Wed, 16 Oct 2019 in Praxis educativa
Horizontes juvenis da luta por transporte: o Movimento Tarifa Zero emBelo Horizonte
Resumo:
Este artigo tem como objetivo apresentar os resultados de uma pesquisa sobre ocontexto de surgimento do Movimento Tarifa Zero na cidade de Belo Horizonte,Minas Gerais, e os sentidos conferidos pelos jovens participantes à açãopolítica protagonizada por eles. O artigo situa o período de mobilizações nacidade que antecederam o movimento, sua configuração e suas principaiscaracterísticas, bem como os limites e os alcances de sua ação política. Apesquisa baseou-se na copesquisa militante, perspectivateórico-metodológica que parte da premissa de uma investigação engajada, de modoa questionar a existência de neutralidade na produção do conhecimento e a rígidaseparação entre pesquisador e pesquisados. Os dados foram colhidos por meio daobservação participante, de entrevistas, análise de documentos e acompanhamentodo movimento nas suas redes sociais. Os resultados da pesquisa indicaram umaconfiguração decrescente das expectativas a partir dos desafios e dosconstrangimentos à ação enfrentados pelos jovens ativistas.
Main Text
Introdução
Um panorama das ações coletivas protagonizadas por jovens nas duas primeiras décadasdo século XXI, seja no âmbito global ou local, revelam uma diversidade de atores euma pluralidade de pautas, formas de organização e espaços de atuação que nosdesafia a compreensão. Produzidas como respostas às mutações e às incertezas dassociedades contemporâneas, as mobilizações juvenis atuais podem fornecer-nos algumaschaves de análise que permitam compreender as contradições e os conflitos queemergem desses contextos do capitalismo globalizado. Os movimentos sociais e asações coletivas juvenis podem ser vistos como grandes faróis que nos indicampossíveis direções do curso das transformações sociais contemporâneas.
Nesse sentido, este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa sobre oMovimento Tarifa Zero (TZ) de Belo Horizonte, surgido em meio aos grandes protestosdo ano de 2013, que colocou na agenda pública da cidade a luta pelo direito socialao transporte (MOREIRA, 2017). O objetivodeste trabalho é apresentar o contexto de surgimento do movimento Tarifa Zero nacidade de Belo Horizonte e os sentidos da ação política protagonizada pelos jovensparticipantes do movimento. O artigo situa o período de mobilizações na cidade queantecederam ao movimento, sua configuração e suas principais características, bemcomo os limites e os alcances de sua ação política. O estudo buscou conhecer ossujeitos que participavam dessa ação, as suas expectativas políticas. Como pano defundo, buscava-se compreender a relação entre a ação empreendida e as transformaçõespolíticas e sociais pelas quais passou a sociedade brasileira nas últimas décadas.Quais eram os significados da luta pelo direito social ao transporte? O que essaexperiência de luta nos informa sobre os obstáculos e os desafios da democracia noBrasil? Quais horizontes de futuro podem ser percebidos a partir da ação domovimento?
Este artigo está organizado da seguinte forma: inicialmente, é apresentado o contextodas mobilizações juvenis em Belo Horizonte que antecederam a emergência do MovimentoTZ, com destaque para o caráter dissidente de lutas antagônicas relacionadas aodireito à cidade, especialmente com as manifestações de Junho de 2013; em seguida, oartigo aborda a trajetória do Movimento TZ em Belo Horizonte, sua configuração esuas principais características. Por fim, o texto traz os resultados da pesquisa,destacando os alcances e os limites da experiência investigada.
Aspectos metodológicos
A pesquisa foi desenvolvida tendo como escolha metodológica a copesquisamilitante (CAVA, 2013; ROGGERO, 2013). Tal perspectivateórico-metodológica parte da premissa de uma investigação engajada, de modo aquestionar a existência de neutralidade na produção do conhecimento e a rígidaseparação entre pesquisador (saber que interpreta) e pesquisados (sujeitos da ação).Ao propor a inversão epistemológica que separa o ato de investigar do objetoinvestigado, a copesquisa aponta para a dissolução das relações rígidas entre oobservador e o observado. Não se trata, então, de recolocar uma relação hierárquicaem outros termos, como substituir o domínio da ciência sobre objeto pela submissãoda ciência ao saber que emana do objeto.
O postulado da pesquisa engajada avança na direção de propor um amálgama complexo queiguale as posições entre pesquisador e pesquisado, permitindo a construção conjuntado conhecimento e ampliando suas possibilidades interpretativas. Desse modo, acopesquisa parte da cooperação social como condição para a produção do conhecimentode determinada luta ou movimento, enquanto garante espaço para as intençõessingulares dos sujeitos, especialmente as intenções investigativas e interpretativasque, ao fim, retornem para enriquecer a construção coletiva das lutas e dosmovimentos. Tal perspectiva teórico-metodológica ensejou uma aproximação entrepesquisador e os sujeitos da investigação, que permitiu compreender e perceber osdilemas, os obstáculos, os riscos e as potências da ação política dos jovensparticipantes do movimento.
De junho de 2013 a maio de 2014, foram acompanhadas reuniões, assembleias, ocupações,pequenas e grandes manifestações, articulações, aulas públicas, coleta deassinaturas, debates e atividades na universidade em Belo Horizonte. Essasatividades estavam ligadas a ativistas que se mobilizaram em torno da problemáticaurbana e do poder municipal, que se ampliou após os protestos de junho de 2013,constituindo uma rede de movimentos e de coletivos contestatórios (SHERER-WARREN, 2006). Esse foi um períodoimportante de aproximação e de apropriação teórica e prática sobre essa rede que seestruturava. Posteriormente, a partir da consolidação do Movimento TZ como uma açãocoletiva na cidade, os pesquisadores passaram a acompanhar e a participarintensamente de suas atividades de agosto de 2014 a fevereiro de 2016.
Além da imersão no campo de pesquisa, foram realizadas onze entrevistas comintegrantes do movimento com o objetivo de sistematizar impressões sobre algunsaspectos da trajetória dos participantes. Essas entrevistas abordaram as percepçõese os sentidos sobre o engajamento no Movimento TZ, os aprendizados advindos daparticipação, as expectativas que emergem da atividade ativista, dentre outrasquestões. Para a realização das entrevistas, foram selecionadas pessoas quecompunham o “núcleo orgânico” do movimento, ou seja, aqueles que participavam damaioria das reuniões, das ações e das formulações coletivas. Esse núcleo orgânicotambém sofria com algumas variações em sua composição e na qualidade e naintensidade da participação, mas era possível perceber alguns que acompanharam osprincipais momentos do Movimento TZ. Além disso, procurou-se considerar a paridadede gênero e a variação etária.
Outra fonte importante de pesquisa foram as redes sociais e as mídias onde oMovimento TZ estava inserido. A lista de e-mails, página deFacebook, os grupos no aplicativo de celularWhatsApp, os vídeos postados nos canais de hospedagem devídeos, especialmente o YouTube, os sites de fotose as imagens, os diversos blogs e sites variadosonde figurava o movimento, dentre outros, expressaram a sua existência virtual, bemcomo podem ser entendidos como o repositório memorial da movimentação. Essasferramentas foram fundamentais para a existência e o desenvolvimento do Movimento TZe serviram para mobilização, organização, troca de informações, formação de opinião,debates, relatos, produção e divulgação de conteúdos relacionados à própriamovimentação e à cidade (textos, fotos, flyers e vídeos). Do pontode vista metodológico, o mergulho nas redes e nas plataformas onde o Movimento TZestava inserido foi fundamental como fonte de informações e de percepções sobre omovimento, produzindo um material empírico significativo da pesquisa.
Breves apontamentos sobre a produção que trata do engajamento dos jovensbrasileiros
Podemos situar, na década de 1960, os primeiros estudos sobre a participação políticados jovens brasileiros, com as produções de Otávio Ianni, O jovem radical, de 1968, e de MarialiceForacchi, em dois de seus principais estudos: o estudante e a transformaçãoda sociedade brasileira, de 1965, e A juventude na sociedademoderna, de 1972. Mais especificamente, essa última autora dedicou-se àanálise da categoria juventude, das relações geracionais e dos movimentos juvenil apartir do contexto das transformações sociais e das mobilizações estudantis dos anosde 1960 no Brasil. Esses estudos pioneiros, no entanto, não tiveram continuidade nosanos seguintes, talvez pela morte prematura da pesquisadora. A despeito da intensamovimentação social e política no período de redemocratização brasileira, o tema“jovens e participação política” não foi objeto de interesse acadêmico até 1985,quando aparecem trabalhos sobre a participação política de secundaristas euniversitários durante o período da ditadura civil-militar (CARRANO, 2002).
A dificuldade para encontrar estudos sobre o engajamento juvenil em movimentos elutas sociais no período da transição democrática pode ser explicada pela ausênciade um campo de estudos consolidado sobre os jovens brasileiros (SPOSITO, 2002). Certamente, eles estavampresentes nas lutas sociais do período, mas as suas especificidades diluíam-sefrente a outros atores - moradores de periferia, mulheres, negros etrabalhadores.
Somente a partir da segunda metade dos anos de 1980 e da virada para a década de1990, apareceram os estudos que relacionam participação juvenil e culturas urbanas.Esses trabalhos mostram um alargamento da experiência dos jovens em ações coletivas,com destaque para a relação entre a esfera cultural e as novas formas de ocupaçãopolítica das cidades. O acento da análise estava no reconhecimento da esferacultural como elemento importante para os processos de sociabilidade juvenis, para aaglutinação de interesses comuns e de práticas coletivas (ABRAMO, 1994; CAIAFA,1989; SPOSITO, 1993; VIANNA, 1988). Eram os jovens aparecendo nacena pública para além dos lugares comuns do movimento estudantil, da escola e dauniversidade e que, consequentemente, passavam a ser percebidos como algo queultrapassava a figura do jovem estudante.
Esses estudos abordavam uma parcela das juventudes que trazia para o espaço públicodas cidades brasileiras seus corpos e suas roupas marcados por novos estilos devida, novas linguagens, novos comportamentos e vozes dissonantes, como, por exemplo,os grupos de jovens punks (ABRAMO,1994). Podemos dizer que a presença dos coletivos juvenis na cena urbanados anos de 1980, em geral jovens das camadas populares, permitia compreender atensão entre as esperanças políticas vividas naquele contexto e os efeitos da duracrise econômica na vida cotidiana.
Na década de 1990, a participação das juventudes brasileiras é atravessada pelodiscurso do protagonismo juvenil, que passa a delinear a prática e a formulação depolíticas públicas para a juventude e projetos sociais desenvolvidos pelo terceirosetor (SOUZA, 2006). Ao lado disso, nocontexto das políticas de ajustes neoliberais implantadas nesse período, ocomportamento político dos jovens, nos anos de 1990, é marcado pelo que Sousa (1999) nomeia de “pensamento desiludido”.Por meio de depoimentos de jovens nos diversos espaços de participação pesquisados,a autora percebe elementos que se sobrepõem: de um lado, a disposição para oengajamento conectada a uma ideia de utilidade (ser útil, fazer alguma coisa), ocaráter educativo (conscientização das pessoas) e o imediatismo (fazer o que épossível); de outro, os obstáculos percebidos e sentidos como a apatia e adespolitização geral da sociedade (falta de cidadania do brasileiro). Esta foi umaabordagem que dominou alguns estudos sobre a relação entre jovens e participação nocontexto escolar.(LEÃO; SANTOS, 2018).
O contexto: mobilizações contestatórias e ações em Belo Horizonte
Podemos dizer que as análises sobre o engajamento juvenil, no Brasil, oscilaram davisibilidade das lutas estudantis dos anos de 1960 à ação de coletivos juvenis nasgrandes cidades dos anos de 1980 e 1990, muitas vezes invisíveis para o poderpúblico e vistos como ameaças pelo imaginário social, passando pela perspectiva deuma participação regulada muito presente em projetos sociais e propostas educativasa partir do paradigma do protagonismo juvenil. Nos anos de 2000, mudanças no cenáriopolítico e social irão expor tensões e conflitos sociais, em que os jovens serãoatores centrais.
Após a década que terminara em crise e desesperança, a chegada de um ex-operário àpresidência da República, em 2003, significou um alento às expectativas sociais portransformações nesse âmbito mais profundas. Os dois primeiros Governos Lula(2003-2010) e o primeiro Governo Dilma (2011-2014) foram marcados por um conjunto depolíticas econômicas e sociais de cunho reformista, que produziram maior inserçãosocial e desenvolvimento econômico, sem promover reformas estruturais do ponto devista político e tributário. Assim, em que pese avanços como a diminuição da pobrezae a expansão da escolarização, contradições sociais permaneceram e tensões sociaisse agudizaram, especialmente nas grandes metrópoles. Elas eclodiram em váriasmanifestações locais, com características, pautas e formas de organizaçãoinovadoras, em que os jovens foram protagonistas centrais.
Assim como em várias cidades brasileiras, em Belo Horizonte, entre os anos de 2010 e2012, emergiram novas formas de contestação social protagonizadas por jovens (OLIVEIRA, 2012). A cidade, mais do que palcodos experimentos e das criações do dissenso por parte dos jovens ativistas, eraobjeto central da contestação. Os jovens ativistas traziam um dissenso para a cenapública sobre os rumos do desenvolvimento urbano. Dessa maneira, os ativistasurbanos que protagonizavam as lutas nas cidades, ainda que não formulassemnitidamente um confronto político com determinado governo, expressavam, de algumaforma, uma fissura naquele projeto em voga pós 2003. Eram vozes dissonantes queemitiam sinais de alerta sobre as contradições do crescimento e modelo econômicocelebrado como exitoso até então.
Esses sinais de alerta indicavam problemas e questionamentos na relação entre ocrescimento e o desenvolvimento econômico, por um lado; e a questão urbana, poroutro. Eram as cidades infernais e insuportáveis de se viver, como produto direto dodesenvolvimento do capitalismo brasileiro, que estavam no centro de contestação dosativistas urbanos. Conforme aponta Maricato(2013):
Segundo a autora, o aprofundamento do processo da “cidade mercadoria”, na primeiradécada do século XXI, significou o oposto da reivindicação histórica de produção decidades justas, humanizadas, igualitárias e aprazíveis para viver-se.
É preciso destacar, então, que uma geração de ativistas urbanos se forjou em umcontexto de complexas e aceleradas mudanças sociais, cujo horizonte de expectativasna sociedade oscilou ambiguamente entre a esperança e a desilusão. Estamos, então, atratar de uma geração ativista forjada no período de emergência das lutas urbanas daprimeira década do século XXI no Brasil, na vivência de suas contradições sociais epolíticas. É aqui que estão localizadas as primeiras experiências que irãocontribuir para a configuração do Movimento TZ BH.
Transporte como direito social: origens da proposta de TZ
Podemos remeter a proposta de implantação do transporte público universal e gratuitoà gestão de Lúcio Gregori na Secretaria Municipal de Transportes do Governo LuízaErundina pelo Partido dos Trabalhadores - PT (1989 - 1993) na cidade de São Pauloque ficou conhecida como “tarifa zero”. A ideia era garantir o direito ao transportepara um população que, em 1986, gastava cerca de um quinto do seu salário com esseserviço.1 A proposta seria financiada com acriação de um Fundo de Transporte mantido por uma parte do orçamento municipal,principalmente por meio dos recursos do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU),que sofreria reajustes de acordo com as distintas faixas de renda.
A proposta gerou, na época, um grande debate na cidade de São Paulo, havendo umapolarização entre população mais carente, que apoiava a proposta, e setores dasclasses média e alta, que se opunham ao aumento de impostos municipais para o seufinanciamento. Os grupos contrários à proposta construíram uma narrativa queprocurava, via veículos de comunicação, influir decisivamente no debate público emdesfavor da proposta. Esta foi formulada como um projeto de lei e rejeitada pelaCâmara Municipal de São Paulo. Sem continuidade na gestão seguinte, a ideia deimplementação da gratuidade universal dos transportes saiu de cena nos anos de 1990,salvo algumas iniciativas pontuais e localizadas, por parte de gestões municipaistambém consideradas progressistas. Apesar disso, continuou no horizonte de lutas dosmovimentos ligados ao transporte público.
Em meados da década dos anos de 2000, a proposta da TZ passa a ganhar um novo impulsoa partir do surgimento do Movimento Passe Livre (MPL). Este foi criado em 2005 no VFórum Social Mundial, em um encontro nacional pelo passe livre, no dia 28 dejaneiro, em Porto Alegre.2
Com a explosão dos grandes protestos em junho de 2013, a proposta da TZ extrapola oscírculos de atuação dos jovens ativistas urbanos e dos militantes, intelectuais egrupos envolvidos com a questão urbana e ganha outro patamar de visibilidade:acumula projeção reivindicativa nas ruas em uma das maiores revoltas urbanaspopulares da história brasileira.
Junho de 2013: antecedentes do Movimento TZ BH
Como analisado anteriormente, a primeira década do século XXI, no Brasil, foi marcadapor um ciclo de reformas econômicas e sociais com impactos positivos, acompanhadasde políticas públicas que produziram mudanças concretas nas condições de vida degrande parte da população brasileira. Esse processo não se deu sem contradições, e aeuforia nacional via-se confrontada por vozes dissonantes da contestação social queemergiam de alguns movimentos sociais. O aumento do número de greves no ano de 2012e os ventos turbulentos de movimentos de contestação que ocorreram em várias cidadesdo mundo a partir de 2011 (HARVEY; SADER; TELES,2012; BAVA, 2011) indicavam frestasque poderiam se transformar em grandes rachaduras. Por outro lado, gruposconservadores e setores da elite e da classe média brasileira estavam insatisfeitoscom as reformas sociais promovidas a partir de 2003.
Os acontecimentos de junho de 2013 podem ser entendidos como expressão dessas tensõesem ebulição na sociedade brasileira e um fator significativo para que mudançasocorressem. Até aquele mês, mesmo que com os sinais de possíveis mudanças, o pactolulista gozava de legitimidade, sendo possível ao Governo Federal administrar ascondições de sua governabilidade.3 A aceleraçãodas transformações conjunturais a partir daí foram significativas. Em março de 2013,o Governo Dilma apresentava um recorde de popularidade, com 79% de aprovação popularsegundo algumas pesquisas,4 o que nos obriga apensar sobre a velocidade dos acontecimentos que alteraram drasticamente o climapolítico nacional a partir de então.
A onda de protestos em junho de 2013 tem relação direta com as mobilizações em tornodos aumentos das tarifas de transporte em várias cidades brasileiras. Já, em janeirodaquele ano, houve manifestações na região metropolitana de São Paulo, queconquistaram a revogação do aumento da tarifa no município de Taboão da Serra - SP.Em abril, uma mobilização iniciou-se em Porto Alegre pelo mesmo motivo.
Entretanto, os protestos cresceram e assumiram grandes proporções após o dia 13 dejunho de 2013, quando uma manifestação do Movimento Passe Livre (MPL) de São Paulofoi duramente reprimida pela Polícia Militar. Foram detidas 240 pessoas, muitasferidas, dentre eles uma fotógrafa do jornal Folha de São Paulo, que foi alvejada noolho por um tiro de bala de borracha. A partir daí, os protestos massivosespalharam-se pelo Brasil. Estima-se entre 10 e 15 milhões de manifestantes em cercade 500 cidades (ARANTES, 2014), e em 100 milpessoas reunidas em um ato público no dia 17 de junho em São Paulo (NAKAMURA, 2013). Marcados por uma polifonia devozes, pela heterogeneidade de atores e pela pluralidade de demandas, os protestosensejaram muitas interpretações que fogem ao alcance deste artigo.5 Cabe aqui apenas registrar a relação entreesses eventos e a emergência em Belo Horizonte do Movimento TZ. O fato é que osprotestos de junho de 2013, pela própria grandeza dos acontecimentos, transbordam adimensão temporal de sua duração e são necessários para sustentar as análises defatos políticos e sociais subsequentes.
Do ponto de vista da análise dos movimentos sociais e das ações coletivascontemporâneas no Brasil, paradoxalmente, os acontecimentos durante e após osgrandes protestos de junho de 2013 produziram um cenário fértil e rico parapesquisas e estudos, ao mesmo tempo que criaram uma série de camadas mais complexaspara o entendimento dos sentidos das lutas sociais. Os grandes protestos criaram ascondições para que as insatisfações represadas se expressassem, aqui e acolá, emespaços sociais mais amplos e diversos. Um cenário em que os contemporâneosexperimentos contestatórios parecem ter entrado em uma espiral complexa, frente a umregime temporal de repentina e intensa aceleração.
Em outras palavras, do ponto de vista da trajetória dos movimentos e coletivosprotagonizados por jovens ativistas urbanos, os protestos de junho de 2013 podem serentendidos como uma espécie de ápice, um momento de ascensão tão esperado, umimpulso sem precedentes, ao mesmo tempo que produziram desgastes que aguçaram osenso crítico e reflexivo dos próprios movimentos, coletivos e ativistas sobre seuslimites, suas possibilidades e os caminhos a serem trilhados (NASCIMENTO, 2017).
As interpretações sobre os grandes protestos referidas anteriormente possuem, cadaqual a seu modo, plausibilidade à luz de acontecimentos posteriores. Elas nospermitem relacionar os grandes protestos ao surgimento de uma nova direita e aoposterior processo de impeachment da Presidenta Dilma (SOUZA, 2016), como também podem ser vistas comoum legado de luta, de organização e de resistência, relacionado à contestação socialque se seguiu, como o movimento dos estudantes secundaristas em anos posteriores(ORTELLADO, 2016).
Independentemente do olhar que se tenha sobre as Jornadas de Junho, não há dúvidas deque as manifestações expressaram contradições e tensões em estado de ebulição nocontexto social brasileiro que, aliado à ação de uma “nova” direita no país,contribuíram para desgastar a popularidade do Governo Federal nos anosseguintes.
Junho de 2013: a proposta de TZ entra no debate público na cidade de BeloHorizonte
Escapa aos objetivos deste artigo abordar a história anterior aos movimentos de junhode 2013 em Belo Horizonte. Há uma vasta produção acadêmica sobre os recentesmovimentos sociais, coletivos culturais, ocupações e protestos na capital mineirasobre as configurações e os alcances de uma rede ativista na cidade.6
As conexões entre as ações coletivas e os movimentos sociais tornaram-se mais amplas,diversas e complexas na medida em que as lutas em torno da questão urbana foramganhando mais visibilidade, força e capacidade de mobilização na primeira década dosanos 2000. Movimentos de luta por moradia e reforma urbana, coletivos e iniciativasde ocupação dos espaços públicos na cidade, coletivos culturais, grupos de ativistasanarquistas, juventudes militantes dos partidos e correntes de esquerda e umamúltipla gama de ativistas independentes, que trafegam por iniciativascontestatórias variadas, compuseram um amálgama que sustentou pautas e conteúdosreivindicatórios durante os protestos de junho de 2013, bem como iniciativas e açõesno período posterior a eles.
Antes dos protestos de junho de 2013, a proposta da TZ aparecia de forma incipiente efragmentária em Belo Horizonte. Contudo, é a partir das mobilizações que tomaramconta de várias cidades brasileiras naquele momento que a pauta do transportepúblico gratuito emerge no debate público na cidade. A questão ganhou alguma entradaem Belo Horizonte em 2012, principalmente pela intervenção do coletivo editorialPISEAGRAMA,7 cuja campanha não-eleitoralpor mudanças da cidade durante as eleições daquele ano teve, como uma das propostas,a gratuidade universal nos transportes. Em uma de suas ações, esse coletivo afixoucartazes em locais públicos e divulgou mensagens em redes sociaishashtags com propostas para a cidade, dentre elas a mensagem#Ônibus Sem Catraca.8 Pode-se registrar,também, a atuação do Núcleo Isegoria do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL),durante os protestos contra o aumento da passagem em 2011 e 2012.
Assim como em diversas cidades, essa rede ativista constituiu, no bojo dasmanifestações de 2013, a Assembleia Popular Horizontal (APH) de Belo Horizonte. Assessões da APH aconteceram sob o viaduto Santa Tereza, um espaço que se tornousímbolo da rede ativista em Belo Horizonte. Diversos coletivos culturais, decontestação, performáticos, movimentos sociais, jovens punks,skatistas, pixadores, grafiteiros e integrantes de coletivos dohip-hop se apropriaram daquele lugar como o abrigo daarticulação rebelde e contestatória.
Foram constituídos Grupos de Trabalho que compunham a Assembleia Popular Horizontal eeram responsáveis pela elaboração de demandas e propostas de ação para cada eixotemático. Cada um dos grupos possuía autonomia para se reunir e elaborar suaspropostas. As sessões da APH constituíam-se como o espaço de discussão e deliberaçãodas demandas e das propostas oriundas desses grupos.
Dentre eles, destacamos os Grupos de Trabalho de Reforma Urbana/moradia e Mobilidadeurbana/transporte, que abrigaram uma participação mais expressiva e contaram commaior duração e organicidade, desdobrando-se em lutas e articulações posteriores noâmbito institucional e de ação direta nas ruas. O primeiro encampava os movimentossociais de luta por moradia e ativistas e militantes articulados em torno dabandeira da reforma urbana.
Já o Grupo de Trabalho de Mobilidade Urbana/transportes foi o embrião do movimentoTarifa Zero e trazia para a cena pública não somente a concepção do transporte e damobilidade urbana como um direito social, expressa na exigência por gratuidadeuniversal nos transportes. Suas primeiras ações foram marcadas por um conjunto dequestionamentos e denúncias a respeito da gestão municipal pouco transparente dotransporte público.
Ainda no segundo semestre de 2013, o Grupo de Trabalho de Mobilidade Urbana da APHlança a campanha pela TZ em Belo Horizonte, a partir da coleta de assinaturas para aapresentação de um projeto de lei de iniciativa popular na Câmara de Vereadores dacidade. Tal empreitada realizou-se a partir de um projeto político publicitário queobjetivava dar visibilidade e ampla aceitação da proposta por parte da população. Aestratégia era a de criar imaginário e narrativa na cidade que demonstrassem, demaneira clara, as vantagens da TZ. A partir de então camisetas, cartazes, estêncil eadesivos com a logo da campanha foram espalhados pela cidade e passaram ser aexpressão visual da existência da luta pela gratuidade universal do transporte emBelo Horizonte. Era o início do Movimento TZ BH.
O campo de ações do Movimento TZ em Belo Horizonte
A luta pela tarifa zero no transporte público implica a alteração de dispositivosinstitucionais e estruturas desiguais e injustas que constituem historicamente aformação da sociedade brasileira. Implica, também, a conquista de um novo direitosocial, o direito ao deslocamento e à mobilidade urbana, que necessariamente seexpressa na luta de classes em torno do conflito distributivo, da questão tributáriae da disputa pelos recursos e pelas prioridades de investimentos do Estado. Dessamaneira, a luta pela tarifa zero aponta para a alteração do injusto sistematributário, propondo a progressividade na cobrança de impostos de acordo com arenda, bens, lucros e dividendos ganhos pelos cidadãos. Por outro lado, aponta,ainda, para a disputa de prioridades políticas no interior do Estado, no caso apriorização de investimentos e de incentivos ao desenvolvimento e à modernização dosistema de transporte público em detrimento do transporte individual.
Lúcio Gregori, em uma entrevista no início do ano de 2016, informou que a propostaoriginal de gratuidade elaborada em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, baseadaexclusivamente em impostos municipais, não poderia ser sustentada atualmente.Segundo ele, hoje, uma proposta dessa natureza necessariamente implica criar umaestrutura institucional de investimento e de financiamento público, que envolvetodos os entes da federação: munícipios, governo estadual e federal.9 Assim, a efetivação do direito social aotransporte, já promulgado por Emenda Constitucional, exige um arranjo institucionalsemelhante ao que garante o financiamento e a existência de outros direitos sociais,como ocorre, por exemplo, com a saúde, a assistência social e a educação.10 Talvez, para os transportes e a mobilidadeurbana, algo semelhante ao Sistema Único da Saúde (SUS) ou ao Sistema Único deAssistência Social (SUAS) deveria se efetivar para a devida garantia dessedireito.11
Em meados de 2014, o movimento promoveu um seminário para a construção de umaProposta de Política Nacional de Mobilidade Urbana com o objetivo de incidir nodebate eleitoral das eleições, em nível federal e estadual. O seminário contou com apresença de dois ex-gestores públicos ligados à questão do transporte coletivo. Talproposta afirmava o reconhecimento do transporte como direito social, a criação defundos públicos nos níveis nacional, estadual e municipal para subsídio dos sistemasde transporte e a redução do valor pago pela tarifa por parte dos usuários dotransporte coletivo. Projetou-se a realização de uma campanha para lançamento daproposta da política nacional e de um site dedicado a ela.12
A campanha foi tema de muitas reuniões durante o ano, mas não foi efetivada. O volumede ações em que o movimento estava envolvido, no segundo semestre daquele ano, comoa organização da intervenção no Plano Plurianual de Ação Governamental de BeloHorizonte, se articulava a outras ações pontuais junto aos outros movimentos sociaisda cidade, que teve como consequência a não priorização da campanha naquelemomento.
Havia uma dificuldade em priorizar ou dar continuidade em muitas das ações. Ahipótese que pode ajudar a explicar esse ponto talvez esteja relacionada a umaespécie de ausência de perspectiva estratégica, a partir da qual o movimento pudessetanto se planejar em prazos de tempo mais longos quanto avaliar a execução das açõesque realizava. Nesse sentido, o projeto da gratuidade nos transportes, que foiimpulsionado pelo efervescente contexto dos grandes protestos em 2013, aos poucosiria deixando de ser o foco principal do movimento em Belo Horizonte. Asdificuldades e os desafios em realizar a empreitada de coleta de assinaturas para oprojeto de lei de iniciativa popular pareceram superar a projeção inicialentusiasmada dos jovens ativistas que intencionavam mobilizar a população dacidade.
A experiência concreta, condizente com a realidade da natureza da disputa queenvolvia a luta pela gratuidade universal dos transportes na cidade, foi conduzindoas expectativas iniciais em um curso decrescente. Aos poucos, os jovens ativistasperceberam que a conjuntura explosiva que emergiu em junho de 2013, propiciando aqueda das tarifas em mais de cem cidades brasileiras e alimentando o sonho dagratuidade nos transportes, amainou-se no deserto do real. Desse modo, à medida queo “reservatório de energia rebelde” acumulado durante os grandes protestos de junhode 2013 foi se esgotando, os jovens ativistas passaram a encarar a aridez daconstrução cotidiana da luta social em um contexto delineado por toda sorte deadversidades.
De toda maneira, o repertório de ações do Movimento TZ, em Belo Horizonte, sempreesteve, de alguma forma, conectado à experiência adquirida e à memória dosacontecimentos de 2013. Os protestos nas ruas que continuaram a ocorrer a cadarecorrente reajuste anual das tarifas eram animados pelo desejo, ainda que demaneira não consciente, de repetição da grande revolta ou algo próximo a isso. Porconseguinte, permaneceu no imaginário dos jovens ativistas a ideia da eficácia e daforça dos protestos de rua no embate com o poder municipal e com as empresas deônibus.
Outro aspecto é a conexão da luta nas ruas com a luta no campo institucional. Nofinal do mês de junho de 2013, jovens e coletivos juvenis promoveram uma ocupação daCâmara Municipal de Belo Horizonte, que tinha como uma das exigências centrais aabertura e a realização de uma auditoria nas planilhas de custo das empresas deônibus que atuavam na cidade. Assim, Junho de 2013 produziu também um impulsorenovador da luta institucional a respeito da questão da política de transportes emobilidade urbana. Como consequência desse fato, o Movimento TZ constituiu-se comoum dos principais atores políticos da cidade a pautar esses temas junto ao podermunicipal. No entanto, é importante, igualmente, salientar que, na medida em que apressão das ruas perdeu pujança, a experiência da participação institucional doMovimento TZ passou a ser delineada pela tensão de se submeter aos contornos e aosmodos da institucionalidade e procurar ultrapassá-los. Assim, podemos compreender omovimento a partir da análise de dois momentos, a saber: ação direta nas ruas pormeio de protestos contra o aumento das tarifas e atuação na esfera institucional.Longe de vê-los como campos opostos, cabe considerar esses dois âmbitos de atuaçãodo Movimento TZ como instâncias complementares que, ao mesmo tempo, serivalizam.
Nas ruas contra o aumento da tarifa: desafios e obstáculos
Os protestos de rua contra os recorrentes aumentos de tarifa eram os momentos degrande efervescência que alteravam o cotidiano do movimento. As reuniões semanais docoletivo, que normalmente abrigavam em média cerca de 8 a 15 ativistas, passaram acontar com mais presenças. A juventude dos partidos de esquerda, coletivos domovimento estudantil, militantes, ativistas de outros movimentos sociais,participantes ocasionais do Movimento TZ e outros interessados passaram a comporessa frente de lutas que dava visibilidade a uma rede ativista na cidade.
As tarefas de organização e de preparação de cada evento contra o aumento no valordas passagens - segurança, mobilização, confecção de faixas, panfletos e cartazes econtato com a imprensa etc. - eram divididas entre os participantes da frente delutas. O Movimento TZ era reconhecido como protagonista das convocações para os atose, assim, era visto pela imprensa. As notícias dos jornais geralmente mencionavamdiretamente o nome do movimento, tanto nos dias anteriores aos protestos como após asua realização.
Na medida em que havia a previsão de reajuste da tarifa, sempre no dia 29 do mês dedezembro de cada ano, alguns desses atos de rua tiveram um caráter preventivo aosaumentos. De maneira geral, o objetivo dos atos de rua era o de paralisar a cidade.Para além do seu objetivo imediato expresso no slogan semprerepetido nos atos “se a tarifa aumentar a cidade vai parar”, esses atos deparalisação do fluxo da cidade trazia um sentido de contestação mais geral da ordemsocial voltada à produção capitalista. Reduzir a velocidade dos fluxos de produçãona cidade por meio de protestos, de ocupações e de intervenções era uma forma deluta anticapitalista, uma vez que atingia os núcleos da produção.
Havia debates e discussões sobre se a melhor tática não seria realizar trancamentos etravamentos das vias de Belo Horizonte no período da manhã, quando os trabalhadoresestariam se dirigindo ao trabalho, com o objetivo de causar obstáculos para adinâmica da produção da cidade. Nessa mesma linha de argumentação, era avaliadopelos participantes do movimento que os trancamentos de rua no período em que ostrabalhadores retornavam do trabalho para casa causava prejuízos para os própriostrabalhadores, retirando-lhes o tempo de descanso e dificultando a adesão dapopulação em geral. Essas propostas de travamentos de vias pela manhã não seconcretizaram, devido ao número insuficiente de pessoas mobilizadas pararealizá-las. Como grande parte das manifestações ocorreram no mês de dezembro ejaneiro, período de férias escolares, havia certa dificuldade em mobilizar osestudantes secundaristas e universitários que, em grande parte, participavam doseventos.
A ideia de realizar atos que minimizassem o transtorno dos trabalhadores no retornodo trabalho para casa, ao mesmo tempo que produzissem um efeito na cidade, encontrououtras formas de materializar-se. Isso se deu na opção por executar os trajetos dealguns atos nas regiões e nos bairros habitados pelas classes mais abastadas dacidade, com o objetivo de atenuar o efeito para o conjunto da população e parar asvias onde circulava a elite da cidade. Em muitos dessas ocasiões, podemos perceberaspectos que traduzem algumas formas de ser das movimentações contemporâneasprotagonizadas por jovens, como a ação direta nas ruas sob a forma da carnavalizaçãodo protesto (CHRISPINIANO, 2002; FREIRE FILHO, 2007; ORTELLADO; RYOKI, 2004). Buscava-se dar visibilidade, demaneira irônica e debochada, aos oponentes políticos a serem enfrentados, tanto dopoder público, quanto do setor empresarial ligado aos transportes. Alguns dessesoponentes foram objetos de atos específicos, como protestos diante da residência degestores públicos do transporte, queima de pneus em pontos estratégicos e colagem decartazes denunciando o abuso do preço da tarifa e os nomes dos responsáveis pelasempresas de ônibus que operam na capital mineira. A realização de “catracassos” -pular a catraca sem pagar a tarifa - era outra forma de ação direta utilizada nosatos de rua ou em outros momentos específicos (VELOSO, 2015).
Melucci (1999) chama-nos atenção para o fatode que as movimentações sociais contemporâneas se comportarem como meios decomunicação social. Segundo ele,
Nesse sentido, os atos de rua e demais ações do Movimento TZ podem ser interpretadoscomo formas de comunicação, de informação e de visibilidade para o conjunto dacidade de um conflito social, no caso a problemática em torno do transporte público.Ainda que as pessoas percebam e sintam, em seu cotidiano, o problema da mobilidadeurbana, é o movimento social que expressa e vocaliza a insatisfação na cena públicae produz a conflitualidade com os outros atores envolvidos na questão - Prefeitura,BHTrans e empresas de ônibus.
A partir dessa reflexão de Melucci (1999),poderíamos pensar o Movimento TZ como produtor e divulgador de informações esentidos contra-hegemônicos na cidade. Um meio de comunicação alternativo sobre avida da cidade, conectado ao cotidiano urbano e aos conflitos em torno do transportepúblico urbano, bem como à dinâmica de funcionamento do poder institucionalmunicipal. Contudo, é necessário relativizar justamente a capacidade de comunicaçãodo movimento com o conjunto da sociedade. Essa questão está, assim, diretamenterelacionada à capacidade de mobilização social do movimento.
Um dos grandes desafios dos atos era mobilizar o conjunto da população da cidade. Osatos pouco conseguiam ultrapassar o universo geracional dos jovens ativistas e oscírculos da militância de esquerda e do ativismo urbano. Os esforços de mobilizaçãoda população, em geral eram realizados por meio de panfletagens no centro da cidadee de convocações pelas redes sociais, principalmente pela página no movimento noFacebook TZ - BH que possuía cerca de 21.698 deseguidores.13 No entanto, os esforços decomunicação com a população pouco resultavam em uma maior participação nos atos. Naspanfletagens, percebia-se que, ainda que as pessoas deduzissem que manifestaçõesocorreriam na cidade em função do aumento do valor das passagens, poucas delassabiam sobre o Movimento TZ. Assim, embora potente como meio de criação e dedivulgação de informações e de artefatos ativistas - vídeos, músicas,flyers, “memes”, informações, textos, relatos, debates - ainternet atingia apenas indivíduos que, de alguma forma,gravitam em torno das lutas sociais urbanas e dos círculos das esquerdas em geral.Logo, a baixa capacidade de mobilização estava relacionada ao que podemos chamar debaixo enraizamento social, especialmente com os usuários do transporte público - ossetores mais empobrecidos da população.
Além das dificuldades em mobilizar a população, os atos contra os aumentos da tarifae pela transformação do sistema de transportes na cidade sofriam com a repressão porparte das forças de segurança. Grande parte dos atos, especialmente aqueles quereuniram mais pessoas, foram acompanhados pela Polícia Militar fortemente armada eequipada, o que representava sempre uma ameaça de repressão, uma forma de marcar oslimites do que a própria polícia entende como aceitáveis para o exercício dacontestação nas ruas. A polícia, ao mostrar-se nessa condição, a de um corporepressivo preparado para a guerra, indicava, sempre, a possibilidade, de emqualquer momento, ativar seus recursos contra os manifestantes: bombas de gáslacrimogênio, balas de borracha, cães, helicópteros e força bruta em geral.
A repressão e as violações de direitos sofridas pelo Movimento TZ nas ruas de BeloHorizonte podem ser compreendidas em um contexto mais amplo de repressão e decriminalização dos movimentos e das lutas sociais no Brasil, especialmente após osgrandes protestos de junho de 2013, quando as forças de segurança sofisticaram seusmétodos.14
TZ e institucionalidade: tentativas de uma “política hacker” emmeio aos limites da participação institucional
Ao analisar o conjunto de desafios e problemas a respeito da participaçãoinstitucional em nossa recente democracia, Dagnino(2002) destaca a partilha efetiva do poder como uma das questõescentrais. Segundo a autora, esse é um foco de conflitos sobre concepções distintasacerca do que efetivamente significa a participação institucional. De acordo com apesquisadora, dentre os mecanismos que bloqueiam uma efetiva partilha de poder nosespaços participativos institucionais, está a exigência de qualificação técnica epolítica para o exercício da participação.
A qualificação técnica específica representou um dos polos de ação de maiorinvestimento do movimento com o desenvolvimento e a aquisição de capacidades ehabilidades políticas por parte dos participantes do Movimento TZ. Se nas ruas e notrabalho militante junto à população e aos trabalhadores observavam-se asdificuldades de mobilização do movimento, nos espaços de participação institucionalhavia uma maior desenvoltura.
Os participantes do movimento ocupavam todos os espaços participativos possíveisrelacionados à questão dos transportes e à mobilidade urbana do município. Alémdisso, procuraram estar presentes o máximo possível em todas as audiências públicasna Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa de Minas Gerais relacionadas àtemática.15
O investimento em formação e qualificação técnica para essa participação era alto.Havia uma dedicação e um entusiasmo por parte de muitos participantes, com horasdedicadas ao estudo, à preparação e à discussão. O movimento procurou manejar pordentro das instituições e dos espaços de poder os dispositivos políticos queconstituíam a política de transporte na cidade. Podemos dizer que o Movimento TarifaZero pretendeu abrir a “caixa” dos documentos e das elaborações técnicasrelacionadas à política municipal dos transportes e retirar a “máscara” da supostaneutralidade do conhecimento técnico e científico, revelando os interesses e asprioridades em jogo na disputa. Desse modo, o movimento procurou operar com seusinstrumentos técnicos no interior dos espaços de poder para revelar sua dimensão nãoneutra, mas política.
Um exemplo desse tipo de atuação refere-se à tentativa de propor emendasorçamentárias na revisão das ações do Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG)do munícipio. No ano de 2013, ainda no calor das Jornadas de Junho, as propostas domovimento foram rejeitadas por alegação de não cumprimento dos requisitos técnicospara a sua apresentação. Já na segunda tentativa, no ano posterior, o movimentobuscou conhecer as filigranas técnicas que fizeram com que as propostas fossemrejeitadas, anteriormente, e se preparou de maneira ainda mais intensa para disputaro orçamento municipal. Dessa vez, os interesses econômicos das empresas de ônibus eda lógica política de priorização do transporte individual deixaram mais claros osmotivos da rejeição das propostas. Conforme informa Veloso (2015):
De todo modo, é relevante ressaltar o embate empreendido pelo Movimento TZ nointerior das instituições, marcado pela disputa em torno da concepção de transportepúblico e da mobilidade urbana. Assim, valendo-nos, ainda, do exemplo anterior, naproposta elaborada pelo Movimento TZ para a revisão PPAG de 2014, os participantesestudaram a peça orçamentária em detalhes e transferiram recursos de políticas eprogramas que privilegiavam o transporte individual para o financiamento de suaspropostas, beneficiando o fortalecimento do transporte público e do direito socialao transporte. Em vista disso, o movimento entrou na “caixa orçamentária” e procuroualterar suas coordenadas técnicas em benefício do interesse público mais amplo.
Esse tipo de atuação e participação política, que envolve alto grau de conhecimentostécnicos e científicos, é caracterizado por Castelfranchi (2013) como política hacker ou cidadaniatecnocientífica:
Assim, combinando a política das ruas e a atuação institucional, a experiênciaprocurou interferir nos rumos das políticas públicas para o transporte coletivo,travando uma luta pelo direito social ao transporte. No entanto, o jogo da disputainstitucional pareceu não possuir força suficiente para os avanços e as conquistassociais esperados pelos participantes do movimento.
Considerações finais
Este artigo elegeu alguns aspectos do Movimento Tarifa Zero em Belo Horizonte,buscando situar sua gênese no contexto das movimentações protagonizadasespecialmente por jovens na primeira década deste século. Privilegiamos, também, aanálise das ações na rua, que buscavam mobilizar a população para o enfrentamento daquestão da qualidade do transporte público e do preço das passagens, como a atuaçãoinstitucional na disputa pelo fundo público e pela transparência na gestão dotransporte municipal. Trata-se de uma experiência situada em determinado tempo econtexto, portanto suas conclusões devem ser consideradas como provisórias e comoindicações de possíveis interpretações sobre um objeto em movimento.
Um primeiro aspecto refere-se a uma espécie de configuração decrescente dasexpectativas alimentadas pelo movimento com o passar do tempo. Originado eimpulsionado pela energia rebelde contida nos grandes protestos de 2013, o movimentofomentou o sonho da conquista do transporte universal gratuito, como um direitosocial ao transporte, que se expressava na ideia de “uma vida sem catracas”. Apartir do processo acelerado de mudanças conjunturais após junho de 2013, a ação domovimento parece ter se inclinado para uma dimensão de reação às urgências. Assim, oprojeto de implantar um sistema de tarifa zero com controle social popular nostransportes aos poucos foi se transmutando na permanente luta, sem êxito concreto,contra os anuais reajustes no valor das passagens. A pauta do TZ passou a priorizara luta contra o risco de exclusão do acesso ao transporte para um número cada vezmaior de pessoas.
A investigação indicou uma distância geracional entre os jovens que protagonizam alutas contemporâneas e aqueles militantes mais velhos, o que produzia limites naação política de uma parcela dos jovens ativistas urbanos, como é o caso doMovimento TZ. Elementos como o trabalho de base nos bairros, nos locais de trabalho,nas escolas e nas comunidades, as práticas da educação popular e as ações demobilização nos espaços cotidianos da população, tão caros à história dos movimentospopulares, eram distantes das experiências políticas de uma parcela das novasgerações ativistas. Assim, consideramos importante o desenvolvimento de pesquisasque se dediquem a investigar a transmissão e a conexão de experiências, deconhecimentos e de práticas entre parcelas das novas gerações ativistas e geraçõesmilitantes formadas nas décadas anteriores. Investigações dessa natureza poderiamlançar luzes acerca dos possíveis conflitos geracionais e distintos processos desocialização de militantes nos movimentos sociais contemporâneos.
Outro desdobramento relaciona-se à compreensão dos processos de socialização políticadas novas gerações mediados pelas tecnologias da comunicação e da informação. Oslimites e as potências dos processos de transmissão e de circulação de valores, deideias e de imaginários políticos nos ambientes digitais compõem um campo profícuoamplo e cada vez mais atual para o estudo da militância e dos movimentos sociais nacontemporaneidade.
Outro aspecto que nos chama atenção na atuação do Movimento TZ em Belo Horizonterefere-se ao alto grau de repressão acionado pelo Estado, com elementos que podemser considerados novos nas formas de repressão e de criminalização, um certoaprimoramento da gestão dos conflitos sociais. Estudos e pesquisas que se dediquem aessa temática são igualmente importantes e necessários, podendo contribuir para umamelhor compreensão da relação entre forças de segurança do Estado e ativismourbano.
Quanto à experiência de participação institucional do movimento, percebemos umatensão entre as expectativas de alteração das lógicas institucionais de participaçãoe a reiteração das estruturas de dominação e controle presentes nesses espaços. Asações do movimento buscaram pressionar o poder público para atuar com maiortransparência em relação ao orçamento municipal, à política dos transportes e àsplanilhas de custos das empresas de ônibus, incidindo sobre esses dispositivos.Essas ações representaram um forte investimento em preparação e qualificação técnicapor parte dos jovens ativistas, que alimentavam a expectativa de transmutação doconhecimento técnico em poder decisório e político.
Os obstáculos enfrentados pelo TZ chamam atenção para a necessidade de reflexão sobreo atual momento da democracia e as perspectivas das lutas sociais de maneira geral.A efetivação dos direitos sociais expressos na Constituição Federal de 1988,conquistas do ciclo de lutas e mobilizações populares do período, exige a aberturade um novo ciclo de lutas sociais. No entanto, a morfologia das lutas e dosmovimentos sociais, hoje, parece indicar não mais o “salto progressista para ofuturo”, mas, sim, “[...] a urgência de apagar o incêndio geral que de qualquer modoos dominantes já atearam” (ARANTES, 2014, p.97). O Movimento TZ em Belo Horizonte parece se situar nesse ponto de alteração dasexpectativas para uma ação política voltada a “apagar o incêndio”, minimizar ereduzir os danos sociais. Diferentemente das lutas empreendidas no período daredemocratização brasileira, quando um horizonte de futuro transformador em abertomovia as utopias dos jovens militantes, hoje vivenciamos expectativas de açãovoltadas às urgências do presente. Esse presente não aponta para a janelatransformadora do futuro, mas contém parte dos destroços que esse mesmo futuroencolhido anuncia e que parecem fazer parte da experiência compartilhada pelas novasgerações (ARANTES, 2007).
Os jovens ativistas indicavam a emergência de novos sujeitos, portadores de umasubjetividade antagonista que procurava, em meio aos destroços e aos obstáculos dopresente, fazer desse mesmo antagonismo expressão pública do dissenso. Tais jovens,junto a outros atores, deram visibilidade pública na capital mineira ao debate sobrea questão urbana e do transporte público como direito social. As críticas aos rumosdas transformações urbanas, especificamente sobre a política de transportes queprivilegiava o carro e o transporte individual, trazidas pelos jovens ativistas doMovimento Tarifa Zero, indicavam o desenvolvimento de um engajamento que podemosdefinir como vigilante sobre a cidade e sobre o poder municipal. Essa vigilânciaatenta à política de transportes e às ações da Prefeitura e empresas de ônibusproduziu um conjunto de informações que comunicava e dava visibilidade a umethos do dissenso em Belo Horizonte, além da necessidade de umaoutra vida na urbe calcada no direito social ao acesso a espaços e a equipamento nacidade.
No Movimento TZ conviviam demandas sobre questões estruturais que acompanham ahistória das lutas urbanas no Brasil e novas questões trazidas pela experiênciaurbana das novas gerações: desejo de qualidade de vida na cidade, do livre usufrutodos espaços públicos, da mobilidade urbana digna e adequada e do livre fruir paraconsumo e produção cultural na cidade. O desejo de uma cidade ambientalmentesaudável em todas as dimensões, de uma cidade em que caibam todos e todas e quepermita um viver digno, a luta contra a cidade-empresa, cidade-mercadoria, cidade docontrole e a denúncia das injustiças; enfim, estava no horizonte do que secompreendia como o direito amplo à cidade. Dessarte, os sentidos elaborados pelossujeitos da pesquisa sobre o engajamento no interior do movimento podem serdefinidos como a expressão do desejo de participar dos destinos da urbe, das tomadasde decisão e de influir nas questões públicas, expressos em um desejo deradicalização e de aprofundamento da democracia na cidade.
Um processo educativo sobre a cidade e uma mudança de olhar e de perspectiva sobre atemática urbana, fez do TZ uma rica experiência de aprendizagem para os jovens. Essadimensão da experiência e do aprendizado evidenciou-se em todos os depoimentos dosparticipantes, nos quais podemos identificar dois elementos centrais: o aprendizadosobre a cidade e sobre o transporte público; logo, o alargamento da sensibilidade edo entendimento da problemática urbana, e o aprendizado da participação e do agircoletivo.
A forma de atuação do movimento indicou também um potencial polifônico de criação deartefatos culturais do dissenso no amálgama entre as ruas e as redes sociais com ouso de flyers, fotografias, imagens, vídeos, músicas, cartazes,faixas e “memes”. Os participantes de coletivos culturais trouxeram à tona demaneira poética uma abordagem festiva e contestatória as formas desiguais e diversasde viver na cidade. Múltiplos sentidos, desejos e imaginários urbanos desfilaram pormeio das imagens, dos vídeos, dos textos, das poesias, dos corpos políticos, daspalavras de ordem e das composições musicais produzidas pelos jovens ativistas quecompuseram uma obra aberta sobre a Belo Horizonte contemporânea.
Resumo:
Main Text
Introdução
Aspectos metodológicos
Breves apontamentos sobre a produção que trata do engajamento dos jovensbrasileiros
O contexto: mobilizações contestatórias e ações em Belo Horizonte
Transporte como direito social: origens da proposta de TZ
Junho de 2013: antecedentes do Movimento TZ BH
Junho de 2013: a proposta de TZ entra no debate público na cidade de BeloHorizonte
O campo de ações do Movimento TZ em Belo Horizonte
Nas ruas contra o aumento da tarifa: desafios e obstáculos
TZ e institucionalidade: tentativas de uma “política hacker” emmeio aos limites da participação institucional
Considerações finais