoque (explicação do sujeito que fala), a eloquência da linguagem (preocupação com a expressividade do texto) e a liberdade do pensamento (concepção de escritura como criação, em vez de simples comunicação de ideias). O ensaio distingue-se, portanto, do mero relato científico ou da comunicação acadêmica, onde a linguagem é utilizada no seu aspecto apenas instrumental, e também do tratado, que visa uma sistematização integral de um campo de conhecimento e uma certa “axiomatização” da linguagem.
Machado (2003) aprofunda essa ideia trazendo o pensamento de Adorno (1984) que entende que, ao trabalhar com a busca da verdade, o pensamento greco-ocidental afasta o uso do ensaio que, em si, traz a declaração de quem o faz de que está em caminho de algo, que porta dúvidas, que não tem certezas.
Trabalhando, mais uma vez este texto referenciado de Machado com o grupo de pesquisa, Tania Delboni que desenvolve um pós-doutorado8 no grupo nos indicou dois textos de Larrosa (2003, 2004), da mesma época do texto de Machado, e que não conhecíamos. Conversamos acerca deles no grupo. Os dois textos nos ajudaram bastante a compreender esta necessidade do ensaio que sempre tivemos nas pesquisas com os cotidianos. No texto de 2004, que é o texto de uma conferência, Larrosa junta a influência que Foucault e Montaigne - dois ensaiadores - tiveram na sua formação, enquanto se ensaiava, como escritor e filósofo. Esses dois ensaios nos permitiram avançar neste escrito.
Com esse entendimento, embora inicialmente de forma bastante intuitiva, nas pesquisas com os cotidianos fizemos um percurso, de quase três décadas, escrevendo ensaios para dizer aquilo que, sempre em movimento, íamos/vamos ‘fazendopensando’ ao pesquisar as inúmeras redes educativas9 que formamos e nas quais nos formamos, agindo e desenvolvendo relações com outras/outros ‘praticantespensantes’, cotidianamente.
Colocando a questão central deste artigo
Nas duas primeiras pesquisas - citadas na nota 4 - em que usamos filmes e trabalhamos com as ‘cineconversas’, trabalhamos com o que entendemos ser questões sociais graves que estão nos tantos ‘dentrofora’ das escolas. Na primeira delas, foram muitas as questões trabalhadas: diferenças/identidades raciais; diferenças/identidades de gênero; vivências urbanas e rurais; questões de trabalho e emprego; relações com as múltiplas mídias; ‘espaçostempos’ acadêmicos de formação de docentes; as políticas governamentais em suas relações com os cidadãos; os movimentos sociais em suas reivindicações por escolas; práticas escolares e contemporaneidade. Essa pesquisa permitiu uma melhor compreensão das redes educativas que identificamos e com as quais trabalhamos. Na segunda pesquisa, trabalhamos uma única questão: os movimentos migratórios. Para além da questão em si - extremamente mobilizadora -, a pesquisa permitiu melhor trabalhar o que chamamos de “movimentos necessários às pesquisas com os cotidianos”10, bem como caracterizarmos os currículos escolares como sempre “migrantes”11, sempre em movimento nos ‘espaçostempos’ escolares.
No entanto, um acontecimento12, referenciando as duas pesquisas e que nos fez pensar a realização da pesquisa atual, se revelou, de modo surpreendente, ao GrPesq: em nenhum dos grupos de docentes com que trabalhamos13, nos dois projetos, em nenhum momento das ‘cineconversas’ apareceu a pergunta: “Em que disciplina essa questão pode ser tratada?”. Assim sendo, as questões eram entendidas como presentes nas escolas e precisando ser trabalhadas nelas, mas não necessariamente ligadas a qualquer disciplina. Isso nos fez perceber a necessidade de desenvolvermos a pesquisa atual14 cuja questão central é: “Por que as questões sócio/histórico/antropológicas contemporâneas aparecem inúmeras vezes nos currículos escolares para além de sua estrutura em disciplinas que já existem há mais de dois séculos?”.
Desse modo, inicialmente, buscamos a origem dessa estrutura em disciplinas nas reformas Cabanis, no fim do século XVIII e início do século XIX, na França, especialmente, com a ajuda de publicações de Almeida-Filho (2017, 2018). Desses artigos, serviu-nos melhor aquele que trabalha com a organização dos institutos politécnicos e o ensino médio, no período napoleônico, e que é tão bem criticada pelo geógrafo Lacoste, em livro publicado em 1976, no qual, falando da Geografia15, vai discutir os objetivos da criação dessa disciplina nos currículos franceses (Lacoste, 1988), nos permitindo pensar nos objetivos dessa estrutura disciplinar dos currículos. Seu título, tão forte - “A Geografia - isto serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra” - criou grandes polêmicas quando do seu lançamento e continua a nos estimular o pensamento.
Ora, essa estrutura disciplinar surge potente, no momento em que a burguesia europeia organiza financeiramente seus objetivos e estende seus domínios, por meio de colônias por todos os continentes. Transforma-se em hegemônica, na organização curricular, pelo mundo, no transcorrer dos séculos XIX e XX, e, hoje, ainda mobiliza fortemente autoridades e docentes quanto à sua permanência, sem lembrarmos dos porquês e do quando de seu surgimento.
Esses porquês e quando nos mobilizam na presente pesquisa e queremos trazê-los às conversas neste artigo, como o fazemos em nossas ‘cineconversas’, com as/os docentes das redes de diversos municípios brasileiros.
‘Fazerpensar’ diferente nas ‘cineconversas’
Para trabalhar, neste artigo, com a questão mobilizadora da pesquisa que desenvolvemos, decidi usar as gravações feitas nos encontros de março de 2023 com os quatro grupos articulados à pesquisa, formados por docentes em serviço. Como sempre, em todas as ‘cineconversas’, temos um filme pré-assistido - que é ‘vistoouvidosentidopensado’ pelas/pelos componentes dos grupos referidos antes do encontro online - acompanhado por um texto que é ‘lidosentidopensado’, antes da ‘cineconversa’. Nesse mês de março, o filme acerca do qual conversamos foi o documentário “Estrela azul: Mãe Stella” (2005). O texto indicado foi o livro Os olhos da pele - a arquitetura e os sentidos, de Juhani Pallasmaa, arquiteto finlandês que desde o ano anterior (2022), apresentado por Leonardo Rangel Reis16, passou a fazer parte de nossas conversas.
Essas ‘cineconversas’, que foram gravadas para ficarem como recurso da pesquisa, se deram nos dias 15, 17, 22 e 24 de março de 2023, à tarde. Foram ‘vistasouvidassentidaspensadas’ por mim em fevereiro/março de 2024, trazendo algumas aproximações com as quais vamos ‘fazerpensar’ essa parte do artigo.
Algumas falas das membras/membros dos quatro grupos associados foram muito próximas, embora referenciadas, com frequência, às questões locais de ‘espaçostempos’ nos quais vivem atualmente ou nos quais viveram na infância.
Assumindo essa compreensão, vou trabalhar, neste artigo, com a ideia de “‘praticantespensantes’ alegóricos”17, contribuição de Nolasco-Silva (2024, p. 3) às pesquisas com os cotidianos e que é assim por ele explicada na nota 4 do artigo referenciado:
‘Praticantepensante’ alegórico é uma escolha metodológica caracterizada pela reunião de múltiplas vozes que, sob o signo de uma identidade única, exercem no texto uma função-informante. Trata-se da junção de pedaços de narrativas, produzidas por diversos interlocutores de pesquisa, que nos ajudam a pensar sobre determinado tema. Não possui, pois, um caráter biográfico, mas unicamente comunicativo - ilustração de certos modos convergentes de pensar entre sujeitos de uma mesma comunidade. Os ‘praticantespensantes’ alegóricos funcionam, nesse sentido, como personagens conceituais. Para Alves (2010, p. 1.203), “os personagens conceituais são, assim, aquelas figuras, argumentos ou artefatos que entram como o outro - aquele com quem se ‘conversa’ e que permanece presente por muito tempo para que possamos acumular as ideias necessárias ao desenvolvimento de conhecimentos nas pesquisas que desenvolvemos. Esses personagens conceituais aí têm que estar, para que o pensamento se desenvolva e para que se crie novos conhecimentos”.
Assim, por exemplo, Beatriz se refere a sua infância passada na cidade do Recôncavo baiano quando foi grande seu contato com ritos de religiões de matriz africana, nas festas em casa de amigas de escola e de moradia. O exemplo lembrado é o do dia 27 de setembro, “dia de Cosme e Damião”, com o “caruru dos sete meninos” a partir de promessa de uma mãe, a ser comido com as mãos por sete crianças, antes de ser servido a todos. A essa história lembrada e narrada se segue a frase: “vem daí o grande prazer com que como caruru, ainda hoje.” Outras narrativas se seguiram acerca de memórias do dia de São Cosme e São Damião, lembrando uma mesa cheia de manjar de coco - doce preferido de quem contava - na casa de outra vizinha. Na conversa, vai e vem a ideia de como devemos nossos gostos às tantas religiões e povos que habitaram nossa infância. Nisso, aparece, então, aproximações possíveis com o texto ‘lidosentidopensado’ de Pallasmaa (2011, p. 13): “O olhar fixo defensivo e não focado de nossa época, assolado pela sobrecarga sensorial, talvez chegue a abrir novas esferas de visão e pensamento, liberadas do desejo implícito que os olhos têm por controle e poder. A perda de foco pode liberar os olhos de sua dominação patriarcal histórica”.
O autor, em seguida a esse trecho, termina a Introdução do livro nos trazendo citações de vários autores que o impressionaram por dizer isto de outra forma, pensando nossos diversos sentidos. Beatriz nos leu na ‘cineconversa’ e repetimos aqui:
“As mãos querem olhar, os olhos querem acariciar.” Johann Wolfgang von Goethe
“O dançarino tem ouvidos nos dedos dos pés.” Friedrich Nietzsche
“Se o corpo fosse mais fácil de entender, ninguém imaginaria que temos uma mente.” Richard Rorty
“O sabor da maçã... está no contato da fruta com o palato, não na fruta em si; da mesma maneira...a poesia está no encontro do poema com o leitor, não nas linhas dos símbolos impressos nas páginas de um livro. O que é essencial é o ato estético, a vibração, a emoção quase física que surge com cada leitura.” Jorge Luis Borges.
“Que outra coisa o pintor ou o poeta poderia expressar senão seu encontro com o mundo” Maurice Merleau-Ponty (Pallasmaa, 2011, p. 13).
Disso e por isso, Rosa nos traz a memória de um acontecimento em uma de suas aulas, nos inícios de seu trabalho na primeira fase do Ensino Fundamental, quando tratavam de um assunto do programa de estudo previsto: “Meu pai é...”. Ela nos conta o entusiasmo de muitos estudantes da turma para falarem do que o pai era, mas lembrou, também, de uma garota tímida que não falou nada e que, quando o assunto terminou, se aproximou da professora e disse baixinho: “Meu pai é pai de santo”. A necessidade de ouvir esses cochichos, ditos nessa fase do ensino, em especial, nos permite um melhor conhecimento dos tantos mundos culturais em que vivem nossas/nossos estudantes, permitindo percorrer as redes educativas em que são formados com os sentidos aí presentes. Essa percepção faz Rosa nos trazer dois momentos do livro ‘lidosentidopensado’ de Pallasmaa (2011). O primeiro trecho - uma citação de David Harvey - é trazido para lembrar que os tantos ‘espaçostempos’ dessas redes precisam ser considerados quanto ao modo como as crianças, os jovens e os adultos - nossas/nossos estudantes - vão entender as questões que tratamos nas escolas: “As práticas estéticas e culturais são peculiarmente suscetíveis às experiências mutáveis de espaços e tempo, precisamente porque se envolvem com a construção de representações espaciais e artefatos oriundos do fluxo da experiência humana” (Harvey, 1992, p. 327 apudPallasmaa, 2011, p. 16).
Já o segundo trecho lembrado é do próprio Pallasmaa (2011), quando em seu livro referenciado, trabalha “a intimidade acústica”. Rosa nos leu: “A visão isola, enquanto o som incorpora; a visão é direcional, o som é onidirecional. O senso da visão implica exterioridade, mas a audição cria uma experiência de interioridade. Eu observo um objeto, mas o som me aborda; o olho alcança, mas o ouvido recebe” (Pallasmaa, 2011, p. 46).
Para saber aquilo que a estudante queria dizer, mas não a todo mundo, provavelmente porque tinha experiências negativas nesse dizer, era preciso admitir que ela se aproximasse do ouvido da professora e dizer - só a ela - aquilo que tinha que dizer. Sabemos que essa experiência corresponde a muitas experiências que docentes têm cotidianamente.
Essas lembranças, trazendo os sons à conversa, permitiu que Helena trouxesse a questão da importância da oralidade nas trocas humanas cotidianas e lembrasse a importância das contribuições africana e indígena à linguagem cotidiana. Sem dúvida, essas palavras e esses gostos permanecem conosco, pelos sons familiares tantas vezes repetidos pelas mulheres - mães e avós - ao contarem histórias ou alimentarem seus filhos e netos. Nesses momentos, elas trazem os sons repetidos das histórias familiares ou dos modos de cozinhar em uma família, fixando profundos sentimentos e permitindo a conservação de palavras em gerações sucessivas. Isso nos traz, novamente, Pallasmaa (2011, p. 51-52), quando Helena nos leu:
Precisamos de apenas oito moléculas de uma substância para desencadear um impulso olfativo em uma terminação nervosa e conseguimos detectar mais de dez mil diferentes odores. Frequentemente, a memória mais persistente de um espaço é seu cheiro [...].
Que delícia é se mover de um mundo para outro, passando pelas ruas estreitas de uma cidade antiga! Um mundo de aromas de uma loja de balas nos faz lembrar a inocência e a curiosidade da infância; o odor pungente de uma sapataria nos faz imaginar cavalos, salas e arreios e a emoção de cavalgar; a fragrância de uma padaria projeta imagens de saúde, subsistência e força física, enquanto o perfume de uma confeitaria nos remete à felicidade da burguesia.
Nesse momento, Ricardo, membro do nosso grupo de pesquisa, lembra a tese de Noale Toja18, na qual ela - durante a pandemia - desenvolveu conversas gravadas com membras e membros do grupo de pesquisa nas quais foram aparecendo memórias familiares de receitas em acontecimentos na cozinha. Lembrou, também, que a defesa - feita pelo Zoom - foi realizada enquanto Noale preparava algo na sua cozinha.
Beatriz volta a falar, lembrando, agora, suas memórias nos contatos com a religião católica - primeira comunhão; depois da missa de domingo quando se fazia a confissão e que se estava em jejum - e na sacristia era servido pão doce com chocolate quente: “Delicioso!!!!”, exclama terminando a narrativa.
Maria Rita insiste, também, em retomar a questão da religião marcando nossas memórias e gostos, mas mostrando outra coisa, dizendo: “Já na minha família evangélica a coisa era muito diferente. No interior de Goiás, onde vivíamos, não podíamos pegar doces no dia de Cosme e Damião, pois era pecado. Tudo era pecado, aliás. Precisei lutar muito para sair disso e ter contatos com outras crenças. Esse modo de pensar limitou muito minhas memórias, eu acho”.
Essa questão de pecado fez surgir a possibilidade de se comentar o sentido do toque e os contatos da pele e a presença das mãos nisso. Voltamos ao filme ‘vistoouvidosentidopensado’ e Helena lembra que nas religiões de matriz africana a questão do toque surge forte, mas Rosa indica, na conversa, que a benção - que exige o toque - está presente em todas as religiões. O que é entendido como pecado, nas religiões monoteístas (cristãs, judaica e muçulmana), é o toque amoroso que só pode aparecer em situações consagradas, pelo casamento, em geral.
Maria Lúcia vai lembrar, então: “Mas o toque, exatamente porque se refere à pele, é aquele mais presente e originário”. Pede permissão, então, para trazer um trecho do livro de Pallasmaa no qual esse autor lembra o fascínio de uma maçaneta:
A pele lê a textura, o peso, a densidade e a temperatura da matéria. A superfície de um velho objeto, polido até a perfeição pela ferramenta de um artesão e pelas assíduas mãos de usuários, seduz nossas mãos a acariciá-lo. É um prazer apertar a maçaneta da porta que brilha com as milhares de mãos que passaram por ela antes de nós; o brilho tremeluzente do desgaste atemporal se tornou uma imagem de boas-vindas e hospitalidade. A maçaneta da porta é o aperto de mãos do prédio. O tato nos conecta com o tempo e a tradição: por meio das impressões do toque, apertamos as mãos de incontáveis gerações (Pallasmaa, 2011, p. 53).
Com a leitura desse trecho acerca da pele cuja existência nos é trazida pelo sentido do toque que Pallasmaa (2011) indica ser o sentido primordial, Helena pede para voltar à Introdução do livro a que o autor dá um lindo subtítulo - “Tocando o mundo” - e nos lê o seguinte:
Todos os sentidos, incluindo a visão, são extensões do tato; os sentidos são especializações do tecido cutâneo e todas as experiências são variações do tato e, portanto, relacionadas à tatilidade. Nosso contato com o mundo se dá na linha divisória de nossas identidades pessoais, pelas partes especializadas de nossas membranas de revestimento.
[...].
O tato é o modo sensorial que integra nossa experiência do mundo com nossa individualidade. [...] meu corpo me faz lembrar quem eu sou e onde me localizo no mundo (Pallasmaa, 2011, p. 10-11).
Lembra ainda que, no filme, quando as casas de cada santo são mostradas, vamos perceber que a arquitetura varia e a sua visualização desperta aspectos que Pallasmaa vai destacar como necessárias: a consideração do ambiente em torno; a estética própria a cada uma; o material usado na construção... A sensação que sentiu quando pode perceber as casas de santo, no filme, foi de “aconchego”, o contrário do que nos diz Pallasmaa, falando de hospitais e aeroportos. Helena nos lê em Pallasmaa (2011, p. 17):
Acredito que muitos aspectos da patologia da arquitetura cotidiana de nosso tempo também possam ser entendidos mediante uma análise da epistemologia dos sentidos e uma crítica à predileção dada aos olhos pela nossa cultura, em geral, e pela arquitetura, em especial. A falta de humanismo da arquitetura e das cidades contemporâneas pode ser entendida como consequência da negligência pelo corpo e os sentidos e um desequilíbrio de nosso sistema sensorial. O aumento da alienação, do isolamento e da solidão do mundo tecnológico de hoje, por exemplo, pode estar relacionado a certa patologia dos sentidos. É instigante pensar que essa sensação de alienação e isolamento seja frequentemente evocada pelos ambientes mais avançados em termos tecnológico, como hospitais e aeroportos.
A possibilidade de uma conclusão provisória
Na linguagem cotidiana, as palavras “imagem” e “imaginação” normalmente são utilizadas sem maiores reflexões acerca de seu significado e importância. Todavia, o imaginário mental é um veículo fundamental para a percepção, o pensamento, a linguagem e a memória. A imaginação não é apenas a capacidade um tanto frívola de sonhar acordado - ela pode ser considerada a base de nossa própria humanidade. Graças à nossa imaginação, somos capazes de perceber a multiplicidade do mundo e o continuum da experiência com o passar do tempo e ao longo da vida. Sem imaginação não teríamos a sensação de empatia e compaixão - sequer suspeitaríamos do futuro. Tampouco poderíamos fazer julgamentos éticos e escolhas. Precisamos concluir que nossa imagem multifacetada do mundo é um produto de nossa imaginação (Pallasmaa, 2013, p. 10).
Nas tantas ‘cineconversas’ desenvolvidas no projeto atualmente em andamento - sabendo que os processos de pesquisa dos dois projetos anteriormente trabalhados19, que incluíam questões sociais em suas preocupações centrais, podem ter criado, nele, um viés às ações e aos pensamentos - vamos identificando questões históricas que existem nos tanto ‘dentrofora’ das escolas, aparecendo nas redes educativas que estudamos como “problemas”, mas para os quais vão aparecendo saídas diversas, a partir de acontecimentos trazidos por narrativas e memórias das/dos docentes envolvidas/os.
O projeto, pelos seus grupos de pesquisa existentes - em Manaus, no Amazonas; em Salvador, na Bahia; em Vitória e Serra, no Espírito Santo; em Nova Friburgo, São Gonçalo e Rio de Janeiro, no estado do Rio de Janeiro - já nos dão uma extensa amostra da extensão geográfica e cultural brasileira, refletida nos modos de ‘fazersentirpensar’ as escolas e os acontecimentos que nela se dão.
No entanto, as ‘cineconversas’ se passam em grande harmonia. Naturalmente, de respeito entre colegas - com tantas diferenças profissionais e tantas outras - mas, sobretudo, nos indicando possibilidades de memórias comuns com tantas migrações internas feitas entre as regiões do país. Memórias que são também garantidas por experiências escolares comuns, como estudantes e como docentes, garantindo trocas potentes.
Assim, nas conversas vão surgindo aquilo que é trazido pelo filme ‘vistoouvidosentidopensado’, de memórias, junto a leituras - em voz alta ou só em referências - de partes do texto ‘lidosentidopensado’, com todas as dimensões do viver humano - éticas, estéticas, políticas e poéticas. E as disciplinas se perdem nesse intenso e imenso navegar nas imagens, nos sons, nas memórias, nas leituras, nas culturas vivas criadas nos contatos cotidianos de nossos tantos mundos.
Experiências potentes são trazidas em narrativas que, permitindo trocas e dando ideias possíveis de outras ações curriculares, criam acontecimentos. Por isso, não entendemos as memórias trazidas, com os acontecimentos curriculares narrados, como verdades a serem computadas, mas como possibilidades de ações futuras para qualquer daquelas/daqueles que ouvem o que é contado, tanto como para aquela/aquele que conta, em qualquer disciplina em que atuam ou nível de ensino ou região do país. Por isso, temos as ‘cineconversas’ como ‘espaçotempo’ metodológico central em que tantas realidades podem aparecer e se transformar, com nossa imaginação, em virtualidades que se atualizam, permanentemente.
É desse modo que entendo as possibilidades de criação nas escolas de currículos migrantes e as possibilidades de mudança desta endurecida estrutura curricular em disciplinas que permanece nas propostas curriculares oficiais e nas defesas que tantos de nós fazem delas apesar de seu surgimento por interesse da burguesia conquistadora do século XIX.
Resumo
Main Text
A ideia de ensaio
Colocando a questão central deste artigo
‘Fazerpensar’ diferente nas ‘cineconversas’
A possibilidade de uma conclusão provisória