in Olhar de Professor
(RE)PENSANDO O NOVO NORMAL APÓS A PANDEMIA DA COVID-19: A REALIDADE DOS LICENCIANDOS EM QUÍMICA DE UMA INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR DA BAHIA
Resumo
O surgimento da pandemia provocada pela COVID-19 trouxe à realidade uma face de incertezas, medos e reflexões. Diante desse cenário assustador, a sociedade precisou se (re)inventar e passamos a viver o “novo normal”. O atual conceito de normalidade alterou os campos social e educacional, trazendo o ensino remoto para a realidade da educação brasileira. O ensino remoto, diferentemente da Educação a Distância, pode contribuir para o aumento das desigualdades sociais, uma vez que não considera questões básicas de acessibilidade. Neste estudo, buscaremos discutir o contexto diverso e vulnerável dos licenciandos do curso de Licenciatura em Química de uma Instituição de Ensino Superior da Bahia, em um curso de extensão on line. Para tanto, enviamos questionários aos estudantes, com o objetivo de investigar as condições de acesso remoto às Tecnologias Digitais. Os dados levantados revelaram que parte dos estudantes possuem dificuldades de acesso à distância aos recursos digitais.
Main Text
INTRODUÇÃO: TRILHANDO ALGUNS PASSOS PARA O NOVO NORMAL
Ao trilhar os passos para a narrativa deste texto, percebemos a falta que sentimos das relações existentes nos espaços em que buscamos compartilhar nossos conhecimentos com aqueles que estão à busca de novos caminhos. O distanciamento social nos leva a novas trajetórias, antes pouco percorridas em nossas andanças docentes. Buscamos, nesse cenário, por novas maneiras tanto para aprender como para ensinar, através de uma nova dimensão social, mediada pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC).
Há tempos, estudiosos da área já previam que os recursos mediados pelas TDIC viriam a ser amplamente utilizados no ensino, principalmente no nível superior, levando a termo a universidade como a conhecemos hoje (AGAMBEN, 2020). O que não se imaginava é que esse mecanismo passaria a ser o novo normal da educação brasileira, devido à instauração de uma condição sanitária com precedentes indiretos, que aludem à época da gripe espanhola1 e assolam o mundo inteiro. Essa barbárie poderá se perpetrar e nos manterá cada vez mais isolados em um universo de distanciamento físico entre professores e alunos, de relações remotas espelhadas por uma tela que alude ao que estamos convenientemente chamando de novo normal em tempos anormais. É premente a compreensão de que “[...] o controle digital é uma ameaça à nossa liberdade [...] precisamos conscientizar o público de todas as suas dimensões e nos mobilizar para combatê-lo.” (ZIZEK, 2020, p. 26). Será necessário nos reinventarmos para expormos as mazelas desse novo normal frente à vulnerabilidade social e econômica enfrentada por grande parte dos brasileiros. É nesta instabilidade que se inserem as pretensiosas condições mercadológicas para suplantar os caminhos futuros da educação pública.
Em tempos recentes, emergiu um outro ser invisível todo-poderoso, nem grande nem pequeno porque disforme: os mercados. Tal como o vírus, é insidioso e imprevisível nas suas mutações, e, tal como deus (Santíssima Trindade, encarnações), é uno e múltiplo. Exprime-se no plural mas é singular. Ao contrário de deus, os mercados é omnipresente neste mundo e não no mundo do além, e, ao contrário do vírus, é uma bendição para os poderosos e uma maldição para todos os outros (a esmagadora maioria dos humanos e a totalidade da vida não humana). (SANTOS, 2020, p. 10).
Temos nos perguntado: até que ponto estamos colaborando com o omnipresente? Estamos colaborando com as concepções mercadológicas no processo de formação de profissionais que atuarão em nossa sociedade; em um movimento de normalidade mesmo em tempos anormais? Pensar sobre essa nova normalidade, em tempos anormais de isolamento social, nos levou à finalidade desta escrita, analisando o cenário de alcance às tecnologias digitais de nossos alunos “universitários” através de acesso remoto a um curso de extensão oferecido por professores da área de Ensino de Química.
UNIVERSIDADE INTERIORIZADA, DIVERSA E VULNERÁVEL2
Neste período de isolamento social, nós, professores das universidades públicas, estamos nos dedicando a vários cursos de formação continuada, eventos acadêmicos, lives e escrita de artigos científicos, que há tempos estavam em nossos pensamentos, mas devido às demandas da profissão, não conseguimos dar prosseguimento. Entretanto, nossas inquietações nos remetem aos relacionamentos acadêmicos com nossos alunos que, neste momento, são praticamente inexistentes, podendo ocasionar o esvaziamento dos cursos de Ensino Superior. Partindo dessas reflexões e de questionamentos sobre a vulnerabilidade dos estudantes em tempos de distanciamento social, nos indagamos sobre a possibilidade da realização de um curso remoto de extensão, ao qual intitulamos “Debates Contemporâneos no Ensino de Química”. O curso foi estruturado a partir das intencionalidades dos licenciandos, quando convidados a contribuir para a construção dos debates, por meio de sugestões de temáticas para estudos sobre a Formação do Docente de Química/Ciências.
Sistematizamos o curso a partir de três eixos, após análise qualitativa dos dados obtidos de um questionário semi-estruturado (GERHARDT; SILVEIRA, 2009), enviado remotamente aos licenciandos. O eixo inicial foi organizado para debates sobre currículo e a formação docente, através das temáticas “Mudanças Curriculares no Ensino de Química e Profissionalização Docente”. Como segunda proposição temos questões que envolvem as “Estratégias de Ensino e os Recursos Pedagógicos” envolvidos nos processos de apropriação do conhecimento científico-escolar. No terceiro eixo, a atenção se voltou às questões da “Pesquisa e Alfabetização Científica: consequências das limitações de informações.” Nesse sentido, esperamos refletir com os estudantes sobre a importância da docência e as tensões decorrentes da pandemia, que podem se impor à vida acadêmica e profissional.
O questionário foi enviado, no mês de maio, a 156 estudantes do curso de Licenciatura em Química, de uma universidade pública localizada no interior da Bahia, como forma de coleta de dados. Obtivemos retorno de 50 estudantes (32 % do total de alunos matriculados). Além de questioná-los sobre seus interesses para discussões sobre a formação docente, também os indagamos sobre meios e veículos de acesso à internet. Coletamos, como resposta, que 80% dos respondentes (40 estudantes) iriam se conectar via wifi e 20% (10 estudantes), via dados móveis. Desses 50 estudantes, 26 usariam o celular (52%) e os demais (24 estudantes; 48%) teriam acesso por computador. Da análise qualitativa desses dados podemos inferir a dificuldade de acesso desses estudantes aos recursos digitais. Acreditamos que a realidade encontrada em nosso estudo desvela parte das desigualdades enfrentadas por estudantes em todo o território nacional. Esses dados também refletem a importância dada a tríade da sociedade moderna: o Estado, o mercado e a comunidade (SANTOS, 2020).
Nos últimos quarenta anos foi dada prioridade absoluta ao princípio do mercado em detrimento do Estado e da comunidade. A privatização dos bens sociais e coletivos, tais como a saúde, a educação [...] os serviços de correios e telecomunicações e a segurança social, foi apenas uma manifestação visível da prioridade à mercantilização da vida coletiva. (SANTOS, 2020, p. 27).
Pensamos que esta pandemia irá revelar além das mazelas sociais, tecnológicas, culturais e econômicas, algumas possibilidades de aprendermos a conviver com os resultados das ações institucionais e legislativas. Trazer à tona o mercado no contexto do público-privado tem sua relevância, afinal, há uma regulação dos mecanismos públicos em favor do setor mercantilista, em todas as esferas da sociedade. Tudo culpa do capitalismo! Destaca-se que até hoje não conseguimos uma inclusão digital para (re)pensarmos as práticas educativas voltadas às TDIC. O tempo remoto, como tem defendido o Ministério da Educação (MEC) do Brasil, é um processo cíclico, no qual há uma exclusão social para uma suposta inclusão, pois, ao mesmo tempo em que incluímos alguns, também estamos excluindo tantos outros estudantes. Estamos nos referindo ao acesso aos meios digitais bem como aos conhecimentos dialogados no âmbito universitário.
REFLETINDO SOBRE O USO E A ACESSIBILIDADE ÀS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO
Hodiernamente, estamos envolvidos por diversos processos tecnológicos, que nos “teletransportam” para espaços díspares, nos (re)conectam e, muitas vezes, até nos afastam daqueles que estamos próximos. É nessa continuidade dual da realidade virtual que a tecnologia se torna parte de nós. Ao vivenciarmos a pandemia, a presença da tecnologia se tornou ainda mais forte, impossibilitando abraços físicos, forçando a nos habituarmos ao novo normal dos abraços virtuais. De modo geral, a oferta de conteúdo nas redes virtuais teve um aumento significativo, provocando uma percepção de que a sociedade possui recursos tecnológicos para uma aproximação entre o mundo externo e o universo particular.
No âmbito educacional, antes de todo o caos provocado pela COVID-19, os pesquisadores já discutiam sobre o uso dos recursos tecnológicos como possibilidade e/ou como uma estratégia significativa nos processos de ensino-aprendizagem. De acordo com Leite (2016, p. 1), o uso das TDIC “[...] tem levado a ruptura de métodos e metodologias tradicionais de ensino que por sua vez estão “cristalizados” com o tempo”. Nessa discussão, a mediação docente tem um papel fundamental para que os usos dos recursos tecnológicos não se tornem vazios e sem sentido. Para isso, o docente necessita dominar o uso das TDIC. No entanto, apesar de percebermos a presença da tecnologia em diversos espaços, muitos profissionais da educação ainda apresentam inúmeras dificuldades para sua utilização, seja pela ausência de formação e/ou pela não familiaridade com o uso de recursos tecnológicos (LEITE, 2015; STINGHEN, 2016).
No contexto presente da disseminação viral, buscamos meios para reinventar a educação, seja pela necessidade de continuar o processo formativo e/ou para a manutenção do contato com os discentes, no sentido de incentivá-los para a não desistência. As muitas atividades presenciais foram substituídas por atividades remotas, por vezes, sem a observação de uma grande questão: a acessibilidade tecnológica.
Sobre a acessibilidade tecnológica é importante pontuar que um estudo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), apresentou que em 2018, 45,9 milhões de brasileiros ainda não possuíam acesso à internet. Dentre os motivos para o não acesso, os pesquisados apontaram a falta de conhecimento, ausência de interesse para o uso, assim como a questão financeira que não permite o acesso a esse tipo de recurso (IBGE, 2018). Diante disso, cabe questionarmos as mudanças ocorridas no âmbito educacional, frente à pandemia, que legaliza a contabilização das atividades de ensino realizadas de modo remoto, como carga horária do ano escolar, conforme apontado no Parecer 5/2020 do Conselho Nacional de Educação (CNE), aprovado pelo Ministério da Educação (MEC) em 1º de Junho de 2020.
O Parecer 5/2020 menciona a necessidade de observação do contexto escolar para adoção desse tipo de atividade. Contudo, deve considerar também o não aumento de evasão escolar pela desigualdade de acesso remoto. A validação do aproveitamento da carga horária institucionaliza a não equidade, uma vez que não tem como garantir o acesso a todos. É urgente pensarmos sobre qual público brasileiro possui acesso à internet. Podemos tensionar ainda mais essa reflexão ao questionar qual parcela da população possui condições estruturais de desenvolver atividades de modo remoto? A educação deve ser pensada de modo a diminuir as desigualdades sociais. Nesse contexto de educação remota, o ato de educar pode contribuir para o aumento, reforçar e/ou (re)produzir as mazelas sociais.
APOSTAS PARA O DEPOIS
Desde o primeiro caso da COVID-19 no Brasil, a tensão entre os brasileiros em diversas esferas aumentou. O medo, a solidão, a depressão e a responsabilidade, sobretudo. Para a classe trabalhadora, na qual nos encontramos, além destes sentimentos e sensações, aumentou também o trabalho remoto, as exigências administrativas, as reuniões infindáveis na tela do computador, bem como as cobranças governamentais, pois quase que diariamente recebemos mensagem e e-mail do Sistema de Gestão de Pessoas (SIGEPE). Neste ínterim, conseguimos retomar a escrita e revisão de artigos científicos, as discussões nos grupos de estudos e de pesquisa, o cuidado virtual com nossos orientandos(as), dentre tantas outras coisas que extrapolam nossa carga horária semanal.
Não são recentes os ataques e as imposições sofridas, disseminadas e implantadas nas instituições de Ensino, por parte do Ministério da Educação (MEC). Temos percebido que há diversos conteúdos e resoluções que regulam o funcionamento das universidades e das escolas, bem como suas atividades, no que diz respeito ao Ensino na Educação Básica, Ensino Superior e até mesmo da Pós-graduação. Esses documentos, quando em pauta e praticados por estas instituições merecem ser (re)pensados, pois consideramos que refletirão diretamente no processo de ensino-aprendizagem.
Partindo desta premissa, metaforicamente, assim como o vírus da COVID-19 tem infectado diferentes pessoas, os documentos têm “contaminado” igualmente todo o sistema educacional brasileiro, criando inclusive, tensões e debates entre os pares das instituições de ensino. Contribuindo, portanto, para o duelo e divergências entre aceitar ou não o ensino em tempo remoto, a Educação a Distância e o Ensino Híbrido, além de discussões sobre as condições para o trabalho remoto e acesso às TDIC, metodologia e estratégia de ensino, dentre tantas outras apreensões.
Não podemos normalizar o anormal em meio a pandemia. Repensar a Educação é também pensar a inclusão, o acesso e o nível dos conhecimentos que podemos oferecer à comunidade acadêmica. Pensamos isso, pois tendemos a naturalizar as ações no Brasil. O fato é: vamos naturalizar um ensino excludente, em que não fornecemos o acesso a todos os estudantes? O futuro da Educação, principalmente das licenciaturas, será pautado em ações que desconsideram as histórias de vida dos sujeitos? Enfim, são questio(ensi)namentos que precisam de respostas e aprendizagens ao longo dos anos, pois nenhum deles poderão ser respondidos a curto prazo, além de surgirem tantos outros. Por isso, as apostas para o depois!
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INTRODUÇÃO: TRILHANDO ALGUNS PASSOS PARA O NOVO NORMAL
UNIVERSIDADE INTERIORIZADA, DIVERSA E VULNERÁVEL2
REFLETINDO SOBRE O USO E A ACESSIBILIDADE ÀS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO
APOSTAS PARA O DEPOIS