Nas veredas do estágio docente: (re)aprender a olhar
Entre os desafios implicados no ofício de fazer formação docente para a Educação Infantil, este artigo fala de olhares e de possibilidades. Toma como pressuposto que construir um olhar sensível, comprometido com as crianças, é um imenso e necessário aprendizado para o profissional da Educação Infantil. Além disso, considera que observar, interpelar o real, registrar, para gerar reflexões e análises que rompam com o enquadramento determinista da realidade, são ações que contribuem para o estagiário-professor em formação apreender (lições sobre) o ofício da docência. Mirando possibilidades, este texto pretende compartilhar questões e proposições articuladas no processo de acompanhar e orientar estudantes no estágio curricular em Educação Infantil do curso de Pedagogia. Na narrativa constituída, as vozes de estudantes-estagiários são também visibilizadas, de forma a contribuir para amplificar sentidos e reafirmar caminhos nos quais a centralidade do olhar sensível, e seu aprendizado, projeta-se como essencialidade.
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NAS VEREDAS DO ESTÁGIO DOCENTE: (RE)APRENDER A OLHAR
NAS VEREDAS DO ESTÁGIO DOCENTE: (RE)APRENDER A OLHAR
Olhar de Professor, vol. 22, 2019
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Recepción: 01 Octubre 2018
Aprobación: 31 Diciembre 2018
Resumo: Entre os desafios implicados no ofício de fazer formação docente para a Educação Infantil, este artigo fala de olhares e de possibilidades. Toma como pressuposto que construir um olhar sensível, comprometido com as crianças, é um imenso e necessário aprendizado para o profissional da Educação Infantil. Além disso, considera que observar, interpelar o real, registrar, para gerar reflexões e análises que rompam com o enquadramento determinista da realidade, são ações que contribuem para o estagiário-professor em formação apreender (lições sobre) o ofício da docência. Mirando possibilidades, este texto pretende compartilhar questões e proposições articuladas no processo de acompanhar e orientar estudantes no estágio curricular em Educação Infantil do curso de Pedagogia. Na narrativa constituída, as vozes de estudantes-estagiários são também visibilizadas, de forma a contribuir para amplificar sentidos e reafirmar caminhos nos quais a centralidade do olhar sensível, e seu aprendizado, projeta-se como essencialidade.
Palavras-chave: Educação infantil, Estágio docente, Observação e registro.
Abstract: Among the challenges involved in the profession of teacher training for Early Childhood Education, this paper addresses perspectives and possibilities. It assumes that building a sensitive, committed view of children is an immense and necessary learning undertaking for the Early Childhood Education professional. In addition, it considers that to observe, to question what is real, to register, to generate reflections and analyses that break with the deterministic framework of reality are actions that contribute to the trainee-teacher to grasp (lessons about) the work of teaching. Looking at possibilities, the text intends to share issues and propositions articulated in the process of accompanying and guiding students in the curricular stage in Early Childhood Education of the Pedagogy course. In the constitutive narrative, the voices of student-trainees are also seen, in order to contribute to amplify meanings and reaffirm ways in which the centrality of the sensitive eye, and its learning, is projected as essential.
Keywords: Early Childhood Education, Teaching internship, Observation and record.
Resumen: Entre los desafíos implicados en el oficio de hacer Prácticas Docentes para la Educación Infantil, este artículo habla de miradas y de posibilidades. Toma como presupuesto que construir una mirada sensible, comprometida con los niños, es un inmenso y necesario aprendizaje para el profesional de la Educación Infantil. Además de eso, considera que observar, interpelar lo real, registrar para generar reflexiones y análisis que rompan con el marco determinista de la realidad, son acciones que contribuyen a que practicante-profesor en formación aprehenda (lecciones sobre) el oficio de la docencia. Mirando posibilidades, el texto pretende compartir cuestiones y proposiciones articuladas en el proceso de acompañar y orientar a estudiantes en las Prácticas Curriculares en Educación Infantil del curso de Pedagogía. En la narrativa constituida, las voces de estudiantes-practicantes son también visibilizadas, de manera que contribuyan para amplificar sentidos y reafirmar caminos en los que la centralidad de la mirada sensible, y su aprendizaje, se proyecta como esencialidad.
Palabras clave: Educación infantil, Práctica docente, Observación y registro.
APROXIMAÇÃO AO TEMA: UMA MIRADA PANORÂMICA
O estágio curricular é uma oportunidade quase indiscutível de aprendizagem para novos professores de qualquer área; por meio dele, em geral, dá-se a aproximação ao campo de atuação profissional. Para a licenciatura de Pedagogia, um curso que, segundo as determinações legais, deve estar centrado na docência, a imersão na escola, na Educação Infantil ou em outros espaços educativos, é parte imprescindível da formação.
Tal imersão não será, certamente, a única forma de aproximação do novo docente da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental com as instituições de Educação Básica. Ao longo do curso universitário, diferentes propostas e projetos podem ser traçados para promover essa aproximação, sustentados por objetivos diversos que, de toda forma, geram oportunidades para os estudantes adentrarem e conhecerem o campo educacional. Todavia, é o tempo/espaço do estágio curricular que poderá garantir experiências e proporcionar aprendizagens específicas, ligadas à profissão e ao seu próprio campo.
Compreendemos que o estágio curricular tem este primeiro e principal objetivo: a imersão no contexto da docência – para pesquisar o campo de atuação profissional, tecer relações com o coletivo da instituição, conhecer as crianças, formular perguntas sobre a prática pedagógica –, de modo a suscitar o profícuo exercício dialógico de, no envolvimento com o campo educacional, refletir sobre ele e projetar possibilidades de atuação docente futura. Nessa direção, a pesquisa é um eixo em torno do qual o estágio docente pode girar e potencializar os processos formativos (PIMENTA, 2006, 2011; GOMES, 2011; OSTETTO, 2008, 2011, 2012).
Em nosso caso, seguir a perspectiva da pesquisa que se dá na imersão no cotidiano de instituições de Educação Infantil, considerando suas características e suas especificidades, nos impõe possibilidades e desafios. Dentre as possibilidades, encontra-se a liberdade de apreender o contexto como um todo – organização administrativa e funcional, estrutura física e organizacional, proposta político-pedagógica, composição dos grupos de crianças, formação dos profissionais, rotinas, relação com a comunidade, etc. –, e não focado em apenas uma questão prevista na origem de um projeto traçado com outros fins, que não o estágio docente.
Nessa possibilidade, encontra-se, também, o grande desafio: olhar o todo sem se descuidar do particular; olhar as especificidades da Educação Infantil em geral, como primeira etapa da Educação Básica, e de cada instituição em particular em seus contextos; olhar as práticas, os espaços, as relações, as professoras, as crianças; há imensas coisas e aspectos que se olhar! Olhar é, já, um enorme aprendizado no processo de fazer-se profissional. A partir dele, é que pode se dar o envolvimento, por meio do registro, da problematização e da geração de análises que contribuam para cada estagiário e estagiária apreenderem (lições sobre) o ofício da docência, de forma a interpelar o real e não apenas tentar enquadrar o que esteve em seu campo de visão no período.
Essas possibilidades/esses desafios movem-nos à escrita deste texto que pretende trazer à reflexão: como colaborar para que os estudantes-futuros docentes apurem seu olhar sobre a Educação Infantil quando em situação de estágio? Como desenvolver a perspicácia de olhar a complexidade dos contextos como aprendiz hoje e como docente/aprendiz futuramente? Na perspectiva anunciada, registros e reflexões sobre nossas experiências, desafios e propostas ao acompanhar e orientar estudantes do curso de Pedagogia em sua imersão durante o estágio curricular obrigatório em Educação Infantil, constituem a matéria principal deste artigo. Também, as vozes de estudantes, estagiários e estagiárias, serão visibilizadas, por meio de trechos de suas produções reflexivas sobre suas experiências no campo de estágio, que amplificam sentidos.
CONCEPÇÕES QUE SUSTENTAM PERCURSOS: AJUSTANDO O FOCO
Como professoras do curso de Pedagogia da Universidade Federal Fluminense, trabalhamos com o componente curricular Pesquisa e Prática Pedagógica V – Estágio, oferecido no 6º período do curso, com carga horária de 60 horas. Sua ementa vem assim apresentada:
Investigações e intervenções por meio de práticas de ensino e/ou projetos pedagógicos, envolvendo temáticas e/ou categorias trabalhadas em semestres anteriores, além de outras pertinentes, tais como: a) em contextos ou instituições de Educação Infantil: infância, brinquedo, brincadeira, desenvolvimento, ludicidade. b) em contextos de Alfabetização: linguagem, letramento, leitura, escrita, oralidade, comunicação, mídias (UFF, 2006).
Ainda que consideremos ínfima a carga horária atribuída ao referido componente curricular1, o qual pode ser focado na Educação Infantil ou na Escola de Ensino Fundamental (processo de alfabetização), os desdobramentos da ementa, quando voltada à Educação Infantil, permite-nos traçar objetivos e definir uma proposta de temas/conteúdos que caminham tanto na direção de apoiar/preparar a saída para os campos de estágio, como na de (re)acordar princípios que embasam a primeira etapa da Educação Básica. Nesse contexto, temos trabalhado em torno do objetivo geral: investigar o trabalho pedagógico desenvolvido na Educação Infantil, a partir da observação das crianças e de suas interações e brincadeiras no cotidiano, levando em conta a organização dos tempos, dos espaços e das atividades propostas. A partir desse núcleo orientador, traçamos também objetivos específicos: conhecer a estrutura e a organização de instituições de Educação Infantil; observar as crianças, com foco em suas interações e brincadeiras no cotidiano; observar, documentar e analisar práticas pedagógicas desenvolvidas em creches e pré-escolas.
Dentre os temas e as questões que abordamos, citamos: a) O trabalho pedagógico na Educação Infantil: crianças, tempos, espaços, atividades; b) Educação Infantil: (re)aproximações conceituais a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009); c) Prática pedagógica: no cotidiano, questões de pesquisa; d) Ser professor, aprender a olhar: exercícios de observação, de registro e de análise de práticas.
Na mediação teórica, privilegiamos produções acadêmicas ancoradas na prática refletida de professoras que atuam/atuaram na Educação Infantil e de professoras em formação que, na condição de estagiárias que foram, dão a conhecer a experiência de estágio – no fazer, no pensar, no escrever, entre erros e acertos, conquistas e dificuldades, nas aprendizagens ao longo do processo. Percebemos que o trabalho com produções textuais desse tipo contribui para a aproximação de professores e professoras à Educação Infantil como campo de estágio e de atuação profissional, haja vista que facilmente se colocam no lugar daquele que escreve sua experiência, reconhecem os mesmos medos, as mesmas dúvidas e dificuldades e os desejos e as necessidades que estão a pressentir no momento que estão saindo dos muros da universidade para encontrarem-se com a Educação Básica, em sua diversa e complexa estrutura física, pedagógica e administrativa.
O estágio como componente curricular se organiza entre deslocamentos às instituições de Educação Infantil – para conviver, observar, registrar, pesquisar –, e encontros na universidade – para a socialização das experiências e dos registros, levantamento de questões e dúvidas, elaboração de reflexões sobre elas. Antes dos primeiros deslocamentos, os encontros na universidade buscam orientar a chegada ao ambiente da instituição educacional, provocar a projeção sobre o que esperam encontrar e aguçar seu olhar sensível para esse contexto. Para tanto, buscamos traçar em conjunto o que precisa e merece ser observado, além de buscar construir uma forma de se chegar e estar na instituição, com respeito, sem julgamentos e pré-conceitos, com abertura para acolher e ser acolhido; enfim, para dialogar. Concordamos que:
Os primeiros encontros, ainda no campus, transformam-se em tempo e espaço de afinar concepções, propondo a retomada das frágeis conexões estabelecidas até então com o conjunto de disciplinas do currículo já cursadas, num desafiador caminho de realizar sínteses integradoras. Da mesma forma, tempo de criar um substrato para o acolhimento das fragilidades existentes e das conquistas projetadas, de cultivar o apoio afetivo e pedagógico capaz de mobilizar o melhor de cada um. Um tempo precioso para a criação de vínculos que permitem o exercício da autoconfiança e incentivam a descoberta dos muitos jeitos de ser professora (OSTETTO, 2011, p. 82).
É fato que a relação da universidade com as instituições da Educação Básica costuma ser marcada por um olhar de quem “sabe o que fazer” sobre quem “não sabe o que está fazendo”. Quando a universidade propõe ações para/com a escola e/ou a Educação Infantil, com certa frequência há uma reação refratária destas, em defesa do seu saber-fazer contra uma certa prepotência de quem estuda a escola mas não a vive, não sofre suas tensões e não precisa dar respostas imediatas às inúmeras situações que explodem no dia a dia. Olhando de onde olham, ambos os lados têm suas razões, uma e outra se olham de perspectivas diferentes e nem sempre esses olhares se encontram, pois nem sempre convergem para objetivos comuns. Nesse caso, para prosseguir e fertilizar boas experiências, toma-se como essencial a necessidade de se cultivar o encontro e a interlocução de saberes e de fazeres produzidos por uma e por outra instituição.
Quando os estudantes-docentes em formação adentram a escola, carregam visões impregnadas pela memória de experiências escolares de seu tempo de aluno/criança, mescladas com os conceitos e os princípios erguidos ao longo do curso de formação. Se no curso eles são convidados a conhecer a história, as políticas, as teorias, as práticas, as possibilidades que permeiam a Educação Infantil, o cotidiano educativo-pedagógico expõe uma realidade que não corresponde, tal e qual, àquelas apresentadas e estudadas. Por isso, o estágio converte-se em um tempo-espaço fecundo para provocar novas análises e sínteses integradoras, a partir do que conheceram em teoria e do que guardam em seus corpos da experiência educativo-escolar. Por outro lado, a realidade não se apresenta em módulos, em temas estanques que aguardam aprofundamento. Ela se apresenta inteira, e teima em ser dinâmica em sua complexidade. Eis que, se o olhar não estiver apurado ou propenso a estar se apurando, a realidade bate e ele devolve em críticas rasas, por vezes preconceituosas, parciais, e não em análises fundamentadas dialeticamente.
Como apurar olhares no percurso formativo docente? A bela e conhecida história escrita por Galeano (1995, p.7) serve-nos de metáfora-guia:
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai, me ensina a olhar!
Sim, por ser um contexto novo, de extrema complexidade, para entrar e atravessar o cotidiano de creches e pré-escolas constituídas em campos de estágio, é preciso ajudar àqueles em formação a olharem. Isto seja: apoiar suas miradas, provocar outros pontos de vista, colaborar para ajustar os focos, contribuir para o exercício de atitudes que permitam iluminar o instante irrepetível de que são testemunhas, aprendendo a identificar e guardar as essencialidades. Como escreveu o poeta Cicero (1996, p. 337): “Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. [...]. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado”. Em diálogo com o poeta, e falando da importância da observação, do registro e da reflexão para a prática docente, Freire Weffort (1995, p.17) pondera que:
Observar não é invadir o espaço do outro, sem pauta, sem planejamento, nem devolução, e muito menos sem encontro marcado. Observar uma situação pedagógica é olhá-la, fitá-la, mirá-la, admirá-la, para ser iluminada por ela. Observar uma situação pedagógica não é vigiá-la, mas sim, fazer vigília por ela, isto é, estar e permanecer acordado por ela, na cumplicidade da construção do projeto, na cumplicidade pedagógica.
Para ajudar estagiárias e estagiários (temos tido alguns, em novos tempos, que bom!) a olharem a complexidade que se lhes pode mostrar, alguns pontos para as observações são indicados, como uma espécie de roteiro/pauta para (ad)mirar o cotidiano educativo em questão e ser por ele iluminado. Sugerir pautas para a observação contribui para evitar que um olhar sem foco e sem propósito seja direcionado apenas para o avesso do dia a dia da instituição, para as faltas, os limites, os equívocos. Como diz Freire Weffort (1995, p. 13): “Não fomos educados para olhar o mundo, a realidade, nós mesmos. Nosso olhar cristalizado nos estereótipos produziu em nós paralisia, fatalismo, cegueira”.
Na constituição de uma pauta que ajude a (re)orientar a visão na direção de capturar além do aparente e do habitual, os pontos-referências traçados que servem de guia para as observações, refletem os objetivos, os fundamentos e as concepções que praticamos, tanto sobre a formação de professores, quanto referentes ao estágio em si: as relações interpessoais, as responsabilidades, as situações de aprendizagens planejadas, a intencionalidade pedagógica, a mediação de conflitos, a disponibilização e os usos dos espaços, tempos e materiais, os eixos interações e brincadeiras, entre outros. A pretendida reflexão sobre o cotidiano da Educação Infantil e o compromisso com as crianças e profissionais que atuam nas instituições, torna imprescindível a utilização de dispositivos que deem visibilidade a questões que, de um modo geral, dizem respeito ao trabalho docente na Educação Infantil – observar, registrar, documentar (FREIRE WEFFORT, 1995; OSTETTO, 2008, 2012).
No exercício cíclico de estar junto àqueles que compõem o coletivo da Educação Infantil, olhar e problematizar o real capturado em olhares e registros são aprendizagens significativas: frente à importância e à gravidade de ser um profissional que trabalha com crianças pequenas, é decisivo instigar a desconfiança sobre aquilo que um olhar desinteressado ou desinformado não tenderia a captar. Nota-se, porém, que, na aproximação ao campo de estágio, o olhar panorâmico parece inevitável. Diante dos múltiplos elementos que compõem a dinâmica institucional, entre estrutura física, organização administrativa e proposta pedagógica, as primeiras miradas não conseguem se deter em um ponto, têm dificuldade de pousar sobre um fato, uma cena, um acontecimento; tudo parece passar vertiginosamente, escapando do enquadre. Para lembrar Benjamin (1995), é como um sobrevoo no cotidiano, que enxerga e localiza no contexto alguns pontos, mas que, todavia, pela dificuldade de fixar, não atravessa os limites delineados; apenas habitando esse lugar poderá compreender em suas tramas aqueles pontos desconectados, ou perdidos, na paisagem educacional. Assim é que, para
[...] quem apenas sobrevoa a estrada e a vê situada na paisagem a conhece de forma diferente de quem anda em suas voltas e ruas. O sobrevoo é o início do conhecer, mas trilhar seu percurso possibilita conhecê-la em suas voltas e clareiras. O sobrevoo permite uma primeira impressão, um conhecimento de fora. Trilhar as curvas é penetrar, conhecer por dentro e conduzir-se através dela (MAIA, 2018, p. 597).
Conhecer por dentro é aterrissar – para estar com as crianças, viver o encontro com suas possibilidades, potencialidades, seus saberes e suas formas de conhecer o mundo –, e implica uma ética da responsabilidade (BARBOSA, 2009), que envolve todas as dimensões da Educação Infantil e se caracteriza pelo compromisso dos adultos com as crianças e suas aprendizagens. Eis assinalada, portanto, uma característica do estágio: aprender a estar junto, interagir, aproximar-se para reconhecer os modos próprios de ser, conhecer e expressar o mundo constitutivo das crianças. Entretanto, não só de meninos e de meninas que compõem os agrupamentos de creches e pré-escolas, também dos professores e dos gestores, do coletivo, enfim, que dá forma e vida à instituição.
Os sentidos de estagiar se amplificam: estar junto, compartilhar espaços e propostas, constituir atitudes éticas de investigação. É nessa direção que concordamos com a ideia de que:
Estagiar é estar com, é habitar por um certo tempo um espaço formativo complexo e, por isso mesmo, especialmente adequado para potencializar a aprendizagem dos saberes docentes e para fertilizar pesquisas sobre o cotidiano educativo, seja identificando temas que podem ser investigados ou precisam ser aprofundados, seja construindo ou fortalecendo atitudes investigativas que, pautadas pela ética do olhar atento e da observação criteriosa, procuram atravessar a aparência do fenômeno educativo, analisando-o criticamente, ampliando a compreensão do mesmo (OSTETTO, 2012, p. 20, grifo da autora).
No contato e na interlocução com o campo de estágio vão sendo (a)colhidos dados que, posteriormente, serão revisitados e ampliados com pesquisa bibliográfica sobre as questões identificadas e os temas que mobilizaram, no grupo de estagiárias (e de alguns estagiários), o desejo de saber mais. O olhar sobre o cotidiano, mediado pela teoria, pode ser alargado, na reflexividade desencadeada pela busca em compreender certos pontos que foram capturados no percurso. Nessa dinâmica, está claramente posto o fecundo exercício de pesquisa: com um guia-roteiro, estagiárias e estagiários são provocadas(os) a voltarem seus olhares para a complexidade do real, fazendo anotações sobre fatos/dados considerados relevantes pelo seu olhar para, depois, ensaiarem leituras desse real apreendido no registro. Experimentam, assim, ações de interpelar, formular hipóteses, tecer considerações e articular sínteses provisórias que contribuem para a compreensão do cotidiano educativo. Exercitam, enfim, essa importante dimensão investigativa da docência, pois “[...] o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa” (FREIRE, 1998, p. 32).
A pesquisa como um dos elementos constitutivos do estágio, apontada por diferentes autores, é concebida como o necessário movimento de tomar a realidade existente como ponto de partida, observando-a atentamente, interpelando-a e problematizando as condições de sua produção; passa, também, pela análise e pela investigação das contradições nela presentes. Nessa perspectiva, é que “[...] o estágio estará dispondo aos alunos assim formados condições para que ao mesmo tempo em que constroem suas identidades como professores se percebam capazes para se inserir nos contextos e neles proceder às transformações necessárias” (PIMENTA, 2011, p. 10).
Assumir o exercício da pesquisa como um dos eixos do estágio, potencializando ações como observar, registrar, analisar, discutir os dados encontrados e tentar reparar em contradições e questões importantes para o trabalho docente, faz a diferença no percurso. Na complexidade dos processos formativos, que englobam os processos de ensino-aprendizagem dos diversos campos, na “[...] tensão dialética entre o existente e o necessário” (PIMENTA 2006, p. 110), é o movimento de indagar o real que pode provocar dúvidas e incertezas, gerando, de tal forma, o deslocamento para a construção de novos conhecimentos – sobre a prática pedagógica e sobre a própria profissão.
Como dissera o filósofo sobre o processo de conhecimento, é preciso olhar para além do aparente, para além da ordem estabelecida, observar o “reticulado do avesso” (BENJAMIN, 1995, p. 129); por trás da aparente ordem, ou desordem, harmonia, ou desarmonia, pode-se encontrar um emaranhado de fios que sustentam o bordado do real. Aprender a olhar, nesse caso, é dispor-se a perscrutar o emaranhado, para, talvez, perceber que: “A harmonia que se apresenta aos olhos abriga caminhos desordenados, confusos emaranhados, cortes, nós e arremates. Para conhecer é preciso virar o avesso” (MAIA, 2018, p. 598), pesquisar, apurar o olhar.
IN PROGRESS: OLHAR, REGISTRAR, REFLETIR
O exercício de pesquisa que apura o olhar sobre o cotidiano educativo qualifica a inserção do estudante-estagiário no campo de estágio e, para tanto, o registro do vivido – que passa pela observação e pelo compartilhamento de tempos, de espaços e de propostas diárias – é imprescindível. O caderno de campo, suporte para notas, comentários e reflexões sobre questões e contextos observados é um dispositivo importantíssimo, pois gera conteúdos que posteriormente podem ser retomados e analisados, impulsionando a construção de conhecimento sobre a Educação (em sua estrutura e funcionamento) e também sobre ser professor em creches e pré-escolas (dores e delícias, limites e possibilidades).
Depois da observação, o “[...] registro escrito obriga o exercício de ações – operações mentais, intelectuais de classificação, ordenação, análise –, obriga a objetivar e sintetizar – trabalhar a construção da estrutura do texto, a construção do pensamento” (FREIRE WEFFORT, 1995, p. 45). Desde a maneira como se toma nota até a forma própria de elaboração e de sistematização dos registros, o ato de escrever o olhar, o testemunho, promove a oportunidade de tecer autoria, ao passo que reafirma a formação do autor no percurso de produção e de organização de suas narrativas. É visível, em nossa experiência na orientação, que, no início do estágio, os relatos tendem a expressar uma forma de crítica irrefletida, que descreve e (des)qualifica as práticas docentes observadas: ora tendem a acatá-las como procedimentos inquestionáveis, ora tendem a censurá-las de forma implacável. O “aprender a ver” a que, no papel de professoras-orientadoras de estágio, nos propomos a colaborar, vai se constituindo e se revelando nos registros e nas análises ao longo do processo. É como indicou Freire Weffort (1995, p. 40): “Num primeiro momento a reflexão passa por um movimento da desintoxicação da visão autoritária que cada um viveu em relação à linguagem escrita”.
Pouco a pouco estagiárias e estagiários se surpreendem com o que os olhos veem, mas já não se manifestam como críticos implacáveis, mas, sim, como profissionais em formação que devem pensar, e pensam, sobre as práticas docentes; mais abertos ao diálogo com o que observam, encontram em tais práticas pistas e indícios sobre modos de ser professor e professora de crianças. Se, como vimos afirmando, estágio é encontro, diálogo e contempla uma dimensão de pesquisa, será oportuno destacar também que:
Pesquisa é compromisso. Pesquisar é estar comprometido com algo. [...]. Uma pesquisa em Educação é absolutamente comprometida com os seus sujeitos, crianças e adultos. [...] Pesquisar é um ato ético, responsável e único, singular. Realizá-lo é complexo, por vezes, penoso. Realizar o movimento exotópico de ida e vinda, busca e retorno, aproximação e distanciamento a que nos propomos, exige olhar para o outro meticulosa e cuidadosamente. Olhá-lo em seu contexto, ouvi-lo em sua singularidade, respeitá-lo em sua contradição, apostar na sua potência (MAIA, 2018, p. 603).
No movimento de ir e vir, aproximar-se e tomar distância, buscar e recolher achados, singularizar e generalizar saberes e fazeres, o cuidado e o respeito são, sempre, ingredientes imprescindíveis, considerando que estar no campo de estágio é, de certa forma, entrar na casa do outro. No encontro com o outro, em creches e pré-escolas, os estudantes-estagiários vão sendo surpreendidos com um cotidiano que foge à previsibilidade e exige tomadas de decisões para nele se inserir; exige “olhares-pensantes” (MARTINS, 1995), sensíveis, que se voltem às formas de lidar com as situações, dentro e fora da sala de referência de um grupo, para apreender o todo da instituição e aprender a focar no encontro com as crianças – dispondo-se a vê-las e escutá-las, para com elas dialogarem. Desse jeito, o olhar, a escrita, a reflexão realimentam-se e vão constituindo o saber-fazer do novo professor que está em formação.
O olhar pensante procura formas de olhar. [...] se exercita, se instrumentaliza na quebra das amarras de um olhar comum, na procura consciente da própria forma de olhar, no exercício de buscar ângulos novos, na construção de relações. É um olhar de pensamento divergente. (MARTINS, 1995, p. 24).
À medida que o foco da observação vai sendo ajustado, com o passar do tempo estagiárias e estagiários vão formulando comentários e problematizações que são esboços de análises, agora não mais voltada à prática da professora ou à organização da instituição como um todo. Dia após dia, parecem compreender, e visibilizar, os grandes temas que perpassam as infâncias e a prática pedagógica na Educação Infantil: rotinas, interações, escuta, brincadeiras, cuidar e educar, autonomia infantil, conflitos, participação, diversidade, leitura literária, afetividade, entre outros. Um olhar-pensante que procura além dos dados sensoriais e aparentes, que é ativo, curioso, que indaga e faz relações.
No intuito de dar visibilidade aos processos de formas de ver e construir sentidos, compartilhamos a seguir alguns episódios narrados por estudantes-professores em formação, sobre suas impressões e experiências nos primeiros dias de estágio.
Quando acabam de escovar os dentes, algumas crianças ainda estão comendo, uma das crianças pede para brincar num pequeno espaço e o professor não deixou. Colocou-os sentados na mesma mesa que outros comiam. Eles ficaram entediados, o professor mandava ficarem quietos e mais agitados ficavam. Com essa situação, reforcei meu aprendizado do quanto o brincar é importante na vida das crianças (Flávia, estagiária). (UFF, 2019).2
Enquanto esperavam a hora do almoço, uma das crianças passou a entoar a música da brincadeira de estátua e começaram a brincar. Após duas ou três rodadas, as crianças das duas outras mesas ingressaram na brincadeira. Finalmente elas perceberam que se atentar a música e a quem se mexia ao mesmo tempo atrapalhava a elas próprias. Então, pediram que eu e as duas professoras ficássemos atentos a quem se mexia primeiro. Brincaram por cerca de dez minutos. Deu a hora do almoço e foram gradativamente se mexendo até que, de fato, um ganhasse. Eu escolhi esse momento por ter finalmente acontecido um momento de brincadeira entre as crianças. Eu senti que eles eram privados dessa liberdade criativa, para pensarem livremente e se relacionarem segundo suas próprias concepções. Nessa relação, eu aprendo a ratificar a importância do brincar, do lúdico e dos momentos entre as crianças, sem a interferência direta dos professores (Alan, estagiário). (UFF, 2019).
Frente à rigidez das rotinas e da presença maciça de atividades dirigidas em detrimento do brincar, o exercício de um olhar sensível conduz a atitudes e discursos que (re)afirmam a percepção sobre o direito das crianças à brincadeira. A estagiária e o estagiário estranham o observado, mas não se limitam à crítica ou à concordância superficial. Encontram no observado a ancoragem para refletir sobre um dos eixos do trabalho com crianças: o brincar. Suas análises, em construção, ainda não dão conta da dimensão do brincar para as crianças, seu desenvolvimento, suas aprendizagens e inserção no mundo, mas apontam um caminho para práticas que respeitem esse direito, necessidade e característica das crianças.
Em outra situação, a mesma estagiária encontra brechas para confirmar sua desconfiança de que as crianças têm condições de realizar tarefas cotidianas com autonomia, embora a instituição não as conduza dessa forma:
As crianças almoçam e, conforme acabam, o professor as encaminha para escovar os dentes. O professor coloca pasta de dente nas escovas enquanto elas almoçam. Num outro dia, fiquei “responsável” por elas nesse momento e deixei as escovas e pastas disponíveis para as crianças. Elas não só reconheceram as suas escovas e pastas, como colocaram a pasta, escovaram os dentes e depois guardaram no pote de escovas (Flávia, estagiária). (UFF, 2019).
O encontro com uma prática que limita a ação das crianças, que não demonstra ver a competência delas, provoca a reação da estagiária em comprovar para si mesma que as crianças podem mais e que ela pode lhes oportunizar isso.
Diante de uma situação conflituosa, outra estagiária conta sobre como causou-lhe impacto vivenciar uma situação de agressividade, para si inesperada, por não saber lidar com o fato apresentado.
No segundo dia de estágio, um menino me agrediu (com um tapa) e eu não sabia como reagir, nem como a professora iria lidar com a situação. A professora conversou com ele. Pouco depois, o menino deu um tapa em uma criança. Não interagi, preferi observar como as pessoas que já estavam ali há mais tempo conduziriam a situação. Um dos estagiários conversou com ele. Foi desconfortável para mim a maneira como eu reagi, ou não reagi... A sensação que tive de não saber lidar..., mas aprendi que o diálogo funciona bem e é um bom encaminhamento para lidar com essas situações delicadas (Inês, estagiária). (UFF, 2019).
O inesperado é rotineiro na Educação Infantil e Inês, logo no começo do estágio, encontrou-se diante de uma das faces mais difíceis de lidar na escola: situações de conflito e de agressividade. A estagiária descreve o fato em que esteve envolvida, por se tratar de uma situação deveras delicada, conta sobre seu não saber o que fazer e se apoia nos colegas mais experientes. Sua narrativa, além de mostrar o desconforto por não conseguir interagir com a criança, também revela uma atitude cuidadosa, de observar os procedimentos das “pessoas que já estavam ali há mais tempo”. Por esse caminho, testemunha que o diálogo com a criança é uma boa forma de enfrentar questões que, superficialmente, podem parecer apenas disciplinares, mas são relacionais. Do desconforto, pela observação e pela reflexão, a estagiária tece uma aprendizagem importante: conversar é um caminho para resolver situações de conflito e/ou agressividade.
Momentos tensos nos primeiros dias de estágio também foram vivenciados por outra estagiária, relacionado a um certo desconforto com a professora. Ela relata que o diálogo que se estabeleceu no decorrer do processo ajudou-a a se encontrar com as práticas e as crianças. Nesse episódio, sua atenção volta-se ao momento da alimentação, em uma instituição pública que oferece as refeições, mas que, ao mesmo tempo, permite e estimula que as crianças levem lanches de casa.
Todas as crianças levam seus sucos, biscoitos, até mesmo aquelas que comem a comida da escola. Bernardo leva, mas não coloca sobre a mesa e nem aceita a comida da escola. Uma ou outra criança se interessa pelo lanche da outra e acontece de umas darem às outras. Essa prática não chama a atenção, mas notei Bernardo comendo escondido um biscoito do colega. O olhar dele flagrou o meu e ele tentou disfarçar, ao que respondi: “Pode comer. O amigo te deu, pode comer”. Ele sorriu, olhou para os colegas e disse um pouco entusiasmado: “A tia deixou!”. A reação dele me chamou mais atenção do que o fato de comer “escondido”. Bernardo tem maleabilidade em lidar com situações em que é chamado a atenção, outros colegas comem lanche dos amigos, também não me parece que haja alguma questão com as professoras e o menino. Talvez tenha de haver um pouco mais de sensibilidade para observar e tratar Bernardo nessa hora da alimentação (Ivana, estagiária). (UFF, 2019).
Conviver e aprender com as professoras não retira da estagiária sua criticidade para com o ambiente em que realiza o estágio, mas a aproxima de enxergar a criança prioritariamente. Seu olhar é respeitoso, indaga, faz hipóteses, mas não julga. Isso é um aprendizado, que passa pela forma de olhar e também de escrever o que olhou.
Entre estagiários, observar a participação das crianças em atividades que lhes desperte interesse é matéria de surpresa também. Nos registros que destacamos a seguir, o olhar dos estagiários recai sobre as múltiplas linguagens, a dimensão estético-cultural, presentes no cotidiano da Educação Infantil e são reconhecidas como catalizadoras da atenção, da energia, do desejo, da participação das crianças. Ouvir poesias, pintar, desenhar, construir com diferentes materialidades, cantar são propostas que chamam ao encantamento, às quais as crianças respondem com entusiasmo e genuína participação, reafirmam as observações e as narrativas dos estagiários.
Esta situação me encantou por ver o tamanho interesse das crianças. As professoras estão trabalhando poesias com as crianças e, nesse dia, escolheram “Leilão de Jardim”, de Cecília Meirelles. Após a leitura, iniciaram a conversa na rodinha perguntando o que acharam da poesia. Algumas crianças perguntaram pelo significado de algumas palavras da poesia. Uma das professoras contou que, quando a escola foi construída, duas pintoras fizeram as pinturas das paredes externas com elementos dessa poesia, como borboleta, passarinho, sapo, ovos verdes e azuis no ninho, entre outros. Isso despertou o interesse das crianças em olhar as pinturas que passavam desapercebidas por elas. Me pareceu tão bonito ver os pequenos encantados por aqueles elementos que estavam na poesia que ouviram e estavam presentes no cotidiano deles (Marcela, estagiária). (UFF, 2019).
Na sala de leitura, as crianças ouvem uma história sobre um barbante que ficava de diferentes formas para agradar a quem quisesse e assistem a um vídeo de personagens brincando com barbantes. Em seguida, é proposto que criem formas com barbantes. As crianças se organizam em grupos, realizam a atividade e depois apresentam ao grupo explicando o que fizeram e por quê. O motivo de descrever essa atividade é a calma e o interesse observados (Márcio, estagiário). (UFF, 2019).
Como as crianças gostam de cantar! Estávamos sentados no tapete azul, no canto da sala, onde a rodinha sempre é feita. O grupo de 14 crianças está alegre, feliz, cantando, participando. Uma menina destacava-se, parecia gostar muito de cantar e parecia pedir pra cantar todas as cantigas que conhecia! A professora acolheu os pedidos e todos cantam juntos. Nessa cena, foi possível observar como eles gostam de cantar; também permitiu compreender como o momento com música é uma oportunidade de aproximação e troca, de interação positiva, tanto com a professora como com as outras crianças. A ludicidade esteve presente, confirmando a importância da presença de música, do canto, das cantigas na Educação Infantil (Cibele e Daiana, estagiárias). (UFF, 2017).
Como lidar com uma criança com necessidades educacionais especiais? Já nos primeiros dias, uma estagiária esteve frente a esse desafio, por ser uma situação dantes não vivenciada e deveras delicada. No seu registro, ela conta sobre o fato e analisa que se sentiu incomodada por não saber o que fazer, que decisões tomar.
Pedro é uma criança com Síndrome de Down e, mesmo a sala estando com menos crianças, se encontrava mais agitado que o comum. Fugia da sala o tempo todo para ficar na chuva ou passeando pela escola. A turma é agitada e muito barulhenta e percebo que Pedro foge da sala principalmente em momentos de brincadeira com Lego, quando o barulho é maior. Em um momento eu resolvi ir atrás dele e me vi sem saber o que fazer. Por que voltar com ele para a sala se ele não estava bem lá? Mas, o peguei no colo e o levei para a sala. Isso me incomodou, pois não fazia sentido impor a ele estar em sala (Bruna, estagiária). (UFF, 2019).
Um outro estagiário também revela suas surpresas ao lidar com crianças com necessidades especiais – uma menina com má formação nos membros superiores, e uma menina cadeirante. Ambas o surpreendem pela agilidade física, autonomia, autoestima, alegria e afetividade demonstradas. O estagiário narra essa experiência oralmente e se emociona ao relatar como uma das meninas sorri sempre, lhe dá abraços calorosos e realiza de forma independente as atividades, e como a outra lhe dá sustos com sua corrida de cadeira de rodas, sua irreverência e alegria. O estagiário, aprendiz de professor, vê-se impactado com o processo de inclusão bem-sucedido e com a competência que se revela, apesar das deficiências.
Já este estagiário afirma não ter como objetivo a Educação Infantil, porque não deseja ter de se envolver tanto com as crianças. No entanto, seu registro de experiência revela exatamente sua surpresa com a demonstração de afeto de uma criança.
Hoje foi o segundo dia de estágio em um intervalo de quinze dias. Esse fato não impediu que uma menina pulasse no meu colo, me abraçasse forte, me beijasse e dissesse meu nome alto, completando com a frase: Eu senti sua falta! Eu não esperava ser uma atração. Esse comportamento dela não estava no meu planejamento. Eu começo a me perguntar: o que eu espero do cotidiano de um pedagogo? O que eu espero do cotidiano escolar? (Eduardo, estagiário). (UFF, 2019).
Eduardo descobriu a dimensão afetiva constitutiva da relação pedagógica: estar com crianças em situações educativas pressupõe ser afetado e afetar o outro. O que esperar desse cotidiano no qual o inesperado é regra e que, por isso mesmo, é fonte de provocações, transformações, alterações – da pessoa-professor? Como dissera Malaguzzi (1999, p.101),
[...] estar com crianças é trabalhar menos com certezas e mais com incertezas e inovações. [...] não saber é a condição que nos faz continuar pesquisando; nesse sentido, estamos na mesma situação que as crianças. Podemos ter certeza de que as crianças estão prontas para nos ajudar, oferecendo-nos ideias, sugestões, problemas, dúvidas, indicadores e trilhas a seguir; e quanto mais confiam em nós e nos vêem como fonte de recursos, mais nos auxiliam.
Por outro lado, a perspectiva assinalada pelo estagiário em seu registro/questionamento parece confirmar que: “No estágio não está em jogo o aprendizado de uma metodologia, de um saber-fazer determinado, mas um saber sobre si, traduzido no processo de autoconhecimento que se abre da vivência interativa, para a percepção de limites e possibilidades” (OSTETTO, 2008, p. 130).
O “saber sobre si” é, também, uma aprendizagem determinante proporcionada pelo estágio, como processo de pesquisa e prática educativa. A cada evento vivido e narrado, cada um se encontra consigo mesmo, revendo o encontro com o outro e com o compromisso profissional frente ao outro. Concordamos que: “A centralidade de todo processo de formação está no questionamento” (ESTEBAN; ZACCUR, 2002, p. 20), um questionamento que se alimenta da formação teórica, que instrumentaliza os alunos-docentes para que observem, questionem e redimensionem o vivenciado.
OLHARES DAQUI PARA ADIANTE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
O ato de refletir é libertador porque instrumentaliza o educador no que ele tem de mais vital: o seu pensar. Educador nenhum é sujeito de sua prática se não tem apropriado a sua reflexão, o seu pensamento.
Madalena Freire Weffort (1995, p. 40).
Nas narrativas apresentadas sobre os movimentos de aproximação, imersão e observação nos campos de estágio curricular, percebe-se que as reflexões dos estudantes-professores em formação são fragmentos de uma perspectiva de análise que precisa ser ampliada. Todavia, mesmo em fragmentos, os registros indicam um caminho de exercício do sensível olhar-pensante, que se traduz em questionamentos sobre as práticas, sobre a organização da Educação Infantil, sobre as crianças, sobre ser professor das infâncias. Ao realizar um percurso de pesquisa desde sua inserção na escola como observador, o ofício docente vai se descortinando como uma aprendizagem contínua e inconclusa. Dessa forma, estagiárias e estagiários colocam-se em uma ancoragem formativa, que é individual e coletiva, que é de si e do outro, que é sobre si e sobre o outro. Apreender esse aspecto da docência na formação inicial sinaliza sua centralidade para o exercício profissional posterior, reafirmando que o movimento dialético prática-teoria-prática é uma direção coerente a seguir.
Pois não existe prática sem teoria; como também, não existe teoria que não tenha nascido de uma prática. Porque o importante é que a reflexão seja um instrumento dinamizador entre prática e teoria. Porém, não basta pensar, refletir, o crucial é fazer com que a reflexão nos conduza à ação transformadora [...] (FREIRE WEFFORT, 1995, p. 41).
Ao longo do estágio, contam duas estagiárias, alguns aspectos do cotidiano e da prática docente que chamaram bastante a atenção e foram motivadores para se dedicarem a explorar mais, a pensar mais sobre as questões observadas. Elas escrevem em seu relatório final:
Os momentos e as proposições que envolviam música capturaram nossa atenção. Por exemplo, no dia em que a professora fez uma roda para explorar instrumentos musicais e as crianças faziam relação com o que já conheciam, como o violão e o pandeiro. Em nossos estudos no Curso de Pedagogia, discutimos a importância de acolher e valorizar as experiências e conhecimentos que as crianças trazem de outros lugares, da sua vida familiar e comunitária, respeitando os contextos, buscando compreendê-los e, se possível, ampliá-los. Acompanhando esta turma de crianças de 4 e 5 anos, ficou evidente o papel do professor como interlocutor, como alguém que vai mediar e articular tais conhecimentos, que escuta, acolhe e busca cada vez mais sentidos ao que está sendo compartilhado pelas crianças (Inara e Ítala, estagiárias). (UFF, 2018).
No interesse pelo tema da música na infância, advindo de sua inserção efetiva em um grupo de crianças na Educação Infantil, as estagiárias pesquisaram fontes bibliográficas que discutiam a questão e puderam traçar outros significados, permeados por questionamentos e novas sínteses. Estudaram os benefícios da música para o desenvolvimento integral das crianças, problematizaram os repertórios que tradicionalmente fazem parte das propostas encaminhadas, aprofundaram o papel do professor na mediação cultural e discutiram que a formação artística dos professores de Educação Infantil não é muito focalizada no curso. Do diálogo com diferentes autores pesquisados e citados no relatório (e não seria o caso de aqui fazer referência), as estudantes-professoras em formação sintetizam que as propostas que envolvem música potencializam as dimensões socioafetivas; à medida que possibilitam interações positivas, possibilitam espaço para que a crianças se conheçam melhor e se comuniquem com os outros. Em suas palavras:
Um aspecto apresentado pelos autores e nitidamente percebido no estágio, é que a música possibilita o desenvolvimento socioafetivo, na medida em que facilita as interações entre todos os componentes do grupo. Enquanto cantam juntos, tocam e trocam instrumentos musicais, vão estabelecendo a construção de conhecimentos sobre música (ritmo, harmonia, melodia) e construindo atitudes de atenção, percepção de si e do outro: concentração, capacidade de ouvir, percepção de seu corpo no espaço (Inara e Ítala, estagiárias). (UFF, 2018).
Como disse o poeta, “o seu olhar melhora o meu” (ANTUNES, 1997, p. 65). No caso das situações de estágio docente, os olhares sobre ao cotidiano educativo oferecem aos estudantes-professores em formação outras chaves para capturar e compreender a prática pedagógica da instituição em que estagiaram. De tal forma, o estágio pode se constituir em território privilegiado de fundar um “olhar melhorado”, atentamente tecido e articulado no encontro com os outros; um olhar que conduz à tomada de consciência das questões visualizadas, problematizadas e aprofundadas na forma de estudo e de pesquisa.
As vozes de algumas estagiárias e um estagiário, marcadas nos trabalhos finais do componente curricular estágio, reafirmam a validade e a importância de tal perspectiva formativa.
Acompanhar um grupo de crianças, participando de seu cotidiano, nos proporcionou conhecê-las e, para isso, foi importante ter um roteiro para olhar, fazer anotações no caderno de campo e, depois, analisar. Uma das aprendizagens no processo de estágio: o olhar atento, a escuta sensível, é efetivamente essencial para a boa prática pedagógica; só assim o professor poderá respeitar a individualidade e a subjetividade de cada criança para, então, organizar e viver uma rotina que respeite os diversos ritmos infantis (Estela e Vicente, estagiária e estagiário). (UFF, 2016).
Ter oportunidade de observar e participar do cotidiano de instituições educacionais é muito importante para a nossa formação profissional pois, mesmo que já estejamos dentro da escola (como estágio não obrigatório), o estágio curricular nos proporciona outras experiências edificadoras. Estagiar na Educação Infantil foi uma vivência rica, provocou reflexões, tanto sobre a prática pedagógica quanto sobre as crianças. Trabalhar com crianças não é fácil, requer aprender a ter um olhar atento para os sinais que elas apresentam a todo tempo, pois só assim podemos construir relações de aprendizagem com respeito (Renata e Biange, estagiárias). (UFF, 2017).
Tivemos dias de ricos de aprendizados, com as professoras e, sobretudo, com as crianças, que a cada dia desenvolviam um pouco mais suas potencialidades, descobriam e construíam, junto com suas professoras, espaços de aprendizagem. Na experiência do estágio, na relação entre a unidade de educação infantil e as aulas na UFF, os conteúdos apresentados ampliaram nossos conhecimentos e ajustaram nosso olhar, ajustaram o foco para o trabalho que, como futuras educadoras, poderemos desenvolver, tendo a criança como centro de nosso planejamento e de nossa atuação (Branca e Cristina, estagiárias). (UFF, 2017).
Alinhavando a finalização da conversa tecida ao longo do nosso texto, ressaltamos o papel do estágio curricular docente como um momento pontual de todo o processo formativo que nunca tem fim. Um momento que se configura como um tempo, específico e especial, para o exercício do olhar desse estudante-professor em formação, que pode se envolver, participar e transitar pelo espaço educativo de forma cuidadosa, mas não ainda como o principal responsável pela organização de tempos, de espaços e de propostas com/para a criança.
Reiteramos, enfim, que o estágio ultrapassa a concepção tradicional de planejamento de uma aula, de aplicação de um plano de ensino, de execução de tarefas como exigências acadêmicas, ou treinamento de técnicas e de habilidades didáticas. Nem tampouco é a hora e a vez da prática, mas, ao contrário, é a hora oportuna e essencial de reafirmar a coesão entre teoria e prática, componentes indissociáveis do fazer pedagógico. Como assinala Pimenta (2006, p. 92), “[...] a atividade teórica é que possibilita de modo indissociável o conhecimento da realidade e o estabelecimento de finalidades para sua transformação. Mas para produzir tal transformação não é suficiente a atividade teórica; é preciso atuar praticamente”.
O estágio, pelo que vimos traçando, afirma-se como espaço precioso de encontros formativos, que se dão pelo entrecruzamento de olhares, saberes e fazeres – das estagiárias, das crianças, das professoras que recebem as estagiárias em suas salas e grupo –, e fertilizam aprendizagens significativas sobre a prática docente, tal como assinalado pelas estudantes-estagiárias:
O estágio se articulou com as teorias que estudamos. No estágio, pensamos e refletimos sobre a prática. Estagiar permitiu-nos conhecer formas de organização da Educação Infantil, seus espaços e rotinas; por exemplo, pudemos ver de perto que a sala de referência tem que ser pensada para que as crianças tenham autonomia e que possibilite a interação com todos. Acompanhar o trabalho de uma professora ajudou nosso entendimento de que a criança é o centro do planejamento (Cibele e Daiana, estagiárias). (UFF, 2017).
O olhar atento às necessidades de cada criança, observando suas formas de ser e estar, de brincar e interagir no ambiente, e também a interpretação desse nosso olhar, foi um exercício realizado ao longo do estágio e que consideramos fundamental. Perceber as individualidades e a demanda da turma a partir da observação das brincadeiras e das interações realizadas por elas é um grande aprendizado – no estágio e na prática docente (Inara e Ítala, estagiárias). (UFF, 2018).
Apurar o olhar sobre o/no cotidiano da Educação Infantil, nos espaços-tempos do estágio, é um desafio ao qual convidamos nossos alunos-futuros docentes a enfrentarem em seu processo formativo. Como professoras-orientadoras de estágio, observar e acompanhar esse processo, fazendo-nos interlocutoras, desafiando olhares e buscas, ouvindo sobre seus achados – dores, sobressaltos, espantos, tristezas, desconfortos, alegrias, descobertas, aprendizagens –, reafirma a importância de tecermos percursos em diálogo e parceria: entre a prática e a teoria, entre a escola e a universidade, entre o todo e o particular, entre a razão e a sensibilidade, entre o eu e o outro.
Seguimos pelas veredas do estágio docente como quem sabe que não há uma prescrição para esse intento, mas que há formas e possibilidades que se revelam efetivas na formação de futuros professores sensíveis, responsáveis, comprometidos e atentos com as crianças, suas subjetividades e sua inserção no mundo. Um caminho é assumir conjuntamente o desafio de reaprender a olhar e a dar significado ao que olhamos, pois, como dissera Freire Weffort (1995, p. 8): “Reaprender a olhar – romper com visões cegas, esvaziadas de significados – onde a busca de interpretar, dar significado ao que vemos, lemos da realidade é o principal desafio”.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Resolução CNE/CP No 2, de 1 de julho de 2015. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 124, p. 8-12, 2 jul. 2015.
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Notas