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in Olhar de Professor
A educação infantil em Belo Horizonte no contexto da pandemia de COVID-19
Resumo
A suspensão das atividades escolares em decorrência da pandemia causada pela COVID-19 suscitou várias dúvidas referentes ao calendário escolar de 2020. Este artigo analisa os desafios e as possibilidades colocados no âmbito das instituições integrantes do Sistema Municipal de Ensino de Belo Horizonte no que concerne às determinações legais e às ações que garantam os direitos das crianças e a qualidade na educação infantil. A investigação, realizada por meio da apreciação de documentos, busca contribuir com as discussões acerca dos dilemas enfrentados pela educação infantil nesse contexto. Infere-se que a situação de pandemia não pode se sobrepor à garantia do direito à educação de todas as crianças, tendo em vista as especificidades do processo de ensino-aprendizagem dessa faixa etária, bem como a vulnerabilidade social de diversas famílias e o aumento da desigualdade social.
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Introdução
A educação infantil (EI) constitui o atendimento às crianças em espaços coletivos, antecedendo o ensino fundamental. No Brasil, destina-se às crianças de 0 a 5 anos de idade. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394/96) incluiu a EI no sistema educacional como a primeira etapa da educação básica, ofertada em creches para as crianças de até três anos e em pré-escolas para as crianças de quatro e cinco anos, públicas ou privadas. O seu provimento compete aos municípios, nos sistemas de ensino, levando em conta fatores como garantia do direito, relação público/privado para a oferta, espaço físico, proposta pedagógica, currículo, valorização e formação dos professores.
A Resolução CME/BH nº 001/2015, em seu Art. 1º, determina como finalidade da EI o desenvolvimento integral da criança de até 5 anos, em seus aspectos físico, emocional, cognitivo e social, complementando a ação da família e da comunidade. Fazem parte do Sistema Municipal de Ensino de Belo Horizonte (SME/BH) 145 escolas municipais de educação infantil (EMEIS), 60 escolas de ensino fundamental com turmas de educação infantil (EMEFS), 207 creches parceiras e, aproximadamente, 670 escolas privadas (particulares e sem fins lucrativos) que atendem a essa etapa da educação básica.2
Diante da declaração da Organização Mundial de Saúde (OMS) de pandemia causada pela COVID-19, em março de 2020, e das disposições da Lei Federal nº 13.979/2020 quanto às medidas para enfrentamento da doença, este artigo busca analisar os desafios e as possibilidades colocados no âmbito das instituições de EI do SME/BH, em face da suspensão das atividades escolares. Para o estudo, utilizou-se a pesquisa documental como estratégia metodológica para a coleta de dados, envolvendo as principais referências do campo da legislação e das políticas públicas para essa etapa da educação, assim como os documentos produzidos para orientação às instituições no atual contexto.
Com o fechamento das escolas e creches, surgiram questões e dúvidas referentes ao calendário escolar de 2020, sobretudo em função da obrigatoriedade da pré-escola. Entre as questões encaminhadas aos órgãos do SME/BH (Secretaria Municipal de Educação – SMED e Conselho Municipal de Educação – CME), estão: como repor os dias suspensos, caso o período de interrupção se estenda? É possível antecipar férias e recessos escolares? Será viável o ensino a distância na EI? Será aceitável flexibilizar a carga horária mínima anual? Será admissível prorrogar o ano letivo para o ano civil subsequente? Ressalta-se que, conforme disposto no inciso II, art. 31 da LDB, a partir da redação dada pela Lei nº 12.796/2013, a EI será organizada com carga horária mínima anual de 800 horas, distribuída por um mínimo de 200 dias de trabalho educacional. Ainda, a LDB, no § 2º do art. 23, aponta que o calendário escolar deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nessa lei. A Resolução CME/BH nº 001/2015, art. 11, determina que compete às instituições organizar, de preferência coletivamente, o calendário escolar, garantindo a carga horária mínima, e que qualquer alteração seja feita com aprovação da comunidade escolar.
Assim, diante da situação de anormalidade e de emergência em saúde pública, estão sendo publicadas várias orientações e determinações legais para nortear as instituições quanto às medidas de suspensão das atividades, bem como reorganizar o calendário escolar de 2020.
Levando em conta essas observações, este artigo elenca documentos produzidos nesse contexto, na perspectiva de elucidar as questões legais e políticas colocadas para a EI. Busca-se contribuir com as discussões acerca dos dilemas enfrentados pelas instituições do SME/BH, perante a COVID-19. Para tanto, o artigo está organizado em duas seções subsequentes a esta introdução, além das considerações finais. Primeiramente, é apresentado o histórico de produção desses documentos. Na seção posterior, a partir da análise dos documentos, são discutidas as premissas que orientam o atendimento educacional a essa faixa etária, e são relacionados aspectos importantes para a garantia dos direitos das crianças, dos profissionais e das famílias.
Histórico
Em 17 de março de 2020, o governo municipal, por meio do Decreto nº 17.298, definiu as medidas de prevenção e de enfrentamento da epidemia causada pelo coronavírus. Entre elas, foi determinada a suspensão das atividades nas instituições de ensino municipais e instituições de EI parceiras da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH). Essa medida foi reafirmada na Portaria SMED nº 102/2020, promulgada no dia 18 de março.
Ainda no dia 18 foi emitida Nota de Esclarecimento pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), apontando a realização de atividades a distância como alternativa para o cumprimento do calendário escolar pelas redes e instituições de educação básica e de educação superior, desde que autorizadas pelos respectivos sistemas de ensino. O documento não menciona a EI. Isso porque as atividades não presenciais na EI não estão previstas na legislação educacional.
No dia 19 de março, foi publicado, no Diário Oficial do Município, um Ato da Presidência do CME/BH recomendando a suspensão das atividades escolares em todas as instituições de EI integrantes do SME/BH, por tempo indeterminado.
Em 27 de março, foi emitida Nota de Esclarecimento e Orientações pelo Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais (CEE/MG), reafirmando que, para reorganizar seus calendários escolares, as instituições podem propor formas de realização de atividades escolares não presenciais, adotando regime remoto e assegurando as 800 horas de atividade escolar obrigatória3. Com relação à EI, o documento sugere utilizar o período de reposição para atendimento aos bebês e às crianças com atividades que garantam os direitos de aprendizagem e desenvolvimento previstos no currículo.
No dia 1º de abril, foi publicada a Medida Provisória nº 934, que estabelece normas excepcionais para o ano letivo, dispensando a obrigatoriedade do cumprimento do mínimo de dias de efetivo trabalho escolar, desde que cumprida a carga horária mínima anual e observadas as normas a serem editadas pelos respectivos sistemas de ensino.
Em 28 de abril, o CNE aprovou o Parecer CNE/CP nº 5/20204 sobre a reorganização dos calendários escolares, com a possibilidade de computar as atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual, em razão da pandemia da COVID-19. A aprovação do parecer pelo CNE precedeu de consulta pública, e vários pesquisadores e entidades da área5 enviaram recomendações quanto a não utilização da educação a distância na EI e, sobretudo, em relação à defesa do direito à educação equitativa e de qualidade social.
Discussão
Ao se analisar o parecer do CNE, é possível entender que as contribuições das instituições da área não foram consideradas devidamente. Por um lado, o documento aponta não haver previsão legal para a oferta de EaD na EI, mesmo em situação de emergência. Registra, ainda, a possibilidade de flexibilização para reorganização do calendário, ao assinalar a frequência mínima de 60% da carga horária obrigatória, conforme o inciso IV, artigo 31 da LDB. Por outro lado, sugere a EaD, ao propor que as escolas desenvolvam atividades denominadas “não presenciais” para os pais realizarem com as crianças em casa,
E, ainda, “[...] a escola, por sua vez, poderá definir a oferta do instrumento de resposta e feedback, caso julgue necessário” (BRASIL, 2020e, p.10). Ou seja, trata-se de um documento incoerente e mal redigido. Não considera as especificidades da EI e apresenta contradições, uma vez que coloca todas as possibilidades para reorganização dos calendários, dando margem a várias interpretações pelos sistemas de ensino e pelas escolas.
A legislação vigente6, que normatiza a política de EI e o direito das crianças e das famílias à educação, direciona ações de atendimento que garantam a proteção à infância e as especificidades dessa faixa etária. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (Resolução CNE/CEB nº 05/2009), a Base Nacional Comum Curricular – BNCC (Resolução CNE/CP nº 2/2017) e as Proposições Curriculares para a Educação Infantil de Belo Horizonte definem os princípios para a elaboração da proposta pedagógica e do currículo a ser desenvolvido nas instituições, compreendendo as funções de cuidar/educar como a premissa que caracteriza essa etapa educacional e a ocupação do profissional que com ela trabalha, ou seja, o professor com formação em Pedagogia. Nesses documentos, consta que as práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira.
Portanto, a concepção de EI presente na base legal pressupõe o relacionamento dos professores com as crianças, mediado por um conhecimento especializado e com intencionalidade, o que não condiz com a proposta de educação a distancia, seja por meio de apostilas ou de atividades com o uso da Internet, e desenvolvidas pelos pais ou familiares.
Quanto às escolas públicas e creches parceiras da PBH, imediatamente à suspensão das atividades, a administração municipal iniciou a distribuição de cestas básicas às famílias dos estudantes em substituição à alimentação escolar, com o objetivo de assegurar este direito às crianças e aos adolescentes enquanto durar o período de pandemia. Nesse período, a SMED organizou um espaço on-line de interação com a comunidade escolar. A página, disponibilizada no site da secretaria, conta com sugestões de leituras, filmes, cursos, lives, jogos e brincadeiras. É, também, um ambiente para a divulgação das experiências das instituições, e algumas escolas estão produzindo vídeos com mensagens, compartilhando as rotinas dos professores durante o isolamento social, que são enviados às famílias7.
Para as escolas particulares, sobretudo, concomitantemente às determinações legais, os sindicatos e outros órgãos representantes dessa rede vêm orientando escolas e profissionais quanto à reorganização dos calendários escolares, contratos e questões trabalhistas.
Cabe salientar a competência e a autonomia dos sistemas municipais de ensino e de seus órgãos normativos – os conselhos municipais de educação – para regulamentarem a EI, de acordo com a legislação nacional e as diretrizes do CNE, em regime de colaboração federativa. Assim, destaca-se a necessidade de normatização complementar referente à reorganização do calendário escolar de 2020 a ser emanada pelo CME/BH, levando em conta, inclusive, as peculiaridades das redes pública e privada de EI de Belo Horizonte e, até mesmo, a diversidade entre as escolas particulares.
Entende-se que é importante considerar as especificidades do processo de ensino- aprendizagem dessa faixa etária, bem como a valorização profissional dos professores que atuam nessa etapa da educação. Nomeadamente, no atual contexto de retrocessos e perdas de direitos, e em meio às medidas de prevenção à COVID-19 com o distanciamento social, evidenciam-se alguns aspectos:
  • A EaD não é adequada na EI. De acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria8, a exposição das crianças pequenas às telas é prejudicial à saúde, podendo causar vários transtornos, entre eles a dependência digital, comprometendo o processo de aprendizagem e desenvolvimento.
  • A legislação vigente não autoriza a EaD na EI, uma vez que o currículo nessa etapa não se organiza por conteúdos escolares, mas na articulação das experiências e dos saberes das crianças com os conhecimentos culturais, artísticos, ambientais, científicos e tecnológicos.
  • A EaD é uma modalidade educacional regulamentada, diferentemente do que o CNE propõe denominando “atividades remotas” e “atividades não presenciais”, arranjadas em um momento de crise, sem as condições de tecnologia e informação adequadas, e contribuindo para a precarização do trabalho docente. Além disso, há a possibilidade de mercantilização ainda maior da educação pública com a entrada de grandes grupos empresariais por meio, por exemplo, de plataformas digitais, material apostilado e cursos de formação para os professores, em contraposição à gestão democrática.
  • As condições de igualdade de acesso e permanência nas instituições são imprescindíveis para a concretização dos direitos das crianças e para a qualidade social na EI. Considerando a heterogeneidade das famílias e das crianças, sobretudo as mais vulneráveis, e que nem todos possuem recursos para realizar as atividades em casa, não há garantia de equidade educacional por meio de atividades não presenciais no atual contexto.
  • O processo indissociável de cuidar/educar que caracteriza essa etapa educacional é complementar às ações das famílias. Desse modo, as interações e brincadeiras mediadas pelos professores nas instituições são diferentes daquelas vivenciadas no contexto familiar.
  • É fundamental a flexibilização do calendário escolar, considerando a possibilidade da redução da carga horária anual, de acordo com o inciso IV, art. 31 da LDB. Para isso, ressaltam-se dois aspectos: o primeiro refere-se ao § 4º, art. 5º das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil ao determinar que a frequência na EI não constitua pré-requisito para a matrícula no ensino fundamental. O segundo diz respeito ao inciso I, art. 31 da LDB, ao estabelecer que a avaliação na EI seja mediante acompanhamento e registro do desenvolvimento das crianças, sem o objetivo de promoção, mesmo para o acesso ao ensino fundamental. Ademais, é preciso ter em conta que o ano letivo não necessariamente precisa coincidir com o ano civil para cumprimento do calendário escolar.
Considerações finais
Em síntese, neste momento excepcional de uma pandemia em curso, em que as atividades escolares estão suspensas, é imprescindível que sejam emanadas, pelos órgãos competentes, regulamentações efetivas, que considerem os princípios da EI e o direito das crianças, famílias e profissionais.
Entre as ações possíveis, são importantes as atuações voltadas à sobrevivência das famílias, sobretudo das redes pública e parceira, engendradas pelas políticas intersetoriais. São válidas também recomendações que poderão ser enviadas às famílias com o objetivo de fortalecer os vínculos afetivos entre crianças e adultos. Essas orientações não podem ser consideradas para cômputo da carga horária. Outra ação plausível é a interlocução entre os vários setores para a construção de propostas de retorno. Já na ocasião da volta às instituições, a preocupação inicial precisará ser com a acolhida de profissionais, crianças e famílias, com segurança. A comunidade escolar, em um processo democrático e participativo, deverá decidir coletivamente sobre a reorganização do calendário, na perspectiva da qualidade e da educação como direito. Desse modo, é razoável inferir que a situação de pandemia não pode se sobrepor à garantia do direito à educação de todas as crianças, tendo em vista, inclusive, a vulnerabilidade social de diversas famílias e o aumento da desigualdade social.
Não obstante as reflexões apontadas neste artigo, outras questões ainda são pertinentes, como por exemplo: como ampliar a capacidade protetiva da escola durante e depois da pandemia? Portanto, diante de tantos desafios, faz-se necessário ampliar os estudos sobre essa temática, avaliando momentos posteriores aos que estiveram na base desta investigação.
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Considerações finais